Mais de 5 mil romeiros e romeiras se reúnem por moradia, trabalho e reconstrução de comunidades atingidas por enchentes
Por Fabiana Reinholz, Katia Marko, Marcela Brandes e Marcos Corbari | Brasil de Fato RS
Romaria neste ano foi realizada em uma das cidades mais atingidas pelas enchentes no RS - Foto: Nilton Filmes
Com o tema “Reconstruir e cuidar da Casa Comum com fé, esperança e solidariedade”, a 47ª Romaria da Terra aconteceu nesta terça-feira de Carnaval (4), na cidade gaúcha de Arroio do Meio, no Vale do Taquari. A região escolhida para a edição deste ano foi bastante afetada pelos desastres climáticos que se abateram sobre o RS desde 2023, intensificado com a enchente de maio de 2024, que deixou o bairro Navegantes completamente destruído no município. Romeiros e romeiras de diferentes regiões do estado, e também de fora, reuniram-se para celebrar a fé e a luta pela defesa do planeta, do meio ambiente, da moradia, da população e da justiça social.
O cardeal Dom Jaime Spengler destaca a tradição de 47 anos de dinamismo pastoral envolvendo a questão da terra. “Vale recordar aquilo que o Papa Francisco há anos atrás pontuou como uma necessidade urgente: terra, teto e trabalho para todos. A Romaria da Terra de alguma forma repercute esse desejo do Santo Padre. Esse ano nós estamos aqui numa região marcada pela tragédia climática do ano passado, então celebrar a Romaria da Terra neste pedaço de chão aqui em Arroio do Meio é também trazer a memória daquilo que aconteceu e ao mesmo tempo dar atenção e promover consciência a respeito da necessidade de carinho, cuidado e necessidade de moradia, porque todos têm direito a viver com dignidade. Teto e trabalho são a condição mínima para ter uma vida digna”, pontua.
Momentos de mística permearam a Romaria. Foto: Luiz Pasinato - CPT RS
A concentração para a procissão aconteceu no Seminário Sagrado Coração de Jesus, local que durante a enchente de maio de 2024 acolheu muitas pessoas atingidas da região. As boas vindas aos romeiros e romeiras foi realizada pelo bispo Dom Itacir Bassani. “Viemos aqui para agradecer a presença de vocês durante esses dois anos de luta para sobreviver e para reconstruir a nossa vida, a nossa cidade e cuidar da nossa terra, da nossa casa comum. Aqui não estamos como fugitivos e desertores, mas como peregrinos de esperança, fé e solidariedade”, disse.
A caminhada de 2,5 km foi em direção ao centro do município e durou cerca de duas horas debaixo de um sol muito forte. Mas nem o extremo calor afetou a alegria dos envolvidos em estarem reunidos em manifestação de esperança e fé. Estavam presentes entidades sindicais, movimentos sociais, religiosos de diversas religiões, indígenas, idosos, crianças, jovens.
Solidariedade dos de baixo
O frei José Frey, que trabalha nos assentamentos da reforma agrária de Hulha Negra, Candiota e Aceguá, no RS, ressaltou que o povo, quando precisa manifestar a solidariedade, enfrenta tempestades e sol quente com sorriso no rosto. “Estamos em milhares de pessoas aqui e se você observar a classe dessas pessoas vai perceber que são pobres. Em toda solidariedade, sempre quem mais é solidário é o pobre. É o pobre quem trabalha, que sabe o que é trabalhar, o quão pesado é. E quando vê seus companheiros nessa situação de tragédia, são os primeiros que vão ajudar. Enquanto que as pessoas que poderiam ter condições muito melhores de solidariedade não aparecem. E ainda criticam quem vem fazer a solidariedade.”
Para a romeira Elizabeth Gerhardt, de São Caetano (RS), que teve sua lavoura atingida pela enchente, estar na celebração neste ano significa recomeço. “Muito importante esta Romaria aqui em Arroio do Meio para as pessoas verem a tragédia. Uma pena que não dá para ver a tragédia do interior, da agricultura mesmo.”
Foto: Luiz Pasinato - CPT RS
Nelir Casotti, 62 anos, moradora há 38 de Arroio do Meio no bairro Navegantes, ainda chora ao lembrar do que aconteceu quando perdeu tudo em sua casa e seu armazém. “Em setembro a água entrou 20 cm do piso, e em 2024, a água passou o telhado. Eu voltei para minha casa, mas minha filha perdeu tudo. Morou por nove meses comigo e agora conseguiu um espaço pela compra assistida do Governo Federal.”
Ela comenta sobre a atual situação de quem foi atingido na região. “Essa Romaria representa muita esperança e fé em Deus. Nós sofremos muito, ficamos 21 dias na casa de parentes e tivemos muita ajuda. Foi tudo muito triste, ficamos sem água, internet, luz, nada. Rezo para que as coisas voltem a ser como antes. Mas aqui quase ninguém voltou. Muita gente segue em conteiners.”
Romaria itinerante
Gerson Borges, membro do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), de Santa Cruz do Sul (RS), ressalta que após 10 meses da enchente, observa-se uma reconstrução muito lenta. Ao longe, parece tudo resolvido, mas pouco foi solucionado até o momento.
Destaca que a Romaria da Terra se diferencia de todas as outras romarias por ser itinerante. “Normalmente aonde tem um problema social é o local escolhido. Principalmente pelo problema agrário, mas também por questões climáticas como no caso. Então essa Romaria, aqui em Arroio do Meio, está acontecendo porque as pessoas viveram uma grave crise climática, e é uma oportunidade para que as pessoas conheçam o que esses habitantes daqui viveram, mas também numa perspectiva de futuro, pensando que é possível superar os problemas tanto da questão agrária quanto dos problemas climáticos a partir de muita luta do povo organizado.”
Foto: Luiz Pasinato - CPT RS
Crise climática
Vanderleia Nicoline, também do MPA, de Progresso (RS), complementa, lembrando da Missão Sementes de Solidariedade. “Todas as romarias são muito importantes, mas essa em especial é o marco do recomeço, da resistência dessas famílias e desse povo que foi duramente atingido por essas cheias, por essa catástrofe. É o momento da gente trazer esperança e partilha para esses refugiados dessa crise climática. De retornar aqui e dar um abraço fraterno em todos aqueles que estivemos juntos visitando e preenchendo cadastros num período tão difícil. A Missão Sementes de Solidariedade representa isso, a resistência, o novo, a fartura, o recomeço.”
Luiz Antônio Pasinatto, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), destacou a importância de sentir na pele todo sofrimento das pessoas que perderam suas casas, seus animais, suas terras, muitos dos quais, perderam a vida. “Essa Romaria é uma das últimas romarias que está acontecendo que tem maior número de romeiros e romeiras. Todos ouviram o chamado e estão aqui motivados para participar e sentir, aqui no chão de Arroio do Meio, esse momento tão significativo que é caminhar onde as águas ocuparam há pouco tempo toda a cidade. A Romaria vem aqui para prestar essa solidariedade e para a gente pensar no novo modelo de sociedade sustentável, baseado na agroecologia, no cuidado de todas as vidas.”
Foto: Nilton Filmes
Celebrar a vida e as lutas do povo
“Eu tenho um compromisso de fé, venho há anos na Romaria celebrar a vida, as lutas do povo principalmente e pedir forças pelas lutas que vêm pela frente”, comenta Célio Cadona, do MPA de Ijuí.
Agatha, de Carlos Barbosa, pela primeira vez participando da Romaria, comenta emocionada com o evento que participa para levar apoio. “Eu vim aqui para ajudar esse povo sofrido porque eu emociono muito por tudo o que eles passaram. Estou aqui para ajudar eles. Esse é o mínimo que podemos fazer.”
Também em sua primeira participação, Trinidad Aguilar, da Colômbia, ativista do Movimento Nación Pachamama, está muito contente e surpresa por encontrar tanta gente reunida lutando pela terra e por todos os seres que habitam nela. “O movimento acompanha a Romaria há alguns anos, mas é a primeira vez que participamos. Uma grande festa coletiva rural e campesina. Estamos aqui por uma mensagem de esperança em meio a crise climática planetária, ainda somos muitas pessoas que queremos ter outras opções, de não nos render a tudo que está acontecendo e cultivar a esperança, o espírito da fraternidade dos seres humanos.”
Foto: Nilton Filmes
João Jair, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) de Estrela, afirma que o tema da luta pela moradia digna e das causas dos crimes climáticos são pautas do movimento. “Somos milhares de pessoas que deixamos as nossas casas pela solidariedade, para trazer um alento para essas pessoas que foram atingidas. Estamos em busca de que os direitos sejam aplicados na prática, segurança por moradia e alimentar.”
Ele ressalta que os programas sociais não estão sendo satisfatórios. “O setor imobiliário inflacionou o valor das casas e estamos vendo pessoas tendo que se mudar do seu território, em busca de moradia em outros lugares. Esse bairro, Navegantes, foi atingido fortemente por todas as enchentes, aqui todos os moradores foram deslocados de forma provisória, poucas casas definitivas, maioria em conteiners, nesse calor que tem assolado o estado nas últimas semanas. Precisamos da força dessas pessoas aqui hoje para fazer essas coisas mudarem.”
O caminho das águas
Ao longo da caminhada, na primeira parada na igreja Nossa Senhora dos Navegantes foi fixada uma cruz, feita com madeiras dos escombros, com uma faixa com o nome das vítimas da enchente e desaparecidos. Também foi colocada uma pedra em memória da enchente. Poucas estruturas ficaram em pé, entre elas a igreja. O posto de saúde, a escola, inúmeras casas, tudo foi destruído. No percurso, além de canções religiosas, foram ouvidos depoimentos de atingidos e apontado por onde as águas da enchente passaram. Marcas vermelhas mostraram a altura que a água alcançou.
“A água veio sem aviso e quando a água baixou, o cenário era devastador. Lama, somente lama por todo lugar. Perdemos noção das horas, dias, semanas. O objetivo era apenas limpar para poder continuar. Algumas marmitas feitas pelas cozinhas solidárias chegaram a nós e, mesmo frias, tinham um gosto especial”, narrou a agricultora atingida Sandra, em cima do caminhão de som. “Nove meses passaram, para muitos as lembranças, para nós a luta diária pela reconstrução do que foi perdido”, finalizou.
Foto: Nilton Filmes
A professora Luciana Moraes Pillar, da escola Construindo o Saber, que foi atingida pelas três enchentes e está condenada, relata com tristeza. “Há árvores no telhado, a estrutura toda foi mexida e danificada. Aqui estudavam quase 150 alunos, do nível A até o quarto ano, e abrigava a população do bairro que hoje já não reside mais aqui porque não tem condições, isso é muito dolorido. A gente mesmo ainda não acredita no que passou. Essas crianças estão realocadas em outras escolas e as famílias seguem em casas provisórias”, conta.
Cuidar da terra e dos mais pobres
O bispo Humberto Maiztegui Gonçalves, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, reflete, ao observar o cenário, como as águas passaram violentamente pela região. “Ainda vemos tocos de árvores nos telhados, a cinco, seis, oito, dez metros de altura. Casas abandonadas. O que chama mais a atenção é o enorme sofrimento e o pânico, o impacto disso nas pessoas que moravam e que moram aqui. E depois de quase um ano estar assim, não como um monumento ao que aconteceu, mas como um testemunho do que não aconteceu. O posto de saúde, as escolas, a igreja continuam aos pedaços. Mostra que temos uma sociedade que não está preparada para acolher as pessoas que vieram a ser vítimas da crise climática. Principalmente os mais pobres.”
Para ele, a Romaria tem uma longa história e começa com a luta dos camponeses pelo direito à terra. “Hoje, estamos cada vez mais vendo que temos que cuidar da terra para poder nos alimentar e viver nela. Qualquer coisa que se fale de terra é importante, mas aqui temos movimentos populares de agricultores, indígenas, que trabalham com cultura orgânica e familiar, pessoas que realmente querem cuidar da terra e viver com a terra, não apenas viver da terra”, comenta.
Foto: Luiz Pasinato - CPT RS
O pastor Roberto Zwetsch, membro da coordenação nacional da Pastoral Popular Luterana (PPL), observa que a Romaria da Terra dentro do catolicismo não é majoritária, mas é uma expressão viva da pluralidade e da abertura para todos os seguimentos da sociedade que lutam por justiça social, mudanças, transformações. “Essa Romaria é muito oportuna, trazer esse povo todo para esta pequena cidade e mostrar a solidariedade presencial, ativa é importante para todos e principalmente para as pessoas daqui, para mostrar que elas não estão sozinhas e que a reconstrução não precisa vir apenas dos órgãos públicos, pode vir de baixo também.”
“Reconstruir, recuperar terra e esperança”
O presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Edegar Pretto, lembrou do importante trabalho das cozinhas solidárias que deram conta de levar alimento de qualidade para os atingidos e contribuíram nessa rede de solidariedade tão necessária que esta romaria traz para reflexão. “Muitos agricultores perderam não só a casa, o galpão, seus animais, sua criação, perderam inclusive a terra. A terra agricultável, a terra forte, foi para dentro dos rios.”
Ele ressalta que é preciso reconstruir, recuperar terra e esperança. “Porque locais aonde moravam seus avós e pais, a água levou embora. Vemos aqui locais onde as casas estão condenadas, não será mais possível habitar. E o Poder Público tem que dar conta de colocar essas pessoas num lugar habitável. Onde elas realmente possam recomeçar as suas vidas emocionalmente, socialmente e economicamente.”
O ex-ministro Olívio Dutra pontuou a necessidade de preservar e respeitar o meio ambiente para manter um desenvolvimento ecologicamente sustentável. “A mãe natureza é mãe de todos nós, mas que o capitalismo na fase neoliberal quer tirar da mãe natureza tudo o que é riqueza para aumentar seus lucros e socializar a miséria e a pobreza. E o que aconteceu aqui foi a natureza se rebelando com décadas de agressão que vem sofrendo. E esta Romaria é para relembrar tudo isso e mostrar a solidariedade com as famílias que perderam tudo e alguns perderam até pessoas queridas.”
A mística e a missa
Após a caminhada, na praça central, na mística foi feita a leitura da carta da 47ª Romaria da Terra e realizada a missa. Houve um momento da bênção às cozinhas solidárias, a voluntárias e voluntários, à Missão Sementes de Solidariedade e às doações recebidas ao longo do evento.
Foto: Luiz Pasinato - CPT RS
Durante a apresentação da Missão Sementes de Solidariedade, a secretária executiva da Cáritas Regional RS, Jacira Teresinha Dias Ruiz, lembrou que questões climáticas estão aí e não podem ser evitadas. “Temos que estar organizados e mobilizados para enfrentar, com políticas públicas que de fato preparem as comunidades e as famílias para os impactos das mudanças climáticas. No caso da nossa missão, das Sementes Solidárias, são políticas públicas para produção de alimentos através da agricultura familiar e camponesa.”
“Infelizmente o agro tem tomado conta do que é mais sagrado para gente, os recursos naturais. Em todo território brasileiro que ainda tem indígena, a terra continua intacta. Estou me colocando aqui como parte de tudo que está acontecendo e tomar isso como aprendizado para não acontecer novamente. Ser um chacoalhão para cada um de nós”, afirmou Eloir de Oliveira, indígena Mbyá Guarani da retomada Nhe’engatu, de Viamão.
Preparando a Romaria de 2026
O encerramento contou com apresentações artísticas e uma intervenção da Nación Pachamama. Também foram anunciados data e tema da próxima Romaria, que vai destacar a questão indígena, na região das Missões.
“A próxima Romaria da Terra vai acontecer no dia 17 de fevereiro de 2026 no santuário do Caaró, no município de Caibaté. Para nós é de extrema alegria levar essa Romaria para lá após essa, tão profética, sobre a casa comum”, disse a coordenadora da próxima romaria Lisiane Dutra, da Diocese de Santo Ângelo.
Ela destaca que o aprendizado inicia já com a preparação para o evento de 2026. “Teremos a oportunidade de aprofundar ainda mais essa Campanha da Fraternidade. Ano que vem fará 400 anos das Missões e será um momento de refletir sobre essa caminhada, e também dos 270 anos de martírio do Sepé Tiaraju“, complementou Lisiane.
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Créditos: Nilton Filmes
Por Júlia Barbosa | Comunicação CPT Nacional
Nesta quarta-feira (05), o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, julgou procedente o pedido para, reconhecida a usurpação da competência privativa da União, nos moldes do art. 22, I e XXVII, da Constituição Federal, declarar a inconstitucionalidade formal da Lei do Estado de Mato Grosso nº 12.430/2024 - que criminalizava movimentos e organizações de luta pela terra -, nos termos do voto do Relator, Ministro Flávio Dino.
A referida Lei, sancionada pelo Estado de Mato Grosso no ano passado, disciplinaria a aplicação de sanções a ocupantes ditos “ilegais e invasores” de propriedades privadas rurais e urbanas, sendo vedado aos ocupantes direitos básicos, como receber auxílio e benefícios de programas sociais do Estado de Mato Grosso, tomar posse em cargo público de confiança ou contratar com o Poder Público Estadual, entre uma série de outras penalidades absurdas à cidadãos e cidadãs trabalhadores/as do campo, que lutam pelo seu direito legítimo de acesso à terra por meio da política pública da Reforma Agrária.
Em seu voto pela inconstitucionalidade, o senhor Ministro Flávio Dino reforçou que a Constituição da República consagra, no inciso I do art. 22, competir privativamente à União dispor sobre direito penal e, de igual modo, sobre normas gerais de licitação e contratação. Ainda, compreende que a incidência de uma espécie de “Direito Penal Estadual” abala as regras estruturantes da Federação e cria grave insegurança jurídica.
A Lei fere a Constituição, uma vez que o art. 37, XXI, do texto constitucional, é expresso no sentido de que “obras, serviços, compras e alienações sejam contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”, somente permitido exigir “qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. Portanto, a vedação de “contratar com o Poder Público Estadual” ou “tomar posse em cargo público”, estipulada pela Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso, se afasta da garantia constitucional da isonomia, ou seja, da igualdade de todos perante a lei.
As ocupações e acampamentos são modos de resistência histórica de trabalhadores e trabalhadoras rurais, na luta legítima por seu direito ao acesso à terra e à vida digna no campo, sobretudo, pelo direito de continuar existindo. De acordo com os dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc/CPT), no primeiro semestre de 2024, houve uma diminuição de 46% das ações de resistências dos povos - entendidas como Ocupações/Retomadas e Acampamentos -, enquanto as violências promovidas pelo latifúndio e pelo Estado se mantiveram quase constantes, em relação ao ano anterior.
Essa diminuição, a exemplo da Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso, não é por acaso, mas em consequência, também, de tentativas institucionais de criminalização da luta. Neste cenário, é importante reforçar que, enquanto a política de Reforma Agrária não for concretizada de forma efetiva, garantindo a Constituição Brasileira, não haverá paz e justiça no campo, e milhares de vidas continuarão padecendo, vulnerabilizadas à beira das estradas, não só do estado de Mato Grosso, mas de todo o Brasil.
Acesse aqui a decisão completa do Tribunal Superior do STF
A cidade de Jordânia, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, se tornou palco de mais um episódio de violência no campo. No último mês, famílias camponesas do Acampamento Vida Nova sofreram ataques armados coordenados por latifundiários locais, como denunciado pela Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais (CPT-MG) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (FETAEMG).
O caso, formalmente apresentado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) por meio de um ofício assinado pelas entidades, revela uma escalada de violência na disputa por terras na região. O documento narra dois ataques recentes: o primeiro, ocorrido no dia 9 de fevereiro de 2025, quando indivíduos armados invadiram o acampamento, destruíram cercas e instalaram um contêiner de forma irregular; e o segundo, ainda mais grave, no dia 14 de fevereiro, quando cerca de 20 homens armados atacaram brutalmente os trabalhadores e trabalhadoras do acampamento, utilizando armas de fogo e força física, com disparos e espancamentos.
Neste verdadeiro cenário de guerra, em que o lado mais vulnerável é o dos pobres da terra, o que mais preocupa as entidades é a omissão do Estado. Segundo a denúncia, a Polícia Militar foi acionada, mas não interveio para impedir as agressões, e, até o momento, nenhum dos responsáveis foi identificado e responsabilizado. A impunidade nesses casos, segundo as entidades, fere os princípios fundamentais da Constituição Federal e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Cobrança por justiça e medidas de proteção
As organizações que assinam a denúncia ressaltam que a violência no campo não é um caso isolado, mas parte de uma estrutura sistemática de repressão contra camponeses, indígenas e quilombolas que lutam pelo direito à terra. A CPT-MG e a FETAEMG agora cobram do CNDH ações imediatas para garantir a segurança das famílias camponesas e evitar novas tragédias. O ofício solicita que o CNDH:
1. Requisite informações às autoridades responsáveis pela segurança pública de Minas Gerais sobre a negligência no atendimento às famílias ameaçadas;
2. Encaminhe recomendações ao Ministério da Justiça e à Secretaria de Segurança Pública, cobrando medidas de proteção imediata aos trabalhadores e a investigação rigorosa dos crimes cometidos;
3. Acione a Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal para garantir a responsabilização dos envolvidos e assegurar os direitos das famílias camponesas;
4. Monitore continuamente o caso, de forma a evitar novas investidas violentas e garantir a atuação do Estado na proteção dos direitos humanos no campo.
Histórico de conflitos fundiários em Minas Gerais
Minas Gerais possui um histórico de conflitos fundiários e violência no campo, impulsionados pela concentração de terras e o avanço do agronegócio sobre territórios tradicionais e áreas de reforma agrária. Dados da Comissão Pastoral da Terra apontam que o estado é um dos que mais registram conflitos agrários no Brasil, com assassinatos de lideranças comunitárias, despejos forçados e ameaças constantes contra trabalhadores rurais. Segundo o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc/CPT), entre 2014 e 2023, Minas Gerais foi o quarto estado com maior registro de conflitos por terra, água e trabalho no Brasil. Ainda, dados da CPT destacam que, no primeiro semestre de 2024, o estado apresentou o maior número de casos de trabalho escravo, liderando pelo segundo ano consecutivo as ocorrências nesse período.
A violência recente em Jordânia evidencia a falta de proteção efetiva para as populações camponesas, que continuam expostas a ataques organizados sem qualquer resposta concreta por parte do Estado. A omissão das autoridades diante de situações como esta reforça a necessidade de uma intervenção mais firme do governo federal e dos órgãos de direitos humanos, segundo os movimentos sociais.
O Silêncio do Estado e a resistência popular
A ausência de respostas das forças de segurança e do governo de Minas Gerais gera indignação e revolta entre os trabalhadores rurais, que há décadas enfrentam uma luta desigual pela terra. A organização e mobilização popular, segundo as entidades, são as principais ferramentas para enfrentar o avanço do latifúndio e a violência no campo.
“O Estado tem o dever de proteger a vida e garantir os direitos das famílias camponesas. Não podemos aceitar que a violência seja usada como instrumento de intimidação e expulsão dessas comunidades”, afirma Ítalo Kant, da coordenação da CPT-MG.
Enquanto aguardam uma resposta concreta do CNDH e das autoridades competentes, as famílias do Acampamento Vida Nova seguem resistindo, sem saber se estarão seguras no dia seguinte. A luta pela terra, no Brasil, continua sendo uma batalha desigual, onde aqueles que plantam e vivem da terra precisam enfrentar não apenas a força bruta do latifúndio, mas também o silêncio e a conivência do Estado. A CPT-MG e a FETAEMG seguirão acompanhando o caso e trazendo atualizações sobre as ações das autoridades e a mobilização das comunidades camponesas da região.
O coletivo apontou prejuízos causados aos cultivos e à qualidade de vida entre 2023 e 2024
Por Everton Antunes, com informações da CPT Amazonas
Foto: CPT Amazonas
No dia oito de fevereiro, o município de Careiro Castanho (AM) reuniu cerca de 30 camponeses no Encontro de Trabalhadores Rurais, a fim de debater sobre os efeitos da estiagem e das queimadas entre os anos de 2023 e 2024 na região. Os trabalhadores e trabalhadoras rurais que compareceram à atividade representavam as comunidades do Ramal São José, Santo Antônio do Mamori, Ramal do 10 Andirobão e o PA Panelão.
O encontro contou com momentos de partilha a respeito dos desafios enfrentados diante da emergência climática e buscou propor uma “superação coletiva". A partir das discussões, o coletivo também sugeriu a elaboração de um relatório detalhado sobre os danos sociais e econômicos corroborados pelo impacto ambiental, bem como o fortalecimento do Fórum das Comunidades e o diálogo institucional com o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Durante as atividades, os trabalhadores e trabalhadoras do campo ainda avaliaram ações para o cenário de agravamento das queimadas e estiagem em 2025, de modo a construir estratégias de redução dos danos à produção rural e colaborar para a qualidade de vida das comunidades da terra.
Avaliação dos danos
Foto: CPT Amazonas
De acordo com os camponeses e camponesas presentes no encontro, o ano de 2024 foi marcado por prejuízos na produção – desde a perda dos cultivos, em decorrência da falta de chuva, até o aumento dos efeitos da seca. Os participantes também apontaram o isolamento das comunidades, o que dificultou o acesso a serviços essenciais, a exemplo da dificuldade de deslocamento das crianças até as escolas.
Ao longo das atividades, diversas foram as queixas de abandono e omissão do poder público diante dos problemas enfrentados pelas comunidades. O coletivo também destacou a falta de implementos agrícolas e a ausência de financiamentos e políticas públicas de proteção social nas regiões ocupadas.
Entre outros prejuízos apontados pelos trabalhadores e trabalhadoras, cabe destacar a seca dos poços, a escassez de água potável para consumo e plantio, problemas respiratórios causados pela fumaça, e a estiagem de rios e igarapés. Segundo os moradores da região, não houve ajuda emergencial ou assistência aos ramais neste período, o que expôs a região a condições de “extrema vulnerabilidade social”.
Estimativas
Os habitantes dos ramais preveem a persistência da seca no ano de 2025, caso medidas de contenção dos impactos ambientais não sejam executadas. Esse cenário, conforme documento elaborado na ocasião da atividade, “pode aumentar o isolamento das comunidades” e “prejudicar ainda mais a produção agrícola”.
“Os participantes enfatizaram a urgência de políticas públicas que abordem a regularização fundiária e promovam o fortalecimento do Fórum das Comunidades, além de um diálogo contínuo com órgãos como o MDA e o Incra, para enfrentar os desafios [ocasionados] pelas mudanças climáticas”, sinalizou o relatório do encontro.
Desdobramentos
Foto: Reunião INCRA/MDA com Lideranças e Entidades 11fev 2025.
No dia 11 do último mês, o Incra e o MDA receberam representantes das comunidades amazonenses para ouvir demandas. Em diálogo, os órgãos se comprometeram a visitar o município de Careiro Castanho, a fim de construir alternativas de fortalecimento à agricultura familiar e elaborar ações preventivas diante do quadro de emergência climática.
O Encontro de Trabalhadores contou com o apoio de entidades da Associação ACOPROSA, Ramal Mamori, Ramal São José, Ramal do 10 Andirobão, PA Panelão, Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras dos Direitos, IAS e Rádio Rio Mar.
O seringal é tradicionalmente ocupado pelas famílias seringueiras desde a década de 90, sendo um território de disputas entre as famílias posseiras e grandes fazendeiros interessados na terra
A violência que impera sobre os conflitos no campo no sul do Amazonas é uma constante. Boca do Acre, chamada de “terra sem lei”, mais uma vez é palco da violência promovida pelo latifúndio e vítima do descaso por parte do poder público. Na última terça-feira, 25 de fevereiro, as famílias posseiras do Seringal Entre Rios se depararam com uma equipe de segurança armada dentro do território seringueiro, que acreditam ter sido contratada pelo fazendeiro interessado na área, impedindo a passagem de moradores e controlando a movimentação dos trabalhadores e trabalhadoras, violando seu direito fundamental de ir e vir.
Amedrontadas pela presença dos homens armados, as famílias solicitaram a mediação da CPT para dialogar com a suposta equipe de “segurança” que, perguntada sobre a origem da ordem para ação, se negou a responder, afirmando que estaria cumprindo uma lei federal para fiscalização ambiental, mas sem apresentar qualquer documento e exigindo informações pessoais de todas as famílias posseiras. As famílias questionaram, pois os mesmos não são servidores do Ibama, ICMBio ou identificados por outros órgãos de fiscalização ambiental, portanto não têm competência ou autorização para atuar na área. Além disso, a empresa está, neste momento, iniciando a construção de uma guarita para identificação e controle da entrada e saída das pessoas no seringal.
“Ali, moram mais de quarenta famílias, são tradicionais e trabalham a terra de forma sustentável naquela região. O que acontece é uma tentativa de tomar a terra das famílias para expansão do latifúndio, então estão tentando coibir e amedrontar as famílias dessa forma, o que é ilegal, pois o direito de ir e vir dessas pessoas não pode ser violado. Foi o que percebemos pelo nosso acompanhamento dos conflitos e escutas, mas as famílias permanecem lá e não vão abrir mão”, afirmou um agente da CPT Acre, que acompanha a comunidade no sul do Amazonas pela maior proximidade geográfica e atua na mediação de conflitos e denúncias de violações dos direitos dos povos na região.
O Seringal Entre Rios é tradicionalmente ocupado pelas comunidades seringueiras desde a década de 90, sendo um território de disputas entre as famílias posseiras e grandes fazendeiros interessados na terra. Nestes quase quarenta anos de ocupação, já enfrentaram diversas violências promovidas pelos latifundiários e pela negligência do Estado, tendo, inclusive, um histórico de pistolagem contra as comunidades tradicionais na região.
AMACRO - zona de desenvolvimento ou zona de conflitos?
O município de Boca do Acre, onde está localizado o seringal, integra a região da Amacro, também conhecida como Zona de Desenvolvimento Sustentável (ZDS) Abunã-Madeira, que abrange porções dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia. Prometida como modelo de desenvolvimento com foco na sociobiodiversidade, a Amacro se tornou epicentro de grilagem para exploração madeireira e criação de gado, com altas taxas de desmatamento, queimadas e conflitos.
Dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da CPT, destacam que, no primeiro semestre de 2024, a violência se intensificou na região da Amacro, que junto às zonas de desenvolvimento da Amazônia Legal e do Matopiba, concentrou grande parte dos conflitos no campo nesse período. Esse aumento da violência relacionada aos conflitos agrários na Amacro foi na contramão do panorama nacional de ocorrências de conflitos no campo, que apresentou uma pequena queda em relação ao mesmo período em 2023.
Entre janeiro e junho de 2024, os dados de violência por conflitos na Amacro apresentaram 10 pessoas Ameaçadas de Morte, 9 casos de Criminalização e 7 episódios de Intimidação. Os posseiros estão entre as principais vítimas e os fazendeiros são os maiores causadores dessas violências. De 2023 para 2024, relativo ao primeiro semestre, os números de grilagem tiveram um salto de 117% (de 6 para 13 casos), e os registros de pistolagem cresceram de forma exorbitante, de 2 para 11 casos, um aumento de 450%.
Não apenas os dados, mas o histórico e o cotidiano de violência na região intensificam a insegurança das famílias do Seringal Entre Rios, que temem pelas suas vidas e se encontram, agora, coagidas pela presença de homens não identificados armados no território, com seus direitos constantemente violados pelo latifúndio e pelo Estado. Com o acompanhamento da CPT, as famílias estão formalizando denúncia aos órgãos competentes, mas as violências a que são submetidas se intensificam a cada minuto, enquanto a política de Reforma Agrária continua paralisada no Brasil.
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Massacres no campo
#TelesPiresResiste | O capital francês está diretamente ligado ao desrespeito ao meio ambiente e à vida dos povos na Amazônia. A Bacia do Rio Teles Pires agoniza por conta da construção e do funcionamento de uma série de Hidrelétricas que passam por cima de leis ambientais brasileiras e dos direitos e da dignidade das comunidades locais.