Na terra de Zumbi e Dandara, peregrinos da esperança caminham juntos em romaria para tecer teias de comunhão e fraternidade
Por Lara Tapety | CPT Alagoas
Fotos: Lara Tapety
A 35ª edição da Romaria da Terra e das Águas, realizada nos dias 16 e 17 de novembro de 2024, reuniu centenas de peregrinos e peregrinas na Serra da Barriga, em União dos Palmares, Alagoas, para refletir sobre o tema "Com fé, rompendo cercas e tecendo teias” e o lema "A terra a Deus pertence" (cf. Lv 25).
Acolhida e reflexão poética
A programação começou na noite do dia 16, no Sítio Recanto, com uma acolhida marcada por cânticos e o anúncio das caravanas participantes. A religiosa Marcela Dantas, da congregação Filhas do Sagrado Coração de Jesus, chamou atenção do público ao recitar um poema de Jorge de Lima sobre o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, destacando a luta pela liberdade.
A saudação aos participantes ficou por conta dos italianos Fúlvio, Francesca e Serena, da Associação Amici di Joaquim Gomes, e do padre Alex Cauchi, de Malta. Pela terceira vez presente numa Romaria da Terra e das Águas, Fúlvio afirmou que eles se impressionam com a participação e a capacidade dos camponeses de caminharem juntos. Explicou, também, que na Itália não existe a questão dos sem-terra, e ao ver os acampamentos nas estradas alagoanas e ouvir suas histórias, os italianos ficam admirados com a luta diária de cada um.
“Fazem muitos anos que o nosso trabalho de sensibilização na Itália procura tecer teias junto com a CPT Alagoas para apoiar as vossas batalhas porque pensamos que a luta pela terra é uma batalha fundamental e o direito à terra é um dos direitos fundamentais pelo qual se deve lutar", enfatizou o italiano.
Padre Alex destacou que a romaria na Serra da Barriga lhe traz muitas memórias. Ele fez menção à primeira romaria na terra de Palmares e lembrou:
“A cada cinco anos a gente volta aqui para lembrar de um lutador grande que nos ajuda até hoje, mostrando que nós devemos lutar, especialmente pela terra e na terra: Zumbi".
Celebração eucarística e reflexões
Após a entronização da "Cruz Sem Males" - símbolo da romaria que indica a direção da "Terra sem Males" - os fiéis assistiram ao filme da Campanha Nacional Contra a Violência no Campo, que trouxe à tona dados históricos sobre a violência contra povos do campo, das florestas e das águas.
A noite seguiu com a apresentação cultural do samba de coco da Comunidade Quilombola Muquém, remanescente do Quilombo de Palmares, que animou os presentes antes da celebração eucarística.
A missa, presidida pelo arcebispo de Maceió, Dom Beto, contou com concelebrantes de diversas localidades. Entre eles estavam: os padres George Lourenço, da paróquia Santa Maria Madalena e Lourenço Júnior, da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes - União dos Palmares; padre Alex Cauchi, de Malta, na Europa; padre Gilvan Neves, pároco da Igreja Nossa Senhora das Graças - Levada, Maceió; padre Raul Moreira, da Área Pastoral Nossa Senhora de Fátima - Rio Largo; padre Diego Vanzetta, pároco da Paróquia Senhor Bom Jesus, em Matriz de Camaragibe; e Valdo Omena, da paróquia São Sebastião em Ibateguara.
Durante a homilia, inspirada no livro de Levítico, que motivou o lema da edição, Dom Beto destacou que é preciso criar relações novas, tecer teias de comunhão e fraternidade. O arcebispo destacou, ainda, a conexão da romaria na Serra da Barriga - lugar marcado por resistência e pela luta pela liberdade - com o Jubileu de 2025, definido pelo Papa Francisco como o ano dos “Peregrinos da Esperança”:
“Fazendo ecoar a palavra antiga dos profetas, o Jubileu lembra que os bens da terra se destinam a todos, e não a poucos privilegiados. É preciso que seja generoso quem possui riquezas, reconhecendo o rosto dos irmãos em necessidade. Penso de modo particular naqueles que carecem de água e alimentação: a fome é uma chaga escandalosa no corpo da nossa humanidade, e convida todos a um debate de consciência”, disse citando o Papa.
Após a celebração, o público foi animado por um encontro musical com o poeta e cantor Zé Vicente, cujas canções de fé, luta e liberdade ecoaram entre crianças, jovens, adultos e idosos. Em sua apresentação, Zé abriu uma grande bandeira do Brasil, que foi balançada pelos presentes e circulou o espaço ao som da música “Quando o dia da paz renascer”. Animados, os peregrinos e as peregrinas partiram em caminhada.
Uma caminhada rumo à Serra da Barriga
Durante o percurso, a juventude camponesa conduziu a primeira parada com o tema "A terra a Deus pertence", apresentando o trecho do poema de Dom Pedro Casaldáliga:
“Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por poucas mãos, para ampararem cercas e bois e fazerem da terra escrava e escravos os homens!”.
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) conduziram a segunda parada com reflexões sobre o tema "Romper cercas". Já no platô, a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) destacou a importância de "tecer teias", convidando os organismos da Igreja, as organizações e os movimentos sociais a compartilharem suas missões.
Memórias e mensagens de esperança
Entre os presentes, estava a Irmã Tereza, de 81 anos, participante da primeira Romaria da Terra, realizada em 1988, e de tantas outras. Ela lembrou a mística do evento:
“Eu acredito que a romaria tem uma mística do andar, do caminhar, do refletir e de se sentir perto um do outro, fazendo um caminho juntos, que é o incentivo de que as pessoas levem depois para viver dessa forma: um caminhar juntos, uma meta de se sentir irmanado pelo mesmo objetivo que é a terra, a liberdade, o se sentir irmão”, disse a religiosa da congregação Irmãs de São José de Chambéry.
A camponesa Maria do Bosque estava com seus filhos André e Dandara. Maria participou de diversas romarias há muitos anos, sendo uma delas, em 27 de novembro de 1998, para a terra de Flor do Bosque, onde ela é assentada da Reforma Agrária. A agricultora agroecológica também reforçou o significado do evento:
“A Romaria da Terra é um espaço de compreensão e união. Ela nos lembra que a terra é de Deus e, sendo de Deus, é do povo”, afirmou.
O padre George Lourenço, pároco anfitrião da 35ª edição, refletiu sobre o espírito da romaria:
“É uma experiência mística que nos leva a refletir sobre esse grande dom que Deus nos concedeu que é a natureza. A espiritualidade nos eleva para refletir sobre esse dom que muitas vezes é dilapidado e que está nas mãos de poucas pessoas. Então, a romaria possibilita a gente ter contato com essa reflexão e nos ajuda muito. Vale a pena!”.
Encerramento marcado por partilha e memória
Chegando a alvorada, Carlos Lima, coordenador nacional da CPT, relembrou a celebração dos 30 anos da Romaria da Terra e das Águas em Alagoas, marcada por um gesto simbólico do bispo Dom Enemésio Ângelo Lazzaris. Na ocasião, Dom Enemésio deitou-se no solo da Serra da Barriga em reverência, conectando-se com a terra, os ancestrais e a memória das lutas quilombolas, de Zumbi e Dandara. Inspirado por esse momento, Carlos Lima convidou os romeiros e romeiras a tocarem a terra sagrada do Quilombo dos Palmares com as mãos e/ou com os pés descalços. Por fim, o padre Alex realizou a bênção e envio dos romeiros e das romeiras.
O encerramento contou com o momento de partilha do café da manhã camponês. Os romeiros e romeiras receberam café, chá, tapioca, beiju e pé-de-moleque. Além disso, houve o sorteio de um carneiro e uma cesta camponesa. O ganhador foi o agricultor Pedro Norenço, do assentamento Todos os Santos, situado em Água Branca, Sertão de Alagoas.
Realização e propósito
Realizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Arquidiocese de Maceió, Paróquia Santa Maria Madalena, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Centro de Estudos Bíblicos (Cebi), Cáritas Brasileira, Amici di Joaquim Gomes e Pachamama, a 35ª Romaria da Terra e das Águas reafirmou a luta histórica pela terra e pela dignidade, celebrando a comunhão entre de fé, resistência e compromisso com a justiça social e ambiental.
As organizações indígenas e quilombolas da Amazônia vêm, por meio desta nota, expressar seu repúdio ao discurso do governador Helder Barbalho, proferido durante a abertura do estande da Confederação Nacional da Indústria (CNI) na COP-29, em Baku, Azerbaijão. A fala do governador, ao afirmar que os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos dependeriam do mercado de carbono para garantir seu sustento e dignidade, demonstra uma visão preconceituosa e desinformada sobre a realidade dos povos tradicionais. O governador ignorou, em sua fala, o fato de que nossas comunidades vivem, manejam e preservam a floresta há milênios, utilizando a biodiversidade, a água e a terra para garantir sustento com autonomia e abundância.
Os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos do Pará e da Amazônia têm um modo de vida que não depende de projetos de mercado de carbono ou de subsídios governamentais para sobreviver. Nossa alimentação saudável, baseada em conhecimentos tradicionais, é fruto do trabalho cuidadoso com os recursos naturais, livres de contaminações químicas e de mercúrio. Além disso, nossos povos contribuem de forma plural para a sociedade, com representantes que são escritores, médicos, advogados, professores, cientistas e parlamentares, promovendo nossa cultura e saberes para além dos limites das comunidades. A “bioeconomia” que o governador propõe vender como uma novidade ao mercado global é, na verdade, um modo de vida que praticamos há gerações.
A fala do governador reforça uma visão reducionista e colonialista sobre nossas comunidades, tratando-nos como se fôssemos meros dependentes de políticas de governo, ao invés de reconhecer nossa autonomia, saberes e práticas sustentáveis. O mercado de carbono, ao contrário do que foi afirmado, não pode ser imposto como única solução de desenvolvimento para as comunidades tradicionais, sem que haja consulta prévia, livre e informada, em respeito à Convenção 169 da OIT. As comunidades e povos precisam continuar mantendo sua autonomia na gestão de seus territórios, pois é isso que tem garantido um futuro sustentável com respeito à biodiversidade existente na Amazônia. A imposição de tais projetos, sem diálogo e sem respeito aos direitos constitucionais das comunidades, desrespeita nossa história, nossa luta por autonomia e coloca em risco o direito ao território das futuras gerações.
Acrescentamos ainda que o crédito de carbono, na modalidade REDD+, representa a comercialização da natureza, um processo financiado por empresas e governos estrangeiros que, assim, continuarão a lançar gás carbônico na atmosfera. Trata-se de comercializar a natureza para garantir a continuidade de lucros. Com seu apoio a essa iniciativa, o governador do Pará se dispõe a servir aos interesses do capital internacional, desconsiderando os direitos e a autonomia dos povos amazônicos.
Defendemos o direito à autodeterminação de nossas terras e afirmamos que não aceitaremos ser usados como justificativa para projetos de governo que não considerem nossa voz e nosso modo de vida. Reafirmamos que as decisões sobre nossos territórios devem ser construídas em conjunto com nossas comunidades, respeitando nossos conhecimentos e modos de subsistência, que há séculos garantem a conservação dos nossos territórios na Amazônia.
Exigimos que o governador Helder Barbalho e o Governo do Estado do Pará respeitem o direito de consulta e o protagonismo das comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas na formulação de políticas e projetos que afetem diretamente nossas vidas e territórios. Que cessem as falas coloniais e as soluções impostas sem diálogo e respeito aos nossos direitos, e que sejam reconhecidos os saberes e práticas que já sustentam a Amazônia e garantem a vida em harmonia com a floresta.
Assinam a carta:
1. Instituto Zé Cláudio e Maria
2. Comissão Pastoral da Terra - Regional Pará
3. Rede Agroecológica
4. Associação Indígena Pariri
5. Movimento Tapajós Vivo
6. Rede de Mulheres das Marés e das Águas do Litoral do Pará
7. Quilombo Gibrié de São Lourenço
8. Organização dos Educadores Indígenas Munduruku-Arikico
9. Associação Wakobrun de Mulheres do Alto Tapajós
10. Comitê Chico Mendes
11. Comitê de Defesa dos Direitos dos Povos Quilombolas de Santa Rita e Itapecuru Mirim (MA)
12. Casa Preta Amazônia
13. Associação Indígena Tembé do Vale do Acará
14. Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes do Quilombo do Alto Acará (AMARQUALTA)
15. Associação Comunidade Quilombola Sítio Cupuaçu
16. Instituto Madeira Vivo
17. Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira
18. Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental
19. Coletivo Indígena Mura de Porto Velho
20. Instituto Patauá Socioambiental
21. Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase)
22. Associação da Comunidade Ribeirinha Extrativista da Vila Tauiry (ACREVITA)
23. Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé
24. Terra de Direitos
25. Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do PDS Brasília (AMTRAB)
Créditos da Foto: Thomas Bauer
Luiz Eduardo de Souza Terrin, paulista da Serra Negra, chegou a Juazeiro da Bahia, em 1978, vindo de Goiás. Sua presença foi fundamental na articulação da Pastoral da terra junto aos agentes de pastoral das paróquias, assessorias e apoios na resistência organizada de comunidades atingidas pela barragem de Sobradinho (BA), na década de 70. A barragem afetou cerca de 72 mil pessoas, quatro cidades e expulsou outros 58 mil camponeses.
Na época, conheceu Angélica Carneiro, advogada da CPT, com quem ele se casou anos mais tarde, constituiu família e viveu a maior parte de sua vida. Com Angélica ao seu lado, enfrentou ainda um câncer e a doença de Alzheimer.
Edu foi assessor e coordenador da CPT Bahia, além de coordenador nacional da CPT. Também fez parte da Comissão de Justiça e Paz/Arquidiocese de Salvador, onde contribuiu como assessor; da equipe do Apoio a Projetos Diocesanos/Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (APD/Ceris); assessorou a Pastoral da Juventude do Meio Popular; e também contribuiu no Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais (Cais), onde colaborou com diversas lutas de diversas comunidades país afora.
Como parte de sua trajetória, o agente foi um dos principais responsáveis pela metodologia adota pela CPT no atendimento aos povos e comunidades, sendo um serviço ao protagonismo popular.
Já saudosos e saudosas, a Comissão Pastoral da Terra celebra a vida de Edu, recordamos sua caminhada e contribuição na luta junto ao povo do campo. Que sua sede de justiça seja inspiração e seu legado sigam fazendo parte da história da CPT. Brilhe ele para a luz da Ressurreição dos que seguem fiéis ao Mestre Jesus! O Deus do amor e da misericórdia o acolha agora na plenitude da vida. À Angélica, sua filha Marta e demais familiares, dê conforto e paz!
Nós, Povos Cerradeiros dos estados de Goiás, Tocantins, Maranhão, Piaui, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso, Rondônia, Mato Grosso do Sul e Roraima, representantes dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, brejeiros, pescadores, vazanteiros, veredeiros, retireiros, geraizeiros, fundos e fechos de pastos, sertanejos, agricultores familiares, assentados da reforma agrária, sem-terra, boias-frias, agentes de pastorais e organizações parceiras, nos reunimos, entre os dias 27 e 30 de outubro de 2024, no Território Tradicional Melancias, em Gilbués, no Piauí, para partilhar os clamores que nos atravessam nos últimos tempos e as re-existências tecidas em nossos territórios.
Vivemos ataques permanentes contra os nossos corpos-territórios, onde a Terra, nossa grande mãe, encontra-se em processo de esgotamento e clama por socorro. Nossos rios, veias que sustentam o grande corpo-Brasil, estão sendo devastados pelo agronegócio, hidronegócio e mineração, que avança sobre os Cerrados com o desmatamento, o envenenamento do solo, das águas e do ar, com o roubo das águas e a extração de minérios, com os incêndios criminosos que impactam diretamente as comunidades camponesas, devastando seus territórios e depredando nosso Cerrado.
Os territórios, que são moradas e partes constituintes da nossa existência e do nosso chão, ancestral e sagrado, estão sendo violados pelas cercas da ganância do latifúndio e pelas cercas invisíveis das leis e políticas genocidas, como a Lei 14.701/2023, que institui o Marco Temporal na demarcação das terras indígenas, e a Lei 14.757/2023, que, na prática, regulariza a grilagem de terras e acirra os conflitos no campo. Há, ainda, os projetos de morte, como a fronteira agrícola do Matopiba, nos quais o Estado - vendido, burguês e capitalista - e a iniciativa privada, juntos, tentam esmagar nossos direitos e roubar nossa dignidade, seja pela ação direta ou pela omissão calculada.
A grilagem, a pistolagem, a especulação, o extermínio da sociobiodiversidade, o adoecimento, a perseguição e agressão das lideranças, os assassinatos e as constantes ameaças de expulsão dos nossos territórios, são violências que marcam a injustiça histórica que enfrentamos e denunciamos, e também nos lembram da força coletiva que mobilizamos para resistir. Por isso, fazemos ecoar, aqui e agora, o compromisso da luta em defesa dos Cerrados, por nossas terras, nossas águas e nossas vidas.
Nós, guardiãs e guardiões cerradeiros, re-existimos através dos nossos saberes e fazeres ancestrais. Acreditamos na agroecologia como alternativa de produção de alimentos que garantam soberania e segurança alimentar, em harmonia com os nossos territórios sagrados. Com os nossos modos de vida, lutamos pelo o acesso à terra e a permanência no território, conectada a defesa dos Cerrados, que garantem nossas existências e autonomia.
Neste chão de raízes profundas, onde os Cerrados, no coração deste país, pulsa em cada nascente preservada ou reflorestada, em cada árvore protegida ou plantada, seguimos de punhos cerrados, re-existindo. Não recuaremos. Seguiremos denunciando as chagas abertas em nossos territórios e afirmando, com esperança, que ‘não morreremos de sede às margens de nossos rios’.
A Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais (CPT-MG) vem a público denunciar o hediondo atentado sofrido pela Comunidade Quilombola do Baú, em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, na noite desta segunda-feira, 11 de novembro de 2024, por volta das 19h. Homens armados cercaram o território quilombola, disparando contra as residências e bloqueando as estradas de acesso, impondo um cerco violento e ameaçador.
A Comunidade Quilombola do Baú enfrenta constantes ameaças devido ao processo de regularização fundiária de seu território tradicional. Mesmo argumentando que a proteção às lideranças quilombolas é insuficiente e, apesar dos inúmeros alertas e denúncias feitos às autoridades, os atentados continuam ocorrendo, mesmo sob a proteção policial e com a inclusão de Antônio Baú, liderança da comunidade, no programa de proteção a defensores de direitos humanos. No dia 06 de novembro, a pedido da própria comunidade, a Comissão das Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha e a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’GOLO reuniram-se com o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública da União, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e outras instituições e movimentos de defesa dos direitos das comunidades tradicionais para denunciar as ameaças que colocam em risco a integridade dos quilombolas do Baú. Em decorrência dessa reunião, as organizações e movimentos divulgaram uma nota pública para cobrar dos órgãos públicos responsáveis, dos diferentes níveis do poder público, a garantia da vida do povo quilombola. Em meio a esse processo de mobilização, hoje a comunidade foi alvo desse atentado.
A CPT-MG repudia veementemente essa violência brutal contra a Comunidade Quilombola do Baú e exige das autoridades uma resposta enérgica e imediata, com uma investigação célere, proteção efetiva às vidas dos quilombolas que lutam pelo direito à regularização dos seus territórios e punição rigorosa aos executores e mandantes deste atentado.
A luta pelos direitos das comunidades quilombolas e pela garantia de seus territórios não será interrompida.
Por Assessoria de comunicação do Projeto Terra Roxa/CPT Alto Xingu
Créditos: Equipe CPT Alto Xingu
No sábado, dia 9 de novembro, ocorreu o seminário de abertura do “Projeto Terra Roxa” na Escola Jardim de Deus, localizada na comunidade. Nesta ocasião, que marca o início oficial do projeto, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que é a idealizadora da proposta, apresenta à comunidade os seus parceiros que ajudarão a executá-lo e também as atividades que serão realizadas por eles nos próximos meses.
Esse projeto da CPT contará com o apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). As duas instituições visam enfrentar o problema do trabalho análogo à de escravo por meio do fortalecimento da segurança alimentar e da produção da agricultura familiar local. O terrível problema da escravidão moderna afeta de forma muito significativa a realidade do Alto Xingu, especialmente em São Félix do Xingu, que é o segundo município com maior incidência de resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão no estado do Pará, registrando 1.166 casos no período de 1995 a 2023.
A Terra Roxa
Créditos: Equipe CPT Alto Xingu
O local escolhido como ponto focal deste programa foi a Terra Roxa, por estar localizado em uma rota de acesso a muitas fazendas e já possuir certa organização interna que permite levar as atividades adiante. Uma comunidade que iniciou sua história quando os primeiros moradores ocuparam a região, em 2005. Na época, eram 115 famílias formadas essencialmente por migrantes de outros estados brasileiros – incluindo Maranhão, Bahia e Goiás. Essas pessoas foram atraídas por uma promessa de encontrar terras abundantes e melhores oportunidades de trabalho. Uma retórica que não é verdadeira, mas se sustenta no imaginário popular sobre a Amazônia ao longo de várias décadas.
Embora esteja localizada em São Félix do Xingu, a Terra Roxa se distancia 130 quilômetros da sede do município, mas apenas 95 quilômetros de Tucumã, que é por onde ocorre boa parte das relações comerciais, além do acesso a alguns serviços públicos. Por isso é considerada uma área estratégica para a produção, já que sua relativa proximidade à cidade vizinha facilita o escoamento dos produtos. Entretanto, esse potencial transforma a área em um alvo de constante pressão dos grandes latifundiários da região, que contam com muita influência econômica e política, sempre tentando avançar sobre os pequenos agricultores.
Desde o começo, esse confronto afetou a existência da comunidade, que sofreu com ameaças e expulsões, como o fato ocorrido em 2007. Na ocasião, as cerca de 60 famílias que estavam acampadas foram despejadas, sem nenhum aviso prévio, pela polícia civil e tiveram seus pertences e sua produção destruídos.
“Nós fomos abordados, dizendo que era polícia. Pegaram e derrubaram todas as nossas coisas, derrubaram todos os nossos barracos. Tirou nós em mais de dez caminhões carregando daqui para o lugar do Incra, né? Ficamos na área ali do Incra. Fomos despejados, carregados, saímos crianças, mulheres. Deixamos tudo para trás, roças de arroz maduras, milho já colhendo. Ficou tudo. E eles tiraram nós com rapidez, dentro desses caminhões, jogados de qualquer jeito, fomos despejados ali. E ali nós ficamos 26 dias sofrendo ali, lutando. Foi quando nós recebemos a ordem do desembargador para voltar para cá de novo. Aí nós voltamos, ficamos debaixo da lona preta, no meio da estrada mesmo, sem ter condição de entrar nem na terra. Ficamos aguardando todo esse tempo”, narra a agricultora Maria Divina Queiroz da Rocha, uma das pioneiras na região.
As parcerias
Foi nesse momento difícil que a comunidade procurou pela primeira vez o apoio da CPT. No inicio, com um suporte jurídico, prestando assistência em um âmbito no qual a comunidade estava desamparada. E posteriormente com incentivo a agricultura familiar, pois as dificuldades encontradas por esses trabalhadores perduram até hoje e ficam ainda mais graves diante da falta de acesso às políticas públicas voltadas para a agricultura, como crédito rural necessário para financiar a produção ou assistência técnica adequada. Por isso, muitas famílias não conseguem obter sustento na sua própria terra e acabam obrigadas a oferecer sua mão de obra para as grandes fazendas vizinhas. Em consequência, os pequenos lotes ficam praticamente abandonados, prendendo os agricultores em um ciclo vicioso, onde se tornam cada vez mais dependentes do trabalho nas fazendas.
Está criado o cenário perfeito para superexploração do trabalho dos agricultores – não apenas a Terra Roxa, mas em todo o Alto Xingu –, que acabam submetidos a jornadas exaustivas, com pouca remuneração e, em muitos casos, trabalhando em condições insalubres. Algumas vezes constituindo dívidas intermináveis que continuam sempre crescendo. Formata-se uma relação de trabalho análoga à escravização.
Diante desse contexto, a Pastoral da Terra, com apoio do MPT, está sempre em busca de alternativas para ajudar os trabalhadores a romper esse ciclo. Na assistência à Terra Roxa, começou com questões pontuais, como a distribuição de cestas básicas durante a pandemia ou a criação de um viveiro coletivo para comunidade, até a assessoria à associação de trabalhadores na pressão junto ao poder público para construção de um novo prédio para a escola local. No entanto, persiste a necessidade de um projeto mais focado no enfrentamento dessa situação no Alto Xingu.
“Em São Félix do Xingu nós temos vários resgates de trabalhadores em condições análogas a de escravo. Então, a CPT trouxe para a gente a necessidade de fixar os agricultores em suas terras para que eles não precisassem procurar trabalho nas fazendas, trabalhos mal remunerados, às vezes nem pagos. Trabalhos em condições péssimas de alojamento, às vezes dormindo em barraco”, explica a procuradora do MPT, Juliana Mafra. Por isso, o Ministério buscou a Pastoral da Terra como parceira para realizar um projeto que fortaleça a agricultura familiar e, ao mesmo, reduza os índices de trabalho escravo.
O projeto foi batizado oficialmente como "Fortalecimento do combate às condições análogas à escravidão no Assentamento Terra Roxa" e tem como objetivo principal ajudar as famílias agricultoras a encontrarem formas de sustento sem depender do trabalho nas fazendas vizinhas. De acordo com a coordenadora da CPT Alto Xingu, Agnes Kronenberg da Silva, o foco na agricultura familiar é muito importante, porque gera mudanças nas condições da vida das famílias ao longo prazo, garantindo a segurança alimentar. “A ideia é que o projeto ajude a melhorar as práticas agrícolas, fazer uma melhor gestão do seu lote, da sua produção. E assim a família pode viver bem no seu lote, sem ter precisão de pegar serviços, diárias nas fazendas da região. E, então, não corre o perigo de ser explorado nestes serviços, sofrer de situações humilhantes ou desumanas ou até ser escravizado”, esclarece.
As ações planejadas
Créditos: Equipe CPT Alto Xingu
A realização dessa proposta contará com a participação de alguns parceiros. O planejamento inclui um mapeamento das alternativas para geração de renda na região e a análise sobre quais seriam realmente possíveis de realizar e possuem viabilidade de mercado, levando em consideração a realidade econômica, social e ambiental da Terra Roxa. Esse estudo será realizado por uma equipe de técnicos especializados enviada pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), que depois irá apresentar os resultados para a comunidade de modo didático em linguagem acessível.
Na visão da Unifesspa, a melhor maneira de evitar que as pessoas caiam nas redes de trabalho escravo, é justamente combater aquilo que as torna vulneráveis ao trabalho escravo. Daí a importância de procurar formas de ampliar a renda dessas famílias. “Esperamos que isso ajude a comunidade a se fixar na terra, isso ajude a comunidade a se desviar das situações de vulnerabilidade e que isso ajude a comunidade a permanecer, enquanto coletivo, ali naquele território”, explica o professor Cristiano Bento da Silva, antropólogo docente do curso de Engenharia Florestal, que já é parceiro da CPT desde projetos anteriores sobre a temática. Ele salienta também que é muito importante o diálogo com a população local para não perder de vista o que a própria comunidade entende como importante. “A nossa ideia também é, sobretudo, partir dessa relação dialógica com a comunidade e procurar se aproximar ao máximo do ponto de vista deles. Não só do ponto de vista, mas também do que, culturalmente, pra eles importa em termos de projeto de geração de renda. Justamente para que depois eles não abandonem a iniciativa que foi apontada. Então a nossa ideia é fazer esse mapeamento, mas atentando para aquilo que para eles faz sentido”, argumenta o professor.
Uma segunda equipe técnica, liderada pelo economista José Maílson Marques da Graça, fará uma consultoria de economia na comunidade, onde irão analisar as condições socioeconômicas, demográficas e de acesso à politicas publicas entre os moradores. Esse mapeamento vai permitir entender melhor as condições em que vivem as famílias, quais suas necessidades em temas como saúde, educação, transporte, etc. e assim facilitar a proposição de políticas públicas do campo para a comunidade. Com o resultado desta pesquisa será possível ter uma ideia mais clara do que fazer para melhorar as condições de vida na Terra Roxa.
Ao mesmo tempo em que ocorrem essas pesquisas, a equipe da CPT irá realizar uma série de atividades junto à comunidade, com oficinas de formação e rodas de conversa, onde serão abordados importantes tópicos formativos. Entre os assuntos discutidos estão os direitos humanos, a violência contra a mulher, as formas de acesso às políticas públicas e as formas inaceitáveis de trabalho – especialmente o trabalho escravo e trabalho infantil. A equipe técnica também irá apresentar todo um programa de capacitação em práticas agroecológicas com o objetivo de auxiliar os agricultores a aproveitar ao máximo os recursos de seus lotes.
As expectativas
De acordo com a visão da OIT, trata-se de uma iniciativa fundamental para promover o trabalho decente e a melhor as condições de vida das famílias do Alto Xingu, que é uma região tão marcada pelos altos índices de trabalho escravo e vulnerabilidade social. São atividades que podem aumentar a autonomia econômica da comunidade e fortalecer a organização comunitária. “Este fortalecimento organizacional é uma estratégia fundamental para a superação da pobreza, pois permite que as famílias tenham maior controle sobre suas atividades econômicas e acesso a políticas públicas de apoio. A assistência técnica e a capacitação em práticas agroecológicas, oferecidas pelo projeto, buscam promover a produção sustentável de culturas como o cacau e a apicultura, que ajudam a diversificar as fontes de renda das famílias. A diversificação econômica, por sua vez, reduz a dependência de trabalhos precários e as condições que poderiam levar à exploração”, explica Erik Ferraz, oficial de projetos da OIT. “Esse projeto se alinha com o objetivo maior da OIT de combater a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, promovendo o trabalho decente como um direito básico e essencial para o desenvolvimento sustentável”, completa Ferraz.
O educador popular da CPT, Gilberto Santos, acrescenta que o fortalecimento da agricultura familiar é fundamental para proteger as famílias contra a superexploração. “Fortalecendo a agricultura familiar, estamos rompendo com o ciclo de trabalho escravo. É uma família a menos, é uma comunidade a menos que está nesse ciclo do trabalho escravo, com potencial para ser vítima do trabalho escravo”.
A presidenta da Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Terra Roxa, Maria Francisca da Rocha, demonstrou confiança nos resultados que serão alcançados pelo projeto, especialmente no âmbito do fortalecimento organizacional. “[Os parceiros] estão vindo, visitando, dialogando, conversando com os sócios, pra se organizar mais. Porque faz mais união para fortalecer o trabalho. A gente está se organizando pela associação. E a todo vapor, as pessoas que estão fora estão querendo se organizar, estão fazendo o cadastro. Então, está vendo que as coisas estão andando mais ligeiro do que antigamente”, enfatiza a representante da comunidade.
O seminário de abertura
O Projeto Terra Roxa teve seu marco inicial em um evento que, além de reunir os moradores, contou com música, arte e dança. A CPT e seus parceiros apresentaram as atividades planejadas e os representantes do MPT e da OIT marcaram presença virtual, saudando a comunidade por vídeo. Nos dias anteriores, realizou-se uma série de oficinas culturais em busca do fortalecimento da identidade e da autoestima da comunidade, tendo como instrumento de trabalho geotintas artesanais que foram coletadas por um mutirão dos moradores com ajuda da oficineira Carla Menegaz. As tintas fabricadas com diversas cores de terra foram utilizadas por adultos e crianças como forma de expressar seu pertencimento à Terra Roxa.
Também foi apresentado pela equipe de comunicação o início da produção de um documentário sobre a história da comunidade, que será realizado pela parceira Radio Margarida. Ao mesmo tempo foi lançada a campanha de comunicação, pela parceira La Luna, com o objetivo de fazer a ampla divulgação das ações do projeto nas redes sociais e que incluirá a construção do site próprio e de um canal no YouTube. Desta forma, o trabalho da equipe de comunicação servirá para guardar a história da comunidade aproximando as gerações passadas e futuras, preservando a memória da Comunidade Terra Roxa e sua luta pela terra, por direitos, por trabalho decente e por uma vida digna no campo.
Créditos: Equipe CPT Alto Xingu
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Confira as notícias sobre o trabalho da CPT, bem como suas ações em todo país e os documentos públicos divulgados por ela.
Traz notícias sobre o cerrado e as ações da CPT na preservação desse.
Traz informações sobre a Amazônia e as ações da CPT na defesa deste bioma.
Massacres no campo
#TelesPiresResiste | O capital francês está diretamente ligado ao desrespeito ao meio ambiente e à vida dos povos na Amazônia. A Bacia do Rio Teles Pires agoniza por conta da construção e do funcionamento de uma série de Hidrelétricas que passam por cima de leis ambientais brasileiras e dos direitos e da dignidade das comunidades locais.