Um pouco dos sabores deste imenso Brasil foi levado ao IV Congresso Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), realizado entre os dias 12 e 17 de julho, no campus da Universidade Federal de Rondônia (Unir), em Porto Velho. Divididas por Grandes Regiões, cozinheiras e vários/as ajudantes contribuíram na alimentação das centenas de pessoas que participaram do evento.
"Termina o IV Congresso da CPT e eu volto pra casa repetindo o que ouvi: ah! se não fosse a CPT!". Confira análise da pastora metodista, Nancy Cardoso, agente da CPT Bahia, sobre os clamores que surgiram no IV Congresso da CPT.
(foto: Joka Madruga)
O povo diz assim como quem fala de uma caneca velha, boa de beber água... ou qualquer outra coisa, então, um café. Uma caneca muito usada, marcada pelo tempo. Desse imaginário vivido no IV Congresso retomo uma perspectiva esperançosa para o trabalho pastoral e um chamado de atenção. A CPT não é caneca! ... é a vontade de beber!
Retomo um texto antigo sobre movimentos sociais porque ele vai se confirmando.
De todos os objetos, os que mais amo são os usados.
As vasilhas de cobre com as bordas amassadas,
os garfos e as facas cujos cabos de madeira
foram colhidos por muitas mãos.
Estas são as formas que me parecem mais nobres.
Estes ladrilhos das velhas casas
gastos por terem sido pisados tantas vezes,
estes ladrilhos onde cresce a grama
me parecem objetos felizes.
Impregnado do uso de muitos,
a miúde transformados, foram aperfeiçoando suas formas
e se fizeram preciosos porque tem sido apreciados muitas vezes.
Agradam-me, incluso, os fragmentos de esculturas com os braços cortados.
Viveram também por mim.
Caíram porque foram trasladados.
Derrubaram-nas, talvez, porque estavam muito altas.
As construções quase em ruína parecem todavia projetos sem acabar,
grandiosos; suas belas medidas podem já imaginar-se,
mas ainda necessitam de nossa compreensão.
E além do mais já serviram, inclusive já foram superadas.
Todas estas coisas me fazem feliz.
Bertold Brecht
Os movimentos sociais e as organizações dos/das trabalhadores/as são objetos usados, impregnados de uso e, por isso mesmo, plenos de sinais do tempo. Objetos como utensílios, coisas de usar e precisar, coisas de fazer caber a água, a farinha, o pão. No poema de Brecht as bordas amassadas das vasilhas, a madeira do cabo da colher já gasta são consideradas “materiais nobres” porque usados, gastos. Por isso... amados!
O trânsito, o tráfego de ser pisado tantas vezes num mesmo lugar desgasta os ladrilhos “das velhas casas”; entre as fissuras do tempo e do uso a grama se insinua: e são ladrilhos felizes. Gastos ladrilhos fissurados e felizes.
O “uso de muitos” transforma e aperfeiçoa formas, tantas e tantas vezes visitados, movidos os objetos usados se fazem preciosos. Nobres e preciosos não porque novos e inovadores. Nobres e preciosos porque persistentes, remanescentes, insistentes.
O poema vai se ocupar também de objetos que existem de forma fragmentada, que já foram outra coisa “com braços” e inteireza... mas agora se apresentam assim como se alguma coisa faltasse – alguém diria: mas “viveram por mim”! Foram trasladados! Sofreram mudanças! Foram derrubados! Caíram! Existiram! Ocuparam espaços! e por isso mesmo foram derrubados... e continuam a ser amados.
Uma terceira categoria são as construções em ruína que necessitam da nossa compreensão: se foram belas e de grandiosas medidas no passado se parecem agora com projetos interrompidos, projetos sem acabar. E aí? Serviram! São formas que responderam às pretensões de um tempo e... foram superadas, mas continuam projetos inacabados e oferecem espaço para a imaginação: suas belas medidas! Os desejos projetados e sua provisoriedade.
“Todas estas coisas me fazem feliz.”
O poema indica a história como critério de avaliação: não a história dos grandes feitos e dos grandes nomes, mas a história das cotidianas coisas em seus usos. Assim também os movimentos sociais são continuidades, são acúmulos de demandas. As organizações populares e suas bordas amassadas. A madeira gasta das formas políticas ao longo da história que não podem ser avaliados por seus sucessos... mas pela impregnação de uso. Foram muitas mãos, muitas vidas que aperfeiçoaram as lutas políticas e de tão pisados pelo próprio povo em suas assembleias, marchas e manifestações deixaram marcas organizativas. Vencidos, violentados, trasladados: viveram também por mim e pelo povo organizado nos movimentos, acompanhados nas pastorais. Resgatar os projetos inacabados, derrubados de tão altos. As belas medidas da luta histórica de nossos povos ainda precisam de nossa compreensão... também aquelas que já serviram e foram superadas.
Mas as coisas... as necessárias não tem paz!
Nas palavras de Cláudia Korol[1]:
Dando una nueva vuelta desde el punto de vista de los vencidos y vencidas, pero afirmándome en la perspectiva latinoamericana sobre la memoria, quisiera agregar con Roque Dalton[2], que “los muertos están cada día más indóciles”.
Cada día más indóciles, cada día más rebeldes… y así como el enemigo no ha dejado de vencer, los pueblos no han dejado de resistir y crear nuevos espacios y posibilidades para que vivan los sueños de cambiar el mundo, y se vayan materializando en transformaciones sociales populares. Los muertos y muertas, los caídos y caídas en nuestra América Latina, son una realidad lacerante que sigue escribiendo día a día la historia. Porque el capitalismo en estas tierras es hijo del colonialismo, del imperialismo, del patriarcado, de las muchas formas de violencia y de dominación; y también es hijo de la impunidad y del olvido, del ocultamiento, de la tergiversación de la memoria realizada por los vencedores.
Pensar América Latina es aprender a destejer la historia oficial, para recuperar las señales casi imperceptibles que cada gesto popular de resistencia a la opresión inscribe en nuestra subjetividad, guarda en nuestros cuerpos, y siembra en nuestras tierras.
Os povos têm suas expressões históricas e culturais de si mesmos que se expressam e se organizam de forma plural e diversa em “movimentos sociais”. Os motivos e os porquês da organização “de movimentos” ou “em movimentos” constituem um repertório de itens materiais e de subjetividades que vão desde as questões vitais de sobrevivência coletiva até o enfrentamento das estruturas políticas e econômicas. São estas materialidades e afetividades que alimentam as lutas históricas de resistência e libertação no continente latino-americano.
Marcados por um processo violento de luta de classes na periferia do capital internacional, estes movimentos e seus modos de vida transitam entre o originário e o moderno, o antigo e novo, o valor e o não-valor como conflito permanente e criativo.
Os movimentos sociais não são “idealizações”, mas articulam a materialidade cotidiana das formas populares de poder e de disputa. As condições objetivas e subjetivas de organização não se dão em vazios políticos e vivenciais, mas reúnem e convivem com contradições, ambiguidades. São simultaneamente práxis e exercício de identidade que coloca os/as pobres na fronteira entre o real e o utópico.
Por tudo isso, as formas organizativas não correspondem a nenhum modelo, não se comportam com um elenco de virtudes pré-estabelecidas, convivem e estranham formas equivocadas de poder: as bordas amassadas dos movimentos. Impregnados do uso de muitos os movimentos sociais sofrem a ação do tempo e sofrem metamorfoses desejadas ou não.
Mas a CPT não é movimento social! Mas vive por eles, com eles.
E isso ficou muito claro e evidente nas falas e testemunhos dos/das trabalhadores/as durante o IV Congresso. A CPT esteve presente, não arredou o pé e não quis ser o que não é: movimento!
A CPT é Comissão Pastoral e – bem ou mal – se manteve neste lugar de presença e convivência com os trabalhadores/as e seus movimentos e organizações. Não é um “não lugar”, este da CPT! É da esfera do tempo, da qualidade de tempo de permanecer, de acompanhar os usos, de vivenciar as quebras e costuras das lutas dos/das trabalhadores/as.
Alguém disse: a CPT não dá linha… a CPT alinhava.
Junta isso com aquilo, permanece. Fica na hora boa ou na ruim, permanece. Reza no seco e no molhado: permanece… e é esse tempo de permanecência que caracteriza o trabalho pastoral.
A rebeldia é a permanência da memória.
A esperança é a permanência da rebeldia.
A CPT é do exercício e da mística de permanecer: mas nem é ela mesma a rebeldia nem a esperança.
Estes limites do trabalho pastoral são o que temos de autêntico e honesto para oferecer e a mística de amadurecer amores radicais de se entregar pelo amor do mundo, um rio, uma floresta, a terra e seus seres. A CPT não é a caneca… nem a agua é só a sede, a vontade de beber. Mas a caneca de muitos usos e a fonte que mata a sede é o povo quem traz.
A CPT não é semente nem terra, mas é terra debaixo da unha: marca do exercício de semear e esperar pelos frutos no quintal.
[1]Intervención realizada el 4 de junio en el Auditorio del Instituto Sedes Sapientiae, en el curso organizado por la Escola Nacional FlorestanFernandes, el CEPIS (Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae) y el Departamento de Jornalismo da PUC-SP, con el apoyo de Brasil de Fato y Expressão Popular. Versión corregida en julio del 2009. mimeo.
[2]Roque Dalton, poeta y guerrillero salvadoreño
Aconteceu no Congresso: Jovens camponeses de todo Brasil deram um importante salto organizativo durante o IV Congresso Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), realizado entre os dias 12 e 17 de julho, na cidade de Porto Velho, Rondônia, em plena Amazônia brasileira.
Chegou ao fim, na tarde desta sexta-feira, dia 17 de julho, o IV Congresso Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), realizado em Porto Velho, Rondônia.
(Equipe de Comunicação João Zinclar – IV Congresso Nacional da CPT / Imagem: Joka Madruga)
Desde o último dia 12, cerca de mil pessoas, entre camponeses, indígenas, quilombolas, trabalhadores e trabalhadoras rurais de todo o Brasil, agentes pastorais, colaboradores de CPT, padres e bispos, estiveram reunidos no Congresso que celebra os 40 anos da Pastoral.
A partir de intensos debates, os participantes puderam refletir sobre os principais desafios enfrentados pelas populações do campo na atual conjuntura e partilharam diversas experiências de memória, rebeldia e esperança postas em prática pelas comunidades. Para a CPT, o momento foi de escuta. É no Congresso que as diversas populações do campo de todo o país, reunidas, apontam as estratégias e propostas que irão orientar as ações da CPT para os próximos quatro anos.
Em sua plenária de encerramento, os/as participantes aprovaram a Carta Final do IV Congresso da CPT. O documento é fruto deste conjunto de reflexões, debates e propostas feitas pelos camponeses e camponesas, trabalhadores e trabalhadoras rurais que serão as luzes para a CPT no seu serviço às causas dos Pobres da Terra até o próximo Congresso, previsto para ocorrer em 2020.
Confira, na íntegra, a Carta Final do IV Congresso da CPT.
Mais informações:
Cristiane Passos (Assessoria de Comunicação) – (69) 9368-1171 /
Acesse todas as informações do IV Congresso da CPT aqui
Fotografias no Facebook da CPT: Comissão Pastoral da Terra (CPT) – favor citar o crédito das fotos
@cptnacional
Esperança e conquista. Palavras que ajudam a transmitir o espírito das experiências partilhadas por trabalhadores e trabalhadoras do campo na Tenda Rio Branco, que aconteceu na última quarta-feira (15) durante do IV Congresso Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), realizado em Porto Velho (RO) entre os dias 12 e 17 de julho.
(Equipe de Comunicação João Zinclar – IV Congresso Nacional da CPT)
Em sintonia com o eixo temático do 3º dia de atividades do Congresso, a ‘Esperança’, Elenilson da Conceição, da cidade de Monsenhor Gil, no Piauí, compartilhou sua história de sofrimento e perseverança, que começou no momento que lhe fizeram uma proposta para trabalhar no estado do Pará, em 2004. ‘’Eu disse que não tinha dinheiro para pagar a passagem e nem tinha os equipamentos, mas, me garantiram que eu não precisava me preocupar com isso. Que eles iam pagar tudo’’, conta.
Elenilson, então, embarcou na jornada que acabaria por se tornar a mais difícil de sua vida. Ao chegar na Fazenda Rio Tigre, localizada em Santana do Araguaia (PA), percebeu que a realidade do trabalho era bem diferente do que as promessas que recebera. ‘’Quando você é levado para este tipo de lugar, a primeira coisa que você perde é o nome. Eu era chamado de ‘Piauí’, porque era de onde tinham me trazido’’, disse o trabalhador.
Ameaças, condições insalubres de moradia, dívidas e trabalho forçado fizeram parte da rotina diária de Elenilson e mais 77 pessoas desde então. Após aproximadamente 4 meses de trabalho análogo ao de escravos, os trabalhadores da fazenda Rio Tigre foram resgatados pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Trabalho. Com ajuda da CPT de Xinguara (PA), 15 piauienses que faziam parte deste grupo retornaram às suas casas.
Histórias como as de Elenilson são, infelizmente, uma realidade no Brasil. Por isso, a CPT realiza nacionalmente a Campanha de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo, que completa 18 anos de atuação em 2015. Para saber mais sobre a campanha, clique aqui.
De volta a Monsenhor Gil (PA), o grupo de camponeses resgatados começou a participar de reuniões periódicas com a CPT do Piauí, discutindo as razões de estarem em situações parecidas, como a questão da dificuldade do acesso à terra, e buscando alternativas para se romper com o ciclo da escravidão. Essa organização dos trabalhadores produziu muitos frutos, como a criação a Associação do Assentamento Nova Conquista, formada por 39 famílias do munícipio.
Buscando alternativas para trabalhar, morar e viver com dignidade, a Associação se mobilizou e pressionou o poder público, apontando a carência de políticas públicas para as populações camponesas da região. Em 2009, após anos de luta e reinvindicações, a ‘conquista’ se tornou realidade: o Assentamento Nova Conquista, que carrega o nome da associação de trabalhadores, foi criado legalmente, após demarcação do INCRA.
Hoje Elenilson e sua família fazem parte do grupo de assentados do ‘Nova Conquista’, o primeiro assentamento constituído por e para trabalhadores que passaram por situações de trabalho análogas à escravidão. Uma história carregada de esperança. ‘’Mais um passo à frente, nem um passo atrás, a reforma agrária é a gente que faz’’, cantou o grupo de congressistas participante das exposições na Tenda Rio Branco.
Acesse todas as informações do IV Congresso da CPT aqui
Fotografias no Facebook da CPT: Comissão Pastoral da Terra (CPT) – favor citar o crédito das fotos
A Amazônia brasileira, o cair da noite e as margens do Rio Madeira formaram o cenário que acolheu centenas de pessoas, entre camponeses e camponesas, indígenas, quilombolas, religiosos e agentes de CPT para celebrarem a memória dos homens e mulheres que tombaram na luta em defesa dos povos da terra. A Celebração dos Mártires, que ocorreu no início da noite desta quinta-feira, 16, foi um dos momentos mais marcantes e místicos do IV Congresso Nacional da CPT.