“A história vai cobrar e seus filhos e netos irão culpá-lo pelo fato de ter despejado aquelas pobres famílias. Existe uma Lei Superior a todas as leis escritas que é uma lei congênita a todo ser humano, a ‘lei da consciência’”, esta afirmação foi estopim para que o juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-AM), Roger Luiz Paz de Almeida, ingressasse com uma ação alegando denunciação caluniosa contra o autor da declaração, o indigenista Egydio Schwade.
O indigenista emitiu esta “sentença”, no Fórum de Presidente Figueiredo, diante da decisão liminar concedida pelo juiz que autorizava o despejo de aproximadamente 30 famílias da Comunidade Terra Santa, pessoas que estavam estabelecidas no lugar há mais de 10 anos na ocasião. Ao concluir a fala, Egydio foi retirado à força pelo magistrado, que desconsiderou mesmo sua condição de pessoa idosa (Lei n. 1074/2003 – Estatuto do Idoso).
Cabe salientar que todo o problema nasceu de um processo judicial viciado. A Comunidade Terra Santa não teve seu direito de defesa respeitado em diferentes momentos do processo, que finalizou com um Mandado de Imissão de Posse assinado pelo juiz, determinando a destruição de casas e a retirada de agricultores. Além de ser uma comunidade pobre, com pouco domínio sobre seus direitos e dos trâmites de um processo judicial, parte dos documentos que compunham a defesa da comunidade foi extraviada ao longo da tramitação. Nem mesmo assessoria jurídica foi garantida à comunidade, que acabou a mercê de favores prestados por diferentes advogados. O juiz não foi capaz de observar esses problemas? É preciso lembrar que a comunidade se instalou na terra em 1999, dez anos antes da abertura do processo, o que lhe daria direito à propriedade, caso houvesse sido observado o artigo 191 da Constituição Federal.
A violência sofrida pelo indigenista teve registro no Blog da Casa da Cultura Urubuí por meio de um relato descrito pelo próprio indigenista. Sabendo da publicação o juiz Roger ingressou com a ação criminal por calúnia e difamação. A Comissão Pastoral da Terra denunciou a postura do juiz, via Ouvidoria, ao CNJ, mas não foi aceita por exigirem forma diferente. Com essa negativa, Egydio protocolizou individualmente uma reclamação sobre o fato ocorrido no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) - conforme art. 67 do Regimento Interno do colegiado - que encaminhou à Corregedoria-Geral do TJ-AM, visto que houve flagrante violação dos preceitos estabelecidos na Constituição Federal, Lei Orgânica da Magistratura e ética profissional compatíveis com a profissão, tais como: imparcialidade, independência, cortesia, prudência, decoro.
Solicitou as filmagens e as devidas diligências com as pessoas que presenciaram o fato, na expectativa que houvesse a apuração do que fora exposto na denúncia. Porém, apesar de expresso dentre as atribuições da Corregedoria-Geral conhecer das representações e reclamações relativas ao serviço judiciário, determinando ou promovendo as diligências que se fizerem necessárias ou encaminhando-as aos órgãos competentes (artigo 3º: “VI -; XII), infelizmente, o corregedor arquivou o processo alegando falta de provas.
De fato, a estrutura dos Fóruns dos municípios do interior do Amazonas, no geral, carecem de equipamentos modernos. Contudo, em um ambiente onde diariamente se tratam litígios de toda espécie, esperava-se, no mínimo, que houvesse câmeras filmadoras para resguardar tanto os servidores como as partes que chegam ali. Ao que tudo indica, em Presidente Figueiredo, há falta deste equipamento, uma vez que se optou pelo arquivamento por ausência de provas. Neste caso, um simples vídeo comprovaria facilmente a truculência com que foi tratado Egydio Schwade.
Cabe enfatizar que, ao representar ao CNJ, Egydio Schwade fez uso de seu direito fundamental de petição - art. 5º, XXXIV, “a”, CF/1988 – que preconiza: “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Tal direito alcança a forma individual e coletiva. O indigenista neste processo não buscava assegurar um direito pessoal, mas de uma coletividade vulnerável que, no trabalho responsável com a terra, são professores, mas são desconhecedores dos institutos jurídicos e seus labirintos.
LEIA TAMBÉM: Amazônia: agir com sabedoria é agir a favor da terra
Egydio Schwade, uma homenagem merecida
Dito isto, os movimentos sociais subscritos vêm a público se solidarizar com o indigenista Egydio Schwade e repudiar a tentativa desproporcional do servidor público, juiz Roger Luiz Paz de Almeida, em querer a todo custo calar e intimidar um cidadão que ao longo de sua existência, sustenta sua história de vida na luta pela construção de uma sociedade justa e igualitária, em que a defesa dos pequenos é uma missão, pois:
Desde 1963 o indigenista iniciou trabalho com a população indígena no Noroeste de Mato Grosso, mas passou a maior parte do tempo na Amazônia. Fundou em 1969 a Operação Amazônia Nativa (OPAN, na época denominada Operação Anchieta), com sede em Cuiabá/MT, e também foi um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 1972, órgão que coordena os trabalhos indigenistas da Igreja Católica no Brasil, do qual foi o primeiro Secretário Executivo (1973-1980). Participou também da fundação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha os pequenos agricultores no Brasil.
Foi reprimido pela Ditadura Militar, durante todo o tempo em que foi secretário do CIMI e até o fim do Regime Militar no Brasil, mas não se intimidou e continuou a luta em favor dos povos indígenas denunciando as sistemáticas violações dos direitos destes povos.
Casou e constituiu família com a indigenista Doroti Alice Müller Schwade e em 1980 transferiu-se com a família para o Amazonas com intuito de trabalhar com o povo Waimiri-Atroari. No município de Itacoatiara fez levantamentos da região denunciando as violências cometidas contra este povo.
Em 1985, com o fim da Ditadura Militar, obteve autorização da FUNAI de iniciar o primeiro programa de alfabetização do povo Waimiri-Atroari na sua língua materna. O trabalho foi interrompido justamente no momento em que os índios começavam a revelar a história de atrocidade da qual foram vítimas e pouco antes da criação do Programa Waimirí-Atroari (PWA).
Em Presidente Figueiredo colaborou com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e os movimentos sociais no município, além de continuar atuando em favor das causas indígenas. Neste período foi articulador do Setor de Educação Indígena do Conselho Indigenista Missionário - Norte I no Amazonas e Roraima (1994-1995) e articulador do Setor de Auto-sustentação das comunidades indígenas do mesmo Regional do CIMI (1996-1997).
Em 1992 criou a Casa da Cultura do Urubuí (CACUÍ) visando guardar a memória do povo Waimiri-Atroari e oferecer subsídios de história da região, principalmente aos estudantes do município e do Estado. Durante vários anos a Casa da Cultura do Urubuí, manteve a única biblioteca acessível aos estudantes do Município e ainda hoje mantém este importante arquivo étnico-histórico da região.
A partir de 1997 vem se dedicando de modo especial, com toda a família, a agricultura familiar, ministrando cursos em apicultura e agroecologia a agricultores familiares e representantes de mais de 30 povos indígenas, inclusive Waimiri-Atroari, onde infelizmente devido ao esquema repressivo do Programa Waimiri-Atroari, não foi possível dar continuidade e assistência aos índios nesta área.
Atualmente, além dos afazeres de apicultor, é um dos coordenadores do Comitê Estadual da Verdade, Memória e Justiça do Estado do Amazonas.
Fica aqui um questionamento: qual o motivo de tanto ódio e consequente perseguição de um Juiz a um Ativista que tem como filosofia/ideologia de vida a luta por justiça e igualdade entre os seres humanos?
Assim sendo, indignados e indignadas, não aceitamos que um agente estatal se aproprie do aparato jurídico para perseguir os pobres e impedir que a ação daqueles que se posicionam em suas defesas seja calada por instrumentos processuais. Junto com Egydio Schwade lutamos para que o direito civil deixe de servir para que os ricos roubem os pobres e o direito penal deixe de impedir que os pobres reajam.
Manaus/AM, 16 de março de 2017.
Assinam:
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CPT – Comissão Pastoral da Terra
Pastoral da Pessoa Idosa da Arquidiocese de Manaus
Pastoral da Criança da Arquidiocese de Manaus
Pastoral Operária da Arquidiocese de Manaus – GT de Mulheres da Economia Solidária
Coordenação de Pastoral da Arquidiocese de Manaus
Comunidades Eclesiais de Base do Regional Norte 1 / Amazonas e Roraima
Rede Um Grito pela Vida
Casa da Cultura do Urubuí – Cacuí / Presidente Figueirede
Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas
Movimento Feminista Maria Sem Vergonha
MUSA - Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas
Levante Popular da Juventude / AM
Espaço Feminista URI-HI
Conselho de Leigos e Leigas da Arquidiocese de Manaus
MOCOCI – Movimento Comunitário pela Cidadania
Rádio A Voz das Comunidades 87,9 FM
ALMAZ – Articulação das Mulheres Homoafetivas e Aliadas do Amazonas
FLGBT/AM – Fórum de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis do Amazonas
Associação Comunitária Terra Santa / Presidente Figueiredo