Segundo dia do Encontro de Povos e Comunidades do Cerrado se pautou no tema “Terra e Território”, repleto de reflexões, relatos e denúncias sobre as resistências e violências que permeiam as lutas no campo
Na manhã do segundo dia do encontro “Das re-existências brota a vida”, a mística de abertura foi proposta pelas lideranças quilombolas. Enaltecendo a ancestralidade - como passado, presente e futuro dos povos -, a celebração refletiu a valorização da terra e dos territórios, finalizada com cantos e com a benção das sementes, que simbolizam a continuidade e a resiliência das vidas que brotam das re-existências.
Após a mística, teve início a roda de conversa “Terra e Território”, que contou com as contribuições e partilhas do Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado do Piaui, nas pessoas de Ariomara Alves e de Juarez Celestino. Também, integraram a roda Clara Barbosa, indígena Guarani-Kaiowá (Retomada Laranjeira Ñanderu, Mato Grosso do Sul), o trabalhador rural e coordenador da CPT Goiás Gerailton Ferreira (Assentamento Padre Ilgo, Goiás) e a advogada popular Aryelle Almeida (Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais, AATR-Bahia).
Juarez Celestino, que é liderança da comunidade tradicional ribeirinho-brejeira de Melancias-PI, que acolheu o evento, iniciou sua fala fazendo memória aos processos de luta no território. Ele explicou que a área da Comunidade Melancias era devoluta - uma parcela das terras públicas que não possui uma destinação específica pelo poder público e que não faz parte do patrimônio de um particular -, sendo ocupada pelas famílias que hoje vivem, trabalham e tiram seu sustento dessa terra.
“A gente vem enfrentando toda essa batalha, toda essa luta e resistência, para termos nosso território livre”, expressou Juarez, que denunciou o cotidiano de ameaças e violências contra a comunidade e suas lideranças por parte de grileiros que tentam usurpar as terras. Ele relatou que as famílias colhem os frutos do Cerrado, valorizando e os beneficiando para sua subsistência e renda, mas com a chegada do “desenvolvimento”, começaram a limitar o acesso da comunidade aos frutos.
São muitos anos de luta pela comunidade, em defesa do território, do seu direito à terra e também pela preservação do Cerrado, que dá vida em abundância, água e muitos frutos. Juarez afirma que estar a frente nos enfrentamentos pela conservação do bioma e a vida de seus povos não é uma tarefa fácil, mas é coletiva. As investidas contra a comunidade são várias, desde intimidações e ameaças contra lideranças, até a devastação do território, com queimadas criminosas e desmatamento ilegal por parte dos fazendeiros interessados na exploração da área, que só permanece preservada graças a resistência das famílias ribeirinhas.
“Sou um dos batalhadores para que pelo menos esse nosso pedaço de Cerrado permaneça de pé, e isso faz com que eu seja uma pessoa ameaçada”, relatou Juarez.
Resistindo e insistindo no direito de existir, Ariomara Alves é do Território tradicional ribeirinho-brejeiro da Barra da Lagoa-PI, e integra o Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado do Piaui, reafirmando a juventude organizada em defesa dos territórios e do bem viver. Ela explica que o coletivo surgiu em 2018, com apoio e acompanhamento da CPT, e que antes as lutas eram feitas individualmente por cada comunidade, até que perceberam a importância de se unirem, se fortalecerem e avançarem nas lutas. “Nós lutamos para que nosso modo de vida seja continuado e que as gerações futuras tenham a permanência garantida nesse território”, explicou a liderança. Ariomara afirmou que, se hoje ainda existe Cerrado, é porque os povos e comunidades tradicionais e originárias são guardiãs e guardiões de toda a sociobiodiversidade do bioma.
“Aqui somos diversos povos: ribeirinhos, brejeiros, quilombolas, indígenas… e nossas causas são comuns, nós somos unidos pela resistência. Nós sabemos o quanto sofremos diariamente, lutando por terra e território, pela nossa permanência, pelo nosso Cerrado e nossas vidas”, refletiu Ariomara.
Para garantia dos territórios livres e do direito à terra, é preciso pensar um novo modelo de reforma agrária, afirmou Gerailton Ferreira, que além de agente pastoral e coordenador da CPT Goiás, também é trabalhador rural assentado no Assentamento Padre Ilgo-GO. Ele alerta que o atual modelo de reforma agrária não atende os povos e trabalhadores do campo, e não os deixam livres dos arrendamentos e dos agrotóxicos. “Nós estamos resistindo às titulações nos assentamentos, para impedir que o capital invada os territórios com essa especulação destrutiva que só visa o lucro”, declarou.
O agente refletiu, ainda, sobre a importância de um projeto de reforma agrária popular, que não apenas garanta o acesso à terra, mas também as condições necessárias para que as famílias tenham uma vida digna no campo.
“Não é possível pensar uma reforma agrária de sucesso se as pessoas nos assentamentos não tem uma casa digna para morar. A gente precisa mudar essa realidade, para que as famílias cheguem à terra e consigam acessar as políticas públicas de assistência e de incentivos à agricultura familiar”, explicou Gerailton.
Expondo a realidade de luta e resistência dos povos Guarani-Kaiowá, Clara Barbosa, da Retomada Laranjeira Ñanderu-MS, refletiu sobre o direito ancestral dos povos indígenas em retomarem seus territórios.
“Nós queremos a devolução dos nossos territórios. Eu nem digo demarcação, a gente quer de volta o que nos foi roubado quando os invasores chegaram aqui, pois em 1500 nós perdemos tudo, principalmente nossa autonomia”, manifestou.
Clara afirmou, ainda, que os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas se identificam na luta pelos seus territórios, pois compartilham o sofrimento, mas também a resistência. Durante sua fala, a liderança também alertou para a violência do agronegócio e dos projetos de morte contra as comunidades e territórios. “O agronegócio é um monstro sem alma que não se controla. Ele vê uma árvore e não enxerga que ela está cheia de vida, ele vê notas de dinheiro”, refletiu.
Seguindo o testemunho de Clara, a advogada popular Arielly Almeida, da Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais-BA, abriu sua fala reverenciando a resistência dos povos indígenas e como esses são referência de luta, mas também de resiliência ao longo destes 524 anos. “As comunidades tradicionais têm muito o que aprender com os povos originários, pois eles são precursores dessas lutas. Nós [povos negros], que fomos sequestrados nos nossos territórios além-mar, fomos acolhidos pelos povos originários, que nos ensinaram a sobreviver e a resistir nesse território renomeado Brasil”, iniciou Arielly.
A advogada explicou que a AATR foi criada há 45 anos, nascida na Bahia, pela necessidade de fortalecer e fornecer acompanhamento e assistência jurídica aos povos do campo e trabalhadores rurais, frente às violências que enfrentam decorrentes dos conflitos. Além, ainda, de promover formação popular, com o intuito de proporcionar, para as comunidades e lideranças, propriedade sobre o processo jurídico, dando ao povo poder de compreender e decidir sobre todos eles.
Percebendo que os conflitos territoriais estavam se expandindo, especialmente na região do MATOPIBA - fronteira agrícola que corresponde às porções de Cerrado entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piaui e Bahia - e afetando cada vez mais os defensores de direitos humanos e as comunidades camponesas, a AATR passou a dialogar e atuar com os estados vizinhos.
“Esse mecanismo da grilagem acontece de forma muito parecida em todos esses territórios que compõem o MATOPIBA. Por isso, nós buscamos nos fortalecer em rede com outros advogados e advogadas populares que estão em outros contextos e estados. A gente chega nos outros estados muito na ideia e intenção de contribuir com as nossas experiências, de compartilhar o que tem dado certo e o que não tem funcionado”, afirmou Arielly.
Após as contribuições da mesa, a fila do povo tomou corpo para as falas-denúncia e os depoimentos de vida e luta dos povos em seus territórios e comunidades. Expedito Ribeiro, do Assentamento Flores-PI, manifestou que, para a luta, é preciso organização. “Nós temos que nos unir e organizar como classe, sem medo, porque com medo não se vence a guerra”, declarou.
Pela tarde, os participantes se dividiram em pequenas rodas, de acordo com suas identidades camponesas e de povos das florestas, para refletirem e definirem coletivamente sobre o fortalecimento das lutas pela articulação e organização dos povos do Cerrado. Após os diálogos, representantes de cada grupo partilharam sobre as discussões, reafirmando as resistências frente às violências do latifúndio, do agronegócio e dos grandes projetos, pois “na luta do povo, ninguém se cansa!”.
Famílias estão há mais de 12 anos na área, situada às margens da estrada vicinal José Pinto Sobral, próxima ao Município de Álvares Florence (SP)
Por Heloisa Sousa e CPT SP
Na última sexta-feira, 08, o Acampamento Vale do Amanhecer, no município de Álvares Florence (SP), realizou uma Assembleia Geral junto à Comissão Pastoral da Terra Regional São Paulo (CPT-SP). A atividade ocorreu após audiência no fórum de Votuporanga (SP) para tratar da reintegração de posse das mais de 300 famílias do acampamento.
“Nós, da CPT São Paulo, estamos acompanhando esse processo com as famílias acampadas no município de Álvares Florence. A prefeitura local pediu a reintegração de posse da área, que é de domínio da prefeitura e está às margens da rodovia, onde as famílias estão acampadas há 12 anos”, explica Eduardo Cunha, advogado da CPT que acompanha a situação.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do Estado de São Paulo (Incra-SP), se fez presente por meio da superintendente Sabrina Diniz, que apontou caminhos que podem ser seguidos para a resolução do conflito. As assessorias dos deputados Nilto Tatto (PT) e Ana Perugini (PT) representaram os parlamentares e se colocaram à disposição das demandas apresentadas.
Segundo Eduardo, boa parte do processo transcorreu sem que os advogados da CPT, que atuam no processo, fossem intimados. “Desse modo, o juiz deu uma sentença concordando com a tese da procuradora do município e nós subimos uma apelação por cerceamento de defesa”, explica.
Sabrina Diniz se propôs a dialogar diretamente com quem, atualmente, possui a propriedade. Na próxima semana, a superintendente irá protocolar um documento apresentando o interesse do Incra na área.
Vale salientar que a terra reivindicada é uma fazenda grilada por fazendeiros ligados ao agronegócio. “As tratativas serão realizadas para que possamos fazer deste grilo um assentamento que produza alimentos saudáveis e ajude a combater a carestia”, destaca Eduardo.
“Acreditamos que, diante de toda essa movimentação, essa reintegração de posse vai ser de fato suspensa. Isso para nós é muito bom porque não ter despejo é muito significativo, mas as famílias também concordam que estão em uma área de risco, às margens da rodovia. Então, estamos tentando sensibilizar a prefeitura para que arrume um local seguro que abrigue o acampamento”, completa Eduardo.
A Comissão Pastoral da Terra São Paulo, acompanha essa demanda por meio dos agentes pastorais e pela assessoria Jurídica, considerando que o princípio pastoral é nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra e nenhum trabalhador sem direitos.
Por CPT Roraima
Foto: CPT-RR
Nos últimos meses, a comunidade ribeirinha de Panacarica, no Baixo Rio Branco, no município Caracaraí (RR) tem sofrido com a seca do Rio Negro. A falta das chuvas tem afetado a comunidade pelo segundo ano seguido.
As 23 famílias que vivem na região, caminham cerca de 1.600 metros para acessar o lugar mais próximo onde podem buscar água. Já perderam safras de melancia e os pés de banana, além de ter a saúde prejudica pela falta do recurso.
“Nós já estamos há dois meses nessa luta e está sendo difícil. Está sendo mais difícil pros idosos, as crianças não podem tomar banho de manhã pra ir pra escola, a gente tá na luta aqui. A gente apara a água da chuva, mas tem dias que nem chover, chove. Já tem mais de quinze dias que não chove”, conta uma das moradoras da comunidade. Ela explica ainda que já solicitou um motobomba e caixa d’água para representantes públicos, mas não obteve resposta.
Em parceria com a Diocese de Roraima, a CPT-RR mantém essa presença solidária nas comunidades da região do Baixo Rio Branco. “Vendo a situação dessas mudanças climáticas e a situação que as comunidade vêm enfrentando, estamos apoiando e pedindo essa ajuda para os povos da águas por meio de uma Campanha Solidária”, explica Vilma Augusta da Silva, coordenadora da regional CPT-RR.
Solidariedade
A CPT Roraima está realizando uma Campanha Solidária em prol da comunidade ribeirinha de Panacarica. Com objetivo de angariar recursos para a aquisição de um motobomba, mangueiras e caixas d’água que possam ser utilizadas pela comunidade nesse período de seca.
Para ajudar, basta enviar qualquer quantia para os dados abaixo:
Banco: Itaú
Agência: 1352
Conta corrente: 226540
Comissão Pastoral da Terra - Regional Roraima
Por CPT RO
Edição: Comunicação Nacional
Uma liderança do Seringal Belmont sofreu uma tocaia com intento de assassinato na última sexta-feira (01), em Porto Velho (RO). Outra das lideranças do grupo, João Teixeira, já foi assassinado na noite do dia 07 de outubro, após ser ameaçado em relação ao conflito de terras existente no local.
Pelo que é conhecido até o momento, o crime que vitimou João Teixeira de Souza, também conhecido como Mineiro ou João da Van, segue sem conclusão oficial. Nem mandantes, nem autores foram oficialmente identificados ou presos, seguindo o padrão habitual de impunidade dos crimes cometidos contra pequenos agricultores no estado de Rondônia, o que contribui para a que a violência continue no local.
Na última sexta-feira, dois homens armados disparam mais de dez vez em direção a casa onde estava a liderança, um dos antigos posseiros da área que ainda não conseguiu voltar a antiga terra dele. Afortunadamente, ele tinha saído do local um pouco antes. Nas imagens das câmeras de segurança, que filmaram tudo, é possível ver os disparos e o cachorro correndo apavorado. Uma mulher presente conseguiu se esconder e se trancou na casa. Logo que o posseiro chegou, pediu ajuda de um vizinho e chamaram a polícia, que descobriu dez cápsulas de calibre 12 no local onde os agressores dispararam.
A liderança que escapou da tocaia solicitou, há meses, a inclusão no Programa de Defensores de Direitos Humanos. Não é a primeira vez que é perseguido e que teve que fugir do local.
Histórico
Ele é um dos mais antigos posseiro da área, que ocupava desde 2014, com morada, roças, estrada construída pela Prefeitura – agora interditada judicialmente por um fazendeiro – e padrão de energia elétrica instalado. Porém, em 2020, em plena pandemia, junto com todos os seus vizinhos, sofreu uma reintegração de posse ordenada de um dia para outro. Quando conseguiu se defender judicialmente, demostrando com os outros posseiros a antiguidade da posse, a ordem de despejo foi suspensa pela mesma magistrada.
No entanto, quando tentaram voltar ao local, em agosto de 2022, foram atacados de noite por jagunços armados, que tentaram pegar as lideranças do grupo e queimaram criminosamente a única casa que tinha restado em pé. Em vez de receber proteção, de novo foram expulsos policialmente de forma irregular. Acampando no Incra por mais de ano, após conseguir suspender um georreferenciamento irregular da área, as famílias foram na entrada do Parque Natural de Porto Velho, próximo as suas antigas posses.
Em situação de grave vulnerabilidade, os acampados foram apoiados pela CPT-RO e por numerosas entidades sociais. Atendidos pela Defensoria Pública, conseguiram que a mesma magistrada ordenasse o retorno deles. Porém, mesmo reiterada a ordem judicial, a ordem não foi cumprida. Assim deram tempo para um desembargador, de forma surpreendente, suspender liminarmente a ordem dos dois magistrados e impedir o retorno deles ao local.
Mesmo assim, sem mais poder aguardar por moradia e produção de alimentos, a área foi ocupada pelo grupo de antigos posseiros do Seringal Belmont. No TJ /RO tramita processo que analisa a questão possessória, estando no aguardo a publicação do teor do julgamento do último dia 29-10-2024 (AUTOS N. 0811952-51.2023.8.22.0000 AGRAVO INTERNO E AGRAVO DE INSTRUMENTO). Ao mesmo tempo, segue em tramitação na justiça federal – (TRF1 Discriminatória 0007402-11.2008.4.01.4100, perante a 5ª Vara Federal Ambiental e Agrária da SJRO) que trata da retomada da área para a União por descumprimento do título concedido.
Em março deste ano, a área foi visitada pela Missão em Rondônia da Comissão Nacional de Combate à Violência, presidida pela Ouvidora Agrária Nacional, Cláudia Dadico. Posteriormente, a intervenção do Incra confirmando a natureza pública da terra e o interesse da autarquia pela área, tem levado a esfera da Justiça Federal diversos processos da disputa do local, que pelas proximidades da cidade de Porto Velho, está ambicionado para fins imobiliários.
A resolução do conflito continua pela via dos fatos, provocando este estado de permanente de tensão no local, agravada pelos recentes episódios de violência e barbárie, tristemente costumeiras no estado. Enquanto demora de resolução jurídica do caso, permanece a violência com mancha severa no campo de Rondônia.
Em nota conjunta, entidades pastorais analisam impactos de grandes obras ferroviárias em Mato Grosso e a invisibilização de povos indígenas e comunidades tradicionais em estudos técnicos
Estratégias de destruição: Ferrogrão e outras ferrovias. Foto: ANTT
O Mato Grosso está batendo todos os recordes para se tornar um estado sem Amazônia Legal, sem Cerrado, sem Pantanal, sem água e, logo, sem vida. O rumo tomado busca transformá-lo em um grande deserto de monoculturas que produzem commodities para atender o mercado externo. Parte dos estoques de grãos são transportados por empresas ferroviárias como a Rumo Logísticas até os portos marítimos das regiões sul e sudeste para lá embarcarem em direção ao mercado europeu e chinês.
Para isso, o estado mato-grossense tem feito parcerias públicas-privadas confusas, atualmente tais como a Ferrogrão, a Ferrovia Norte Brasil, a Ferrovia Autorizada de Transporte Olacyr de Moraes (Ferrovia Estadual do Mato Grosso) e a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste. Essas ferrovias estão em diferentes estágios de construção, mais ao sul já estão em operação, mais ao norte em fase de planejamento e entre leste e oeste, sendo construídas.
"É preocupante a falta de análise global e integrada dos impactos socioambientais e violações de direitos humanos desses empreendimentos"
A construção de ferrovias no estado de Mato Grosso envolve uma série de implicações sociais e ambientais, especialmente ao se considerar a vasta extensão de novas linhas ferroviárias previstas, aproximadamente 1.700 quilômetros.
Também é preocupante a falta de análise global e integrada dos impactos socioambientais e violações de direitos humanos desses empreendimentos. Grupos sociais que vivem nos territórios por onde passam estas estradas de ferro estão sendo deixados de lado, sem serem escutados nos processos decisórios de obras de infraestrutura.
Alguns dos principais pontos de preocupação são:
Impacto Ambiental
Impacto Social
Estratégia Isolada e Fragmentada
A abordagem para se discutir esses projetos tem sido feita de forma isolada, na tentativa de se evitar uma maior mobilização e resistência por parte da sociedade civil e grupos ambientalistas. Obras de infraestrutura devem servir para o desenvolvimento de uma região no seu aspecto social, ambiental e econômico. Sem uma visão integrada, os impactos cumulativos de múltiplos projetos podem passar despercebidos, levando a um aumento significativo de riscos sociais e ambientais. Afinal, para quem serve a infraestrutura de logística que está sendo implementada para o estado de Mato Grosso.
O modelo de desenvolvimento adotado pelo estado aponta para um problema recorrente: a ganância humana, desconectada das realidades sociais e ambientais, geram projetos grandiosos e de grande impacto (obras faraônicas), cuja motivação principal é o favorecimento de interesses econômicos, de setores como o do agronegócio, mineração e petroleira. Por que não podemos ter uma infraestrutura que mantenha as florestas e os que lá vivem? Para nós, a infraestrutura é a própria floresta e devemos pensar em projetos que fomentem esta visão antes que seja tarde.
Há um desequilíbrio entre o ganho econômico imediato e os prejuízos a longo prazo, tanto para o meio ambiente quanto para as pessoas afetadas. Em um mundo onde as questões climáticas e de justiça social são cada vez mais urgentes, essa desconexão entre os interesses econômicos e a realidade socioambiental representa um grande desafio, ou melhor, uma catástrofe anunciada. Vide exemplo da usina hidrelétrica de Belo Monte.
"É urgente atualizar os estudos e projetos das ferrovias para incorporar os impactos climáticos e povos indígenas e povos e comunidades tradicionais no processo decisório"
Mapa de ferrovias do estado do Mato Grosso. Crédito: Sinfra
No mês de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a retomada dos estudos da Ferrogrão, que ligará Sinop (Mato Grosso) ao Porto de Miritituba e Santarém (Pará). Trata-se da ampliação da malha ferroviária até Lucas do Rio Verde. O traçado original do projeto contempla 933 km de extensão, interligando todas as ferrovias do estado de Mato Grosso ao restante do Brasil.
É urgente atualizar os estudos e projetos das ferrovias para incorporar os impactos climáticos, as realidades socioambientais atuais e incluir povos indígenas e povos e comunidades tradicionais no processo decisório durante a fase de licenciamento. No contexto do Mato Grosso e do Brasil, onde os efeitos das mudanças climáticas são cada vez mais evidentes, a desconsideração desse componente nos estudos e nas obras ferroviárias é uma grande falha pois, como já mencionado, são projetos que geram desigualdades nas regiões por onde passam.
A Ferrogrão, assim como outras ferrovias em planejamento, tem sido alvo de críticas não apenas pelo impacto ambiental, mas também pela falta de atenção aos conflitos fundiários e à complexidade social da região. A expansão de ferrovias sem resolver os problemas fundiários e sem incluir um plano robusto de mitigação de impactos climáticos pode agravar ainda mais as tensões sociais e aumentar os danos ambientais. Dentre elas:
Incorporação dos impactos climáticos: A desconsideração de critérios socioambientais nos estudos técnicos é uma omissão crítica. Com a crescente degradação ambiental e as consequências das mudanças climáticas, qualquer projeto de infraestrutura precisa incluir cenários climáticos para evitar maiores desastres ecológicos e sociais.
Conflitos fundiários: As ferrovias não podem avançar sem a resolução adequada dos conflitos de terra, principalmente em estados como Mato Grosso, onde há uma longa história de disputas por terras entre proprietários de terra, comunidades tradicionais e indígenas. Esses conflitos tendem a se intensificar com obras de grande porte se não forem abordados de maneira justa e transparente.
Grandes impactos: Faz-se necessário avaliar os impactos de uma obra em um raio maior que 10 quilômetro, pois muitas vezes eles ultrapassam as previsões técnicas, afetando populações e ecossistemas a grandes distâncias. Isso inclui desmatamento indireto, deslocamento de comunidades e alteração dos ciclos hídricos locais.
Uma análise estratégica e participativa, envolvendo todas as partes interessadas, é essencial para mitigar esses impactos. Isso incluiria a realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) abrangentes e consultas públicas verdadeiramente representativas intermediadas pelo Estado.
Propomos uma visão que vai além da simples atualização técnica dos projetos: uma conversão para a Ecologia Integral e o reconhecimento dos Direitos da Natureza como base ética para qualquer empreendimento. Esse pensamento, inspirado por princípios ecológicos e de justiça social, reflete a necessidade de uma mudança profunda na forma como concebemos o desenvolvimento econômico e sua relação com o meio ambiente.
A Ecologia Integral, um conceito amplamente difundido por movimentos ambientais e até por encíclicas papais como a Laudato Si’, defende a ideia de que as questões ambientais, sociais, econômicas e culturais estão interconectadas. Quando consideramos os impactos de um projeto de infraestrutura, como uma ferrovia, devemos olhar para o conjunto de relações entre os seres humanos, a sociedade e a natureza. Isso implica pensar não só na eficiência econômica, mas também nos direitos das comunidades locais e na preservação dos ecossistemas.
Terras indígenas próximas ao traçado da Ferrogrão
Terra Indígena | Distância (km) |
TI Praia do Mangue | 4,19 |
TI Praia do Índio | 7,84 |
TI Baú | 29,91 |
TI Sawré Juybu | 30,9 |
TI Sawré Muybu | 31,59 |
TI Panará | 38,98 |
TI Mekragnoti | 47,7 |
TI Andira-Marau | 83,68 |
TI Gleba Iriri | 83,81 |
TI Xipaya | 98,62 |
TI Kuruáya | 100,37 |
TI Escrivão | 103,61 |
TI Batelão | 117,33 |
TI Rio Arraias | 120,99 |
TI Cachoeira Seca | 124,21 |
TI Parque do Xingu | 152,51 |
TI Maraó | 156,9 |
TI Capoto/Jarina, | 164,58 |
TI Munduruku | 169 |
TI Kayabi | 169,23 |
TI Roro-Walu | 169,79 |
TI Manoki | 224,94 |
InfoAmazonia
Direitos da natureza
Respeitar os Direitos da Natureza: Esse conceito sugere que a natureza deve ser tratada como um sujeito de direitos, e não apenas como um recurso a ser explorado. Isso implica que ecossistemas, florestas, rios e a biodiversidade devem ter o direito à preservação e regeneração. Qualquer empreendimento que ameace esses direitos estariam em desacordo com uma ética da ecologia integral.
Planejamento que considere o todo: Não se trata apenas de cumprir exigências ambientais mínimas, mas de pensar em soluções que integrem o desenvolvimento humano e a proteção ambiental. Obras de infraestrutura deveriam ser planejadas com participação dos grupos impactados para minimizar o impacto ambiental, utilizando tecnologias sustentáveis, traçando rotas que causem menores danos e compensando adequadamente qualquer impacto inevitável.
Justiça social e resolução de conflitos fundiários: Reconhecer os direitos das comunidades afetadas, sejam elas tradicionais, indígenas ou rurais, é parte da Ecologia Integral. Um verdadeiro processo de escuta e participação é necessário para garantir que os interesses dessas populações sejam respeitados e que os conflitos fundiários sejam resolvidos de forma justa, evitando o deslocamento forçado ou a marginalização.
Longo prazo: A conversão para uma Ecologia Integral exige um foco em sustentabilidade a longo prazo. Projetos como ferrovias precisam ser pensados para que seus benefícios sejam duradouros e não causem danos irreparáveis ao meio ambiente. Isso significa avaliar seus impactos sobre o clima, a biodiversidade e as populações humanas não só hoje, mas também nas próximas décadas.
Ao incorporar esses princípios, estaríamos avançando para um modelo de desenvolvimento que não apenas gera “riqueza”, mas também garante que essa “riqueza” seja distribuída de forma justa e que o meio ambiente seja protegido para as gerações. Isso é vital em um contexto como o do Brasil, onde a biodiversidade e os bens naturais são fundamentais para nossa existência, mas também são vulneráveis e finitos.
Mato Grosso, 07 de novembro de 2024
Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
Comissão Pastoral da Terra(CPT)
Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental
Por Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Sobre a terra devastada por monocultivos tóxicos de soja e milho transgênico, indígenas Guarani Kaiowá – mulheres, crianças, homens, jovens e idosos – montam barracas de lona e iniciam mais uma retomada de parte da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, Mato Grosso do Sul. Desde 2011, a TI foi identificada e delimitada pela Funai (Fundação Nacional do Índio) em 12 mil hectares, mas a demarcação foi barrada por ações judiciais, em um estado que protagoniza escândalos na venda de sentenças judiciais.
Na retomada Yvy Ajhere, lideranças Guarani Kaiowá recebem jornalistas para uma conversa sobre a luta por terra e território. Crédito: Rebeca Bastos - Ascom AATR
Falta tudo na retomada: água potável, alimento, remédios, cuidado médico para quem precisa, falta segurança – jagunços a serviço de fazendeiros rondam dia e noite o local. Sobra a violência do Estado, que se faz presente pela ausência, no total desamparo ao povo que, desde 1500, tenta recuperar seus territórios invadidos e saqueados por Europeus e, agora, por fazendeiros do agronegócio que exportam grãos à China e países da Europa.
É por causa dessa ausência estatal, ancorada no racismo histórico e colonial que estrutura a sociedade brasileira, que os Guarani Kaiowá, segundo maior povo indígena do Brasil, com mais de 64 mil habitantes no Mato Grosso do Sul, entendem que nenhuma demarcação de suas terras será feita, mesmo sendo lei, e que a única forma de estar em seu tekoha (lugar em que se é, na língua guarani) é por meio das retomadas. A demarcação tem sido feita pelos próprios indígenas, com seus pés, rezas e cânticos.
Barracas de lona da retomada são instaladas sobre os campos de soja e milho de fazendas do agronegócio exportador. Falta água e comida nas retomadas, e o solo está contaminado com agrotóxicos. Crédito: Tales Damascena - Kalunga Comunicações
Ao todo, o povo Guarani Kaiowá demanda como suas terras ancestrais 700 mil hectares em todo o Mato Grosso do Sul, cerca de 2% da área do estado, que tem 35 milhões de hectares. No entanto, há décadas eles têm sido obrigados a viver em reservas diminutas, que confinam milhares de pessoas em espaços insuficientes para a manutenção de seus modos de vida.
As mais recentes retomadas aconteceram em julho desse ano, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina. Ao todo existem, hoje, sete retomadas nessa TI. Os ataques de fazendeiros, jagunços e policiais militares aos indígenas em seus territórios reocupados são virulentos. Atropelamentos, tiros com armas de fogo e bala de borracha, espancamentos, perseguição, tortura, tentativas de assassinato. São inúmeros os relatos de violência contra as pessoas acampadas noticiados pela imprensa.
A Força Nacional foi enviada em julho pelo governo federal para garantir alguma segurança aos indígenas diante do aumento da violência de ruralistas contra eles. Ainda assim, houve denúncias de que policiais da Força Nacional estavam interagindo amistosamente com jagunços que cercavam as retomadas para atacar os Guarani Kaiowá. Em agosto, as equipes da Força se retiraram de uma das regiões sem prévio aviso – mesmo com a tensão instalada –, deixando o caminho livre para novos ataques. Jagunços fortemente armados avançaram contra os Guarani Kaiowá, atirando com armas de fogo e balas de borracha; 10 indígenas foram feridos.
Reunião do povo Guarani Kawioá com jornalistas na retomada Yvy Ajhere, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, na zona rural de Douradina, Mato Grosso do Sul. Crédito: Tales Damascena - Kalunga Comunicações
Um deles, um jovem de 20 anos, levou um tiro na cabeça, e até hoje segue com a bala alojada no crânio. O atendimento inicial recebido por ele no hospital público de Dourados, capital do Mato Grosso do Sul, a 40km do local do ataque, foi marcado por mais violência. "O jovem contou que ouviu de um policial militar, que estava no hospital, que o tiro deveria ter sido para matar. 'Ele disse que o tiro foi errado. Que deveria ter atingido no meio do peito. ‘Que assim matava logo o vagabundo'", afirma reportagem sobre o caso.
No Mato Grosso do Sul, estado dominado por monocultivos de grãos do agronegócio exportador, a sanha contra os povos originários é histórica. Há pelo menos 20 anos, a violência que se vê hoje contra as retomadas da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica já se enraizava no estado, degenerando em expulsões, torturas, sequestros, assassinatos e massacres. Em 2016, o Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowá e entidades apoiadoras da causa indígena, protocolou junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) uma denúncia contra o Estado brasileiro "por violações aos direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, no Protocolo de San Salvador e na Convenção de Belém do Pará".
Lideranças indígenas falaram a jornalistas sobre sua espiritualidade e sobre a força das nhandesi e nhanderu para a permanência no território. Crédito: Júlia Barbosa - CPT Nacional
Atualmente, a instabilidade jurídica das demarcações e a violência de ruralistas e latifundiários contra os povos indígenas em todo o Brasil, e em especial no Mato Grosso do Sul, se intensificou com a lei do marco temporal, aprovada pelo Congresso em outubro de 2023, determinando que os indígenas somente têm direito à demarcação das terras que estavam ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Um mês antes da aprovação da lei pelo Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a tese do marco temporal. Agora, porém, além da lei – inconstitucional – já aprovada, está em discussão o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) número 48, que pretende incluir na carta magna a tese do marco temporal.
Visita de jornalistas e comunicadoras populares
Diante de todo este cenário de violência colonial, especialmente em territórios ocupados pelos Guarani Kaiowá no Cerrado sul-matogrossense, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e a Articulação Agro é Fogo, em parceria com entidades e movimentos da sociedade civil que trabalham na defesa do Cerrado e dos povos e comunidades tradicionais que o coabitam, realizaram em Dourados, entre os dias 13 e 16 de outubro, o “I Encontro de Comunicadoras/es Populares e Jornalistas: o Cerrado e seus Povos”.
O encontro reuniu 20 jornalistas do sul, sudeste e centro-oeste do país, além de comunicadoras e comunicadores populares quilombolas, indígenas e de comunidades tradicionais de diferentes territórios do Cerrado, com o objetivo de ampliar a difusão das informações sobre este bioma, seus povos e comunidades, e os desafios na defesa dessa região ecológica.
Encontro entre indígenas Guarani Kaiowá e jornalistas aconteceu em outubro, e contou com a presença de profissionais do sul, sudeste e centro-oeste do país. Crédito: Rebeca Bastos - Ascom AATR
De modo especial, o encontro propiciou às pessoas participantes um contato mais próximo com a luta dos Guarani Kaiowá por meio de visitas às retomadas Laranjeira Nhanderu II, na Terra Indígena Brilhantepeguá, no município de Rio Brilhante, e à retomada Yvy Ajhere, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, tendo no horizonte possibilidades de denúncia sobre as violações sofridas, considerando que as dinâmicas que se desenham nesta localidade têm se configurado como modelo a ser projetado para todo o Cerrado.
Jornalistas e comunicadoras foram recebidas com cantos e danças rituais e puderam ouvir, por horas, relatos em primeira pessoa das violências sofridas, perpetradas ao longo de décadas pelo estado brasileiro e latifundiários, mas também estratégias de resistência baseadas na força espiritual das nhandesy e nhanderu – rezadoras e rezadores –, no respeito à ancestralidade, na coletividade e na soberania alimentar ancorada nos modos de vida tradicionais. Na retomada Laranjeira Nhanderu II, a produção agroecológica dos Guarani Kaiowá é escoada para instituições de ensino locais, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que é federal.
As visitantes foram estimuladas pelas lideranças a fazer denúncias, mas também anúncios sobre as conquistas do povo, como o destaque de jovens Guarani Kaiowá que se dedicam aos esportes e participam de competições oficiais, o ingresso em universidades, a formação de mestras e doutoras indígenas na academia, a manutenção da cultura, a força da sabedoria de anciãs e anciãos, o protagonismo das mulheres Guarani Kaiowá nas lutas e a força ancestral do povo e sua disposição em retomar e permanecer em seu tekoha.
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Massacres no campo
#TelesPiresResiste | O capital francês está diretamente ligado ao desrespeito ao meio ambiente e à vida dos povos na Amazônia. A Bacia do Rio Teles Pires agoniza por conta da construção e do funcionamento de uma série de Hidrelétricas que passam por cima de leis ambientais brasileiras e dos direitos e da dignidade das comunidades locais.