O coletivo apontou prejuízos causados aos cultivos e à qualidade de vida entre 2023 e 2024
Por Everton Antunes, com informações da CPT Amazonas
Foto: CPT Amazonas
No dia oito de fevereiro, o município de Careiro Castanho (AM) reuniu cerca de 30 camponeses no Encontro de Trabalhadores Rurais, a fim de debater sobre os efeitos da estiagem e das queimadas entre os anos de 2023 e 2024 na região. Os trabalhadores e trabalhadoras rurais que compareceram à atividade representavam as comunidades do Ramal São José, Santo Antônio do Mamori, Ramal do 10 Andirobão e o PA Panelão.
O encontro contou com momentos de partilha a respeito dos desafios enfrentados diante da emergência climática e buscou propor uma “superação coletiva". A partir das discussões, o coletivo também sugeriu a elaboração de um relatório detalhado sobre os danos sociais e econômicos corroborados pelo impacto ambiental, bem como o fortalecimento do Fórum das Comunidades e o diálogo institucional com o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Durante as atividades, os trabalhadores e trabalhadoras do campo ainda avaliaram ações para o cenário de agravamento das queimadas e estiagem em 2025, de modo a construir estratégias de redução dos danos à produção rural e colaborar para a qualidade de vida das comunidades da terra.
Avaliação dos danos
Foto: CPT Amazonas
De acordo com os camponeses e camponesas presentes no encontro, o ano de 2024 foi marcado por prejuízos na produção – desde a perda dos cultivos, em decorrência da falta de chuva, até o aumento dos efeitos da seca. Os participantes também apontaram o isolamento das comunidades, o que dificultou o acesso a serviços essenciais, a exemplo da dificuldade de deslocamento das crianças até as escolas.
Ao longo das atividades, diversas foram as queixas de abandono e omissão do poder público diante dos problemas enfrentados pelas comunidades. O coletivo também destacou a falta de implementos agrícolas e a ausência de financiamentos e políticas públicas de proteção social nas regiões ocupadas.
Entre outros prejuízos apontados pelos trabalhadores e trabalhadoras, cabe destacar a seca dos poços, a escassez de água potável para consumo e plantio, problemas respiratórios causados pela fumaça, e a estiagem de rios e igarapés. Segundo os moradores da região, não houve ajuda emergencial ou assistência aos ramais neste período, o que expôs a região a condições de “extrema vulnerabilidade social”.
Estimativas
Os habitantes dos ramais preveem a persistência da seca no ano de 2025, caso medidas de contenção dos impactos ambientais não sejam executadas. Esse cenário, conforme documento elaborado na ocasião da atividade, “pode aumentar o isolamento das comunidades” e “prejudicar ainda mais a produção agrícola”.
“Os participantes enfatizaram a urgência de políticas públicas que abordem a regularização fundiária e promovam o fortalecimento do Fórum das Comunidades, além de um diálogo contínuo com órgãos como o MDA e o Incra, para enfrentar os desafios [ocasionados] pelas mudanças climáticas”, sinalizou o relatório do encontro.
Desdobramentos
Foto: Reunião INCRA/MDA com Lideranças e Entidades 11fev 2025.
No dia 11 do último mês, o Incra e o MDA receberam representantes das comunidades amazonenses para ouvir demandas. Em diálogo, os órgãos se comprometeram a visitar o município de Careiro Castanho, a fim de construir alternativas de fortalecimento à agricultura familiar e elaborar ações preventivas diante do quadro de emergência climática.
O Encontro de Trabalhadores contou com o apoio de entidades da Associação ACOPROSA, Ramal Mamori, Ramal São José, Ramal do 10 Andirobão, PA Panelão, Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras dos Direitos, IAS e Rádio Rio Mar.
O seringal é tradicionalmente ocupado pelas famílias seringueiras desde a década de 90, sendo um território de disputas entre as famílias posseiras e grandes fazendeiros interessados na terra
A violência que impera sobre os conflitos no campo no sul do Amazonas é uma constante. Boca do Acre, chamada de “terra sem lei”, mais uma vez é palco da violência promovida pelo latifúndio e vítima do descaso por parte do poder público. Na última terça-feira, 25 de fevereiro, as famílias posseiras do Seringal Entre Rios se depararam com uma equipe de segurança armada dentro do território seringueiro, que acreditam ter sido contratada pelo fazendeiro interessado na área, impedindo a passagem de moradores e controlando a movimentação dos trabalhadores e trabalhadoras, violando seu direito fundamental de ir e vir.
Amedrontadas pela presença dos homens armados, as famílias solicitaram a mediação da CPT para dialogar com a suposta equipe de “segurança” que, perguntada sobre a origem da ordem para ação, se negou a responder, afirmando que estaria cumprindo uma lei federal para fiscalização ambiental, mas sem apresentar qualquer documento e exigindo informações pessoais de todas as famílias posseiras. As famílias questionaram, pois os mesmos não são servidores do Ibama, ICMBio ou identificados por outros órgãos de fiscalização ambiental, portanto não têm competência ou autorização para atuar na área. Além disso, a empresa está, neste momento, iniciando a construção de uma guarita para identificação e controle da entrada e saída das pessoas no seringal.
“Ali, moram mais de quarenta famílias, são tradicionais e trabalham a terra de forma sustentável naquela região. O que acontece é uma tentativa de tomar a terra das famílias para expansão do latifúndio, então estão tentando coibir e amedrontar as famílias dessa forma, o que é ilegal, pois o direito de ir e vir dessas pessoas não pode ser violado. Foi o que percebemos pelo nosso acompanhamento dos conflitos e escutas, mas as famílias permanecem lá e não vão abrir mão”, afirmou um agente da CPT Acre, que acompanha a comunidade no sul do Amazonas pela maior proximidade geográfica e atua na mediação de conflitos e denúncias de violações dos direitos dos povos na região.
O Seringal Entre Rios é tradicionalmente ocupado pelas comunidades seringueiras desde a década de 90, sendo um território de disputas entre as famílias posseiras e grandes fazendeiros interessados na terra. Nestes quase quarenta anos de ocupação, já enfrentaram diversas violências promovidas pelos latifundiários e pela negligência do Estado, tendo, inclusive, um histórico de pistolagem contra as comunidades tradicionais na região.
AMACRO - zona de desenvolvimento ou zona de conflitos?
O município de Boca do Acre, onde está localizado o seringal, integra a região da Amacro, também conhecida como Zona de Desenvolvimento Sustentável (ZDS) Abunã-Madeira, que abrange porções dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia. Prometida como modelo de desenvolvimento com foco na sociobiodiversidade, a Amacro se tornou epicentro de grilagem para exploração madeireira e criação de gado, com altas taxas de desmatamento, queimadas e conflitos.
Dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da CPT, destacam que, no primeiro semestre de 2024, a violência se intensificou na região da Amacro, que junto às zonas de desenvolvimento da Amazônia Legal e do Matopiba, concentrou grande parte dos conflitos no campo nesse período. Esse aumento da violência relacionada aos conflitos agrários na Amacro foi na contramão do panorama nacional de ocorrências de conflitos no campo, que apresentou uma pequena queda em relação ao mesmo período em 2023.
Entre janeiro e junho de 2024, os dados de violência por conflitos na Amacro apresentaram 10 pessoas Ameaçadas de Morte, 9 casos de Criminalização e 7 episódios de Intimidação. Os posseiros estão entre as principais vítimas e os fazendeiros são os maiores causadores dessas violências. De 2023 para 2024, relativo ao primeiro semestre, os números de grilagem tiveram um salto de 117% (de 6 para 13 casos), e os registros de pistolagem cresceram de forma exorbitante, de 2 para 11 casos, um aumento de 450%.
Não apenas os dados, mas o histórico e o cotidiano de violência na região intensificam a insegurança das famílias do Seringal Entre Rios, que temem pelas suas vidas e se encontram, agora, coagidas pela presença de homens não identificados armados no território, com seus direitos constantemente violados pelo latifúndio e pelo Estado. Com o acompanhamento da CPT, as famílias estão formalizando denúncia aos órgãos competentes, mas as violências a que são submetidas se intensificam a cada minuto, enquanto a política de Reforma Agrária continua paralisada no Brasil.
Por Jonathan Moens e Thomas Bauer
Diana Silva cresceu em Umburanas, um pequeno município da Bahia, a 450 km de Salvador. Ela passou a infância toda ali com a família, criando gado e cultivando feijão, mandioca, milho e melancia. Era uma vida tranquila e modesta. “No tempo que eu fui criada aqui, aqui era isolado, muito isolado mesmo”, conta.
Poucas décadas depois, sua casa está cercada por aproximadamente 80 turbinas eólicas, uma delas dentro de sua propriedade. Um labirinto de estradas liga as torres para que as vans possam circular. Linhas de transmissão serpenteiam de um canto a outro do campo. Nos últimos anos, a região deixou de ser uma paisagem isolada e se tornou um grande parque eólico cujo investimento superou os R$ 2 bilhões. No mapa, a casa de Diana é um ponto avermelhado em um mar de turbinas eólicas brancas que chegam a 150 metros.
O parque é propriedade da Enel, multinacional de energia italiana com centenas de subsidiárias no Brasil. Diana e mais de uma dezena de moradores da região alegam que a Enel e uma outra empresa chamada Maestro Holding de Energia tomaram suas terras para instalar turbinas.
Daniel Carneiro, advogado que representa esses moradores, diz que as ações das empresas são uma forma de grilagem. A Enel e a Maestro Holding negam as acusações.
O caso de Diana faz parte de uma tendência muito mais ampla, que os especialistas denominam “grilagem verde”, um processo pelo qual, em nome da produção de energia renovável, empresas conseguem obter grandes extensões de terras públicas. Um estudo da revista Nature sobre a apropriação em massa de terras no Brasil revelou que a Enel era a maior proprietária estrangeira de projetos de energia renovável.
Durante meses, jornalistas da IRPIMedia, do Intercept Brasil e da Mongabay investigaram essas denúncias. Descobrimos vários possíveis casos de grilagem por parte de empresas que prestam serviço para a Enel, conhecidas como intermediárias ou desenvolvedoras.
Imagem de satélite mostra o labirinto de estradas que unem as turbinas no Parque Aroeira. Foto: Jonathan Moens
Com táticas muitas vezes agressivas e que se aproveitam do fato de muitos agricultores não terem registro oficial de suas terras, essas companhias incorporam as terras de pequenos agricultores e, depois, arrendam essas áreas para a Enel construir seus parques eólicos ou de energia solar – ou seja, investir em energia verde.
A multinacional parece não estar diretamente envolvida nessas práticas, mas o fato de suas operações dependerem diretamente dessas negociações despertaria dúvidas sobre sua cumplicidade, segundo especialistas.
Durante nossa investigação, identificamos vários processos judiciais, tanto movidos por cidadãos contra incorporadoras que buscam terras para arrendar para a Enel, quanto alguns iniciados pela própria multinacional italiana contra moradores das áreas afetadas por seus projetos.
‘A Enel sabe perfeitamente bem o que está acontecendo’
Questionado, o escritório da Enel no Brasil afirmou, em nota enviada ao Intercept, que “segue rigorosamente as determinações legais, a regulação do setor e obedece a todos os requisitos ambientais”. A multinacional italiana disse ainda que “não realiza aquisição de terras no Brasil, de acordo com as leis brasileiras” e que “as áreas onde instala aerogeradores ou painéis solares são propriedades privadas com a devida comprovação de regularidade do ponto de vista fundiário”. Leia aqui a resposta da empresa na íntegra.
Uma advogada que trabalhou para a Enel como consultora jurídica durante quase cinco anos – e que não será identificada por questões de segurança –, afirma que as intermediárias compartilhavam apenas parte das informações sobre como trabalham com a Enel e que, apesar de todas as empresas envolvidas terem a responsabilidade de verificar se as áreas não apresentam problemas fundiários, na prática, isso às vezes não acontecia.
“A Enel sabe perfeitamente bem o que está acontecendo e, na verdade, trabalha com essas intermediárias para delegar o trabalho sujo”, disse um funcionário da Enel que prefere não ser identificado.
Em sua resposta à reportagem, a empresa afirmou que “antes de concluir a aquisição ou co-desenvolvimento de projetos, a companhia realiza uma due dilligence, abrangendo todos os aspectos relacionados aos direitos de propriedade, incluindo a comprovação da titularidade por meio da atualização dos registros oficiais”.
Parte da comunidade quilombola Lagoa, que fica entre os municípios piauienses Queimada Nova e Lagoa do Barro do Piauí (Foto: Thomas Bauer)
Embora não esteja em questão a importância das energias renováveis no combate à emergência climática, especialistas, lideranças dos povos originários e autoridades ouvidos na reportagem concordaram que sua implantação deve considerar as realidades sociais e políticas das pessoas que moram nessas áreas.
“Não somos contra o desenvolvimento. Mas a gente quer o desenvolvimento com envolvimento, onde o povo seja escutado, o povo participe. Esse é desenvolvimento que a gente defende”, disse uma liderança quilombola do Piauí.
A Enel foi alvo de críticas generalizadas após uma sequência de falhas no fornecimento de energia em várias cidades da Grande São Paulo nos últimos meses. Em outubro, um enorme apagão atingiu 3 milhões de habitantes, e milhares ficaram sem energia – alguns por quase uma semana.
A extensão do apagão e a demora no retorno do fornecimento de energia fez alguns políticos chegarem a pedir a cassação da concessão da distribuidora. O Tribunal de Contas de São Paulo, identificou “graves falhas” no cumprimento de metas de investimento e na qualidade do atendimento da Enel, sugerindo uma auditoria externa.
A Eletropaulo, antiga distribuidora de energia de São Paulo, começou a ser privatizada em 1998, quando foi adquirida por um consórcio de empresas nacionais e internacionais. Em 2001, a empresa foi novamente a leilão e foi comprada pela Enel.
A empresa então consolidou sua posição como uma das maiores no setor de energia solar e eólica do Brasil. Em 2023, a Enel Américas anunciou seu plano estratégico para o continente, prevendo um aumento dos investimentos no Brasil para US$3,7 bilhões (R$ 21 bilhões), 45% a mais que o previsto anteriormente.
E as áreas na Bahia e no Piauí visitadas pela reportagem estão entre os focos dessa expansão. “Até onde se sabe, a região Nordeste apresenta o melhor vento do mundo para a produção de energia eólica”, afirma Elbia Gannoum, diretora executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica, ABEEólica.
Muitas dessas áreas, no entanto, se sobrepõem a terras públicas ocupadas por pequenos agricultores como Diana. “Existe um conflito de interesse”, diz Michael Klingler, autor do estudo da Nature e pesquisador de desenvolvimento econômico sustentável na Universidade BOKU de Viena.
“Há comunidades tradicionais que estão lutando há décadas para terem a posse sobre suas terras regularizadas, e agora enfrentam essa nova pressão das empresas de energia eólica.”
Uma das áreas onde essa pressão vem sendo mais sentida é o parque eólico de Aroeira, na Bahia, justamente onde está a propriedade de Diana. O parque tem capacidade de gerar energia suficiente para atender quase 850 mil residências, evitando a emissão de quase um milhão de toneladas de CO2 anualmente.
O projeto promete muitos benefícios, mas Diana, seu marido, e outros moradores locais dizem que a construção aconteceu às custas de seus meios de subsistência. Nos processos, ela e outros moradores da região, que não possuem documentos que comprovam seu direito à terra, alegam serem os “possuidores” legítimos, porque, como posseiros, vivem na área e a utilizam há décadas.
O Código Civil brasileiro reconhece esse direito, ao afirmar que “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.
Mas a Maestro alega que as terras foram adquiridas e arrendadas para elas antes e acusam os agricultores de “desapropriação”.
A disputa remonta ao início dos anos 2000, quando a Maestro entrou em contato com a comunidade pela primeira vez. Um funcionário da empresa passava tempo com os moradores, segundo Diana, os tranquilizava no sentido de que continuariam donos de suas casas. “Aí ele chegava aqui, conversava mais a gente, tomava café. E a gente pensando que ele era amigo da gente mesmo”, contou.
A Maestro conseguiu se apropriar de várias áreas e, quando as construções começaram, Diana conta que um funcionário da Enel pediu que ela fizesse o mapeamento de seu território. “Eles me disseram: faça um mapa da sua terra para gente localizar tudo certinho.’”
Diana contratou um topógrafo e repassou as informações. Hoje, uma turbina eólica de 150 metros de altura se ergue dentro dos limites do mapa que ela fez, segundo as coordenadas que ela compartilhou com a equipe de investigação.
A multinacional italiana afirmou que “no parque eólico Aroeira, a Enel foi envolvida em apenas uma ação, que questiona a posse de um dos imóveis onde o parque foi construído, mas que está relacionada à empresa desenvolvedora do projeto, que também é proprietária do terreno.”
A empresa informou ainda que “sobre as ações judiciais em curso envolvendo as empresas de geração da Enel, 75% foram propostas pela própria companhia e não envolvem questões fundiárias. Já os litígios em que a companhia foi acionada se referem a temas variados, mas que não possuem qualquer relação com apropriação ilegal de terras.”
Antes que o projeto no Aroeira fosse concluído, vários moradores protestaram, impedindo o acesso dos funcionários da Enel aos principais canteiros de obras com carros, motocicletas e tratores. Maestro e Enel, por meio de uma subsidiária local, entraram com ações de reintegração de posse da área, afirmando que “mais de 2 bilhões de reais já foram investidos na geração de energia eólica”, e que esses bloqueios haviam causado “danos incalculáveis”.
De acordo com Carneiro, o advogado dos moradores, e com o José Silva, marido de Diana, a polícia militar interveio para impedir o protesto, e a Maestro contratou seguranças particulares para limitar o acesso dos moradores às terras em disputa por mais de dois meses. Nesse período, Diana e outros agricultores perderam várias cabeças de gado. Os moradores conseguiram reverter a decisão e recuperar o acesso, mas os seguranças continuaram a controlar a entrada por mais de um ano, ainda segundo Carneiro e Silva.
A Maestro e a Enel entraram com ações separadas contra os moradores, afirmando que adquiriram o direito sobre as terras em questão. Carneiro, advogado dos produtores rurais, contesta essa alegação, e afirma que ela se baseia em práticas enganosas que envolvem georreferenciamento. Esse mapeamento – que chega a custar R$ 15 mil – é usado pelas empresas para se apropriar ilicitamente de terrenos, segundo o advogado.
“Às vezes, elas compram uma área de 40 hectares e, com georreferenciamento, a transformam em um terreno de milhares de hectares. E fazem isso inserindo imóveis vizinhos, já que sabem que a maioria não é georreferenciada”, explica Carneiro.
A prática afeta inclusive os moradores que têm todas as documentações de titularidade de suas terras. É o caso de Joaquim Alves, agricultor de Umburanas. Quando ele finalmente conseguiu meios para fazer esse mapeamento especializado, não foi possível porque ela já estava listada dentro dos limites de outra área, chamada Fazenda Montevidéu. Sem ele saber, a Maestro georreferenciou sua propriedade a inseriu em um território do qual era proprietária, conforme explicou Carneiro.
Para resolver a questão, a Maestro ofereceu R$ 1 milhão pela propriedade. Alves inicialmente se recusou, mas acabou aceitando o acordo por um valor não revelado. A Enel, então, arrendou a área da Maestro e instalou cinco turbinas eólicas no local, disse Carneiro.
A Maestro não é a única empresa ligada à Enel que usa georreferenciamento. A Casa dos Ventos, uma das primeiras empresas a se envolver na regularização de terras no país, também usa esse tipo de mapeamento para adquirir terras, segundo um ex-funcionário que prefere permanecer anônimo por temer represálias. Eles então arrendam ou vendem essas áreas para as empresas que investem parques eólicos ou solares, incluindo um de seus parceiros, a Enel.
Esse mesmo ex-funcionário conta que quando os moradores se recusam a arrendar vender suas propriedades, a Casa Dos Ventos recorreria a um processo de “regularização forçada”, em que encontrava uma matrícula antiga da área e fazia um georreferenciamento ampliando seu perímetro ao absorver áreas vizinhas. “Assim, uma propriedade que há 60 anos era registrada como tendo cerca de 20 hectares passa a ter 200 graças ao novo georreferenciamento», diz.
O primeiro passo envolve enviar funcionários para prospectar áreas com potencial eólico ou solar e tentar fechar contratos de arrendamento com essas pessoas. “Eu ia visitar aquelas áreas como um desses vendedores que batem de porta em porta. Conversava com um por um para tentar fechar contratos de arrendamento”, conta outro ex-funcionário da Casa Dos Ventos.
Se os moradores diziam não, ele insistia. “A empresa não desistia facilmente”, conta o ex-funcionário. Quando as pessoas não tinham registro, a Casa dos Ventos assinava um contrato preliminar para garantir o direito de uso da terra, e então cuidava de toda a burocracia, reunindo documentos ou contas de luz, fazendo o georreferenciamento e até protocolando a documentação nos órgãos competentes.
Segundo Fernando Joaquim Ferreira Maia, professor de Ciências Jurídicas na Universidade Federal da Paraíba, cuja equipe realiza pesquisas de campo em comunidades afetadas, a Casa dos Ventos e outras empresas de regularização fundiária usariam táticas agressivas para tentar fechar contrato com as pessoas.
O professor conta que, em suas pesquisas, ouviram relatos de agricultores contando que esses representantes algumas vezes cooptam pessoas da própria comunidade para ajudar, abordam moradores em bares e até fazem ameaças veladas, dizendo que [as turbinas] serão instaladas em suas terras de qualquer jeito, então não teria por que se recusar a assinar.
Os contratos que essas empresas celebram são sigilosos e frequentemente têm uma cláusula que proíbe a divulgação de informações. Ao longo da investigação, acessamos oitos desses contratos, dois deles da Casa dos Ventos.
Alguns dos contratos tinham vigência de mais de 40 anos e renovação automática por décadas, o que, na prática, concede às empresas acesso à terra por várias gerações. Os valores pagos são baixos: a Casa dos Ventos paga entre R$ 100 e R$ 500 por mês antes do início da operação da turbina eólica, e, posteriormente, 1,5% das receitas geradas, deduzido de impostos. Na Espanha, o valor chega a ser mais que o dobro, segundo Maia, o professor de Direito.
Turbinas eólicas cercam comunidade quilombola próxima à Queimada Nova, no Piauí (Foto: Thomas Bauer)
Ainda assim, muitos moradores locais são atraídos pela perspectiva de uma renda adicional, e assinam de qualquer forma. Muitos também têm escolaridade precária, o que dificulta a compreensão dos contratos.
Não foram encontrados contratos entre a Enel e indivíduos durante essa investigação. Mas a maioria dos contratos obtidos — incluindo aqueles ligados à Casa dos Ventos — incluem uma cláusula que efetivamente transfere todos os direitos relacionados ao contratante para quem acabar arrendando ou adquirindo a terra. A advogada que já prestou serviços para a gigante italiana explica que essa cláusula é uma exigência típica da Enel.
Com ou sem contrato, dezenas de pessoas que vivem nas proximidades das turbinas eólicas da Enel relatam que sua qualidade de vida piorou em decorrência das construções, algumas localizadas a poucas centenas de metros das residências, de acordo com uma imagens de satélite.
Muitos moradores reclamam do barulho incessante das turbinas. “A gente pensa que é um caminhão que tá chegando. Quando venta, o barulho é muito grande. E às vezes a gente ouve também uns estrondos”, diz uma trabalhadora rural de Queimada Nova.
Um estudo recente com mais de 100 pessoas que vivem perto de parques eólicos descobriu que muitas sofrem com uma série de sintomas, incluindo dores de cabeça, ansiedade, insônia e irritabilidade.
Vários agricultores relatam que o ruído também afeta a saúde dos animais. “O desenquieto dos animais. Isso é o que mais deixa a gente triste”, conta uma liderança indígena da região.
Outros enfrentam problemas com a grande quantidade de poeira levantada pelos veículos que transportam equipamentos pesados. “Minha mulher limpa a casa duas ou três vezes por dia”, conta um quilombola que cria cabras.
As comunidades também não se sentem ouvidas. Muitas lideranças indígenas e quilombolas disseram que nunca foram convidadas para reuniões relacionadas aos projetos de energia renovável.
A liderança indígena afirma que a Enel jamais se reuniu com sua comunidade. Ela conta que uma reunião foi realizada quando as empresas chegaram à região, mas que nenhuma das comunidades indígenas ou quilombolas foi convidada, violando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT. Já uma liderança rural em Queimada Nova conta que eles precisavam insistir para realizar uma consulta.
A Enel afirmou que “atua ativamente na identificação de comunidades tradicionais próximas aos seus empreendimentos, seguindo rigorosamente a legislação ambiental brasileira e que “as comunidades localizadas no raio de até 8 km a partir do local do empreendimento são envolvidas em estudos participativos para avaliação dos riscos e impactos gerados pelas obras. A partir desses estudos, são construídos planos conjuntos de ação”.
À medida que a Enel continua a se expandir para novos territórios — com mais de 100 turbinas eólicas em construção— o futuro dessas comunidades parece sombrio.
Tentando se preparar para isso, muitas comunidades se uniram para resistir. Uma comunidade protestou em frente a uma torre de medição e conseguiu que ela fosse removida. Outras registraram oficialmente suas terras para se protegerem contra tentativas de grilagem. Algumas realizaram oficinas para discutir as experiências de cada uma e se informarem sobre seus direitos.
O objetivo, segundo a liderança quilombola, não é impedir uma transição para as energias renováveis, mas orientá-la para beneficiar a todos, não apenas as empresas de energia.
Procuradas, a Maestro Holding e a Casa dos Ventos não responderam.
Esta investigação foi desenvolvida em colaboração com IrpiMedia e com o apoio do Journalismfund Europe.
* Por questões de segurança, os nomes dos entrevistados foram alterados.
* Esta reportagem foi originalmente publicada em italiano pelo portal IrpiMedia e, em português, pelo Intercept Brasil.
Edson Sato/ISA
Em recente decisão, o Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou seguimento à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7052 (ADI-7052). Essa ação, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) e subscrita na condição de Amicus Curie pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e diversas outras entidades de defesa de direitos, busca garantir, por meio de decisão judicial do STF, que seja dada uma interpretação conforme a Constituição Federal no sentido de que as terras públicas transferidas do domínio da União para os estados do Amapá, Rondônia e Roraima sejam destinadas à Política Nacional de Reforma Agrária, incluindo a proteção dos Direitos Territoriais.
Este entendimento constitucional, aliás, está devidamente disciplinado no Art. 188 da mesma Constituição Federal ao dispor que a "destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária."
No entanto, as legislações aplicadas para a execução dessas transferências, as leis federais 10.304/2001, 11.949/2009 e 14.004/2020, dos respectivos estados, deixaram de aplicar o sentido original presente na Constituição Federal para uso dessas terras públicas. Assim, na forma como tem sido feita, tal destinação é inconciliável com as demandas das agricultoras e agricultores familiares, dos camponeses e camponesas e dos povos e comunidades tradicionais em seus modos de produção e defesa da vida.
Tanto as restrições ao acesso às terras públicas quanto às políticas públicas específicas indicam um verdadeiro retrocesso à Política de Reforma Agrária nestes estados. Isso significa um desvio de finalidade da própria política pública, remontando uma vez mais tantos prejuízos à classe trabalhadora no campo. Essa foi a razão principal da ADI-7052 requerer ao STF que se pronuncie sobre PARA QUÊ e PARA QUEM as terras públicas serão destinadas.
Na decisão, que negou seguimento à Ação, o Ministro Relator alega a falta de representatividade da Contag para formular o pedido e, ainda, não haver dúvidas sobre outra interpretação constitucional das leis indicadas. Tais razões, entretanto, não subsistem, uma vez que em vários casos, já apreciados pelo STF, tanto a Contag tem demandado, e por isso é representante legítima para promover a Ação. Por outro lado, é publicamente conhecido o quanto se age nas lacunas da lei e, por isso, a interpretação conforme a Constituição é justamente para impedir isto.
Não bastasse os históricos problemas em dar efetividade a uma Política de Reforma Agrária no plano executivo, percebe-se também o quanto esse assunto ainda encontra resistências também no Poder Judiciário. Enquanto isso, o direito à terra e ao território continuam sendo negados, impedindo inclusive o próprio “direito de existir” a milhares de famílias.
A face que perdura e se revela cruel, mesmo que invisível aos olhos do judiciário, é aquela continuamente vivida pelos pequenos posseiros e que agora, nas mãos dos estados que têm legislação própria de uso da terra, serão, e já estão sendo, entregues ao agronegócio, da soja, do boi, da madeira e da mineração.
Incontáveis têm sido os casos de violência contra os povos do campo na região dos três estados abrangidos: Amapá, Roraima e Rondônia. No recorte de dez anos entre 2014 e 2023, foram: 2.124 ocorrências de conflitos envolvendo, principalmente, posseiros, sem-terra, indígenas, assentados e quilombolas; 115 assassinatos, sendo 96 em Rondônia, 16 em Roraima e 03 no Amapá; 256 lideranças ameaçadas de mortes; 9.057 famílias despejadas e 2.650 famílias expulsas.
Esta violência, inclusive, muitas vezes conta com a leniência e atuação do próprio Estado. Ao mesmo tempo, percebe-se uma verdadeira renúncia de patrimônio público através de concessões de áreas públicas para interesses particulares e comerciais, como planos suspeitos de manejos florestais, recrudescimento na fiscalização das pequenas posses e ocupações, descaso em relação às Políticas Públicas, etc. Em regra, as terras públicas destes estados têm servido principalmente ao propósito do favorecimento a grandes interesses e projetos em detrimento da política de Reforma Agrária e Soberania Alimentar.
A expectativa gerada em torno da ADI 7052 é justamente no sentido de que essas terras públicas contemplassem os direitos daqueles que realmente precisam dela para sua existência e dignidade: posseiros, ribeirinhos, extrativistas, pequenos agricultores. Por isso, nosso repúdio à esta decisão que acaba, enfim, legitimando a distorção de direitos adquiridos. Contra esta violação, protestamos!
Diante da decisão monocrática que negou seguimento à ADI 7052, a CPT, Contag e demais Organizações externam sua indignação, uma vez que afronta diretamente direitos dos povos do campo, das florestas e das águas. Afronta, ainda, o Bem Público, pelo qual é obrigação proteger, preservar e garantir uma destinação no mínimo conforme dispõe a Constituição.
Clamamos para que, agora submetida ao Tribunal Pleno do STF, sejam corrigidos estes equívocos e dado prosseguimento à Ação até que seja assumido provimento de forma plena. Assim, cremos, Direito e Justiça se farão em defesa das Terras Públicas e de sua correta e constitucional destinação.
Sob a lona e a morosidade da justiça, famílias resistem há mais de 20 anos acampadas à beira da estrada na área do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Novo Mundo
Por Júlia Barbosa | Comunicação Nacional da CPT
As 74 famílias que aguardam a concretização do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Novo Mundo, criado pelo INCRA em abril de 2024, viram novamente o sonho da conquista da terra ser adiado, devido à morosidade orquestrada da justiça. As famílias, que estão acampadas há mais de 20 anos na beira da estrada, aguardavam o julgamento do Mandado de Segurança n.°. 1023133-54.2021.4.01.0000-TRF 1, que por mais de três anos impediu que a União fosse imitida na posse da área. Após o julgamento, o Juiz Federal decidiu, em junho de 2024, pela desocupação de 2.000 hectares da Fazenda Cinco Estrelas pelos grileiros - ocupantes ilegais da área - para destinação à reforma agrária. No entanto, dias antes do prazo limite concedido para desocupação, a Desembargadora Federal Kátia Balbino, relatora da apelação, determinou o seu adiamento, argumentando a possibilidade de solução consensual da disputa em vias administrativas, novamente impedindo a União de ser imitida na posse da área e, consequentemente, impossibilitando a concretização do assentamento das famílias.
Este argumento, entretanto, já foi apreciado e rejeitado, como publicado na Resolução n. 64/2024 no Diário Oficial da União, em 29 de outubro de 2024, na qual consta “Indeferimento de Recurso Administrativo. Proposta de acordo envolvendo área pública federal, sobre a qual há manifestação de interesse social para a reforma agrária registrado pela União. Manutenção de interesse para a reforma agrária”, encerrando assim, definitivamente, o processo administrativo n. 54000.020427/2024-39. Desconsiderando essa resolução e prolongando a sofrida espera dos trabalhadores acampados, a União foi novamente impedida de ser imitida na posse da área e de permitir a concretização, por meio do INCRA, do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Novo Mundo, que prevê o assentamento de 74 famílias.
“A gente sempre cobra da justiça, mas nada é feito. A gente não consegue entender, porque essa área que a gente pleiteia já tem a sentença, antecipação de tutela, portaria do assentamento… tudo certinho. Mas infelizmente a justiça favorece o grileiro. São coisas que a gente não consegue entender. Como tirar o direito de 74 famílias para defender os interesses de um único grileiro?” - trabalhador rural acampado que aguarda o assentamento no PDS Novo Mundo.*
20 anos violentos, mas de resistência
As 74 famílias que fazem parte do acampamento vivem há 20 anos debaixo de lona, na beira das estradas, em situação de extrema vulnerabilidade, não possuindo acesso aos direitos mais básicos, como água potável, moradia digna e atendimento de saúde. Por duas décadas, as famílias vêm sendo cotidianamente violentadas, sofrendo todo tipo de violação dos Direitos Humanos pela atuação agressiva de jagunços e da empresa de segurança Tática Serviços, contratada pelo grileiro. Ainda, a omissão e conivência do estado de Mato Grosso e do judiciário diante dos casos de violências contra estas famílias são notórias e têm sido fortes elementos para a perpetuação e aprofundamento dos conflitos no campo.
“A situação aqui é muito complicada, só quem vem aqui entende realmente o que a gente fala, a realidade violenta que a gente vive. As famílias não aguentam mais esperar. Sofremos muitas ameaças, jagunços armados atiram próximo ao acampamento, a gente teme o derramamento de sangue. Algo tem que ser feito para evitar essa tragédia e amanhã pode ser tarde. O judiciário precisa de um choque de realidade sobre os conflitos no campo e a violência contra essas 74 famílias. Isso é um pedido de socorro”. - trabalhador rural acampado que aguarda o assentamento no PDS Novo Mundo.
Após estes 20 anos de espera, diante da morosidade do Tribunal Regional Federal da 1ª Região – TRF1, as famílias sem-terra do Acampamento União Recanto Cinco Estrelas ocuparam, em 27 de maio de 2024, a área destinada ao PDS Novo Mundo, parte da Fazenda Cinco Estrelas, de propriedade da União. Durante a ação, pelo menos 12 trabalhadores sem-terra, além de uma defensora pública e três agentes da Comissão Pastoral da Terra, que estavam no local para assegurar a integridade das famílias e mediar o conflito, foram detidos, sem ordem judicial, pela Patrulha Rural da Polícia Militar de Mato Grosso. A atuação da polícia ainda contou com uma série de abusos, com agressões físicas aos trabalhadores e destruição de barracos dos acampados, dentre diversas violências.
“O sentimento que nos toma, enquanto Pastoral da Terra, é de muita angústia e revolta diante de tanta injustiça. Nós acompanhamos essas famílias há anos, diariamente, e falamos com propriedade que aquelas são pessoas que não estão buscando o lucro, estão buscando um sonho. Essas famílias sonham em alcançar uma vida digna e ter seu direito ao acesso à terra - que é garantido pela Constituição. Não é um sonho utópico, é um sonho concreto e definitivamente possível de ser realizado, se não tivéssemos uma disputa tão desigual e injusta” - coordenadora da CPT MT* que foi detida junto aos trabalhadores acampados em ação truculenta da polícia durante a ocupação da área em maio de 2024.
A área reivindicada pelas famílias pertence à União, conforme sentença na Ação Reivindicatória nº. 0000096-90.2009.4.01.3603, proposta pela própria, que tramitou na Justiça Federal de Sinop-MT, a qual reconheceu a propriedade da área da Fazenda Cinco Estrelas, com 4.354,4729 hectares, como sendo da União. A sentença também antecipou tutela para que a autora fosse imitida na posse de 2.000 hectares, área destinada à reforma agrária. No entanto, durante três anos, um Mandado de Segurança - que deveria ser julgado em um prazo de até 30 dias pelo TRF1 - impediu a imissão da União na posse da área e, consequentemente, a implementação da política pública de reforma agrária.
“O que temos observado no estado de Mato Grosso, mas também a nível nacional, é a utilização do judiciário para a concretização da grilagem de terras. São mais de 70 famílias em estado de extrema vulnerabilidade, que dependem do acompanhamento de órgãos públicos e de entidades de defesa dos direitos humanos, como a CPT, contra um grileiro capaz de contratar diversos escritórios de advocacia. Não é uma disputa judicial igualitária, ela é moldada e direcionada pelo poder político e econômico, que está a favor dos grandes concentradores de terra e do latifúndio” - coordenadora da CPT MT.
Agora, com o Mandado de Segurança finalmente julgado, porém, logo em seguida, o adiamento da desocupação da área em um processo que encontra-se apto para ser pautado para julgamento, mais uma vez as famílias têm seu sonho de conquista da terra postergado pela morosidade da justiça, que parece trabalhar para a perpetuação do latifúndio e do sofrimento das famílias sem-terra. As violências contra essas famílias só cessarão quando a Política de Reforma Agrária for efetivada e o PDS Novo Mundo for concretizado, com as famílias efetivamente assentadas, plenas em direitos e com a garantia da vida digna.
Decisão atende luta da Justiça Global, CPT e Dignitatis, junto à família de Manoel Luíz
Por Lara Tapety | CPT Alagoas
Em fevereiro de 2024, o Estado brasileiro reconheceu, em audiência da Corte IDH, em São José, na Costa Rica, sua responsabilidade no caso (Foto: Julliana Saborío/Corte IDH)
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro pelo assassinato do trabalhador rural Manoel Luíz da Silva, morto em 19 de maio de 1997, no município de São Miguel de Taipu, na Paraíba. A leitura da sentença foi feita na última terça-feira (18) e reconhece a responsabilidade internacional do Brasil “pela situação de impunidade dos fatos”.
O caso foi apresentado pela Justiça Global, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Dignitatis, que denunciaram o Brasil pela violação dos direitos às garantias judiciais, à proteção judicial e à integridade moral e psíquica dos familiares da vítima.
Justiça tardia, mas necessária
A investigação e o julgamento do crime no país foram marcados por falhas, como a demora na perícia, a não apreensão da arma do crime e a desconsideração do contexto de violência contra trabalhadores rurais na região. A Corte IDH considerou que a duração da investigação e do processo penal por mais de 22 anos constituiu uma violação da garantia do prazo razoável e uma negação de justiça. Além disso, avaliou que houve violação do direito à integridade psíquica e moral dos familiares da vítima.
Em uma audiência realizada em fevereiro do ano passado, o Brasil reconheceu que violou direitos humanos na condução do processo e pediu desculpas oficialmente aos familiares de Manoel Luíz. No entanto, o Brasil não reconheceu a violação do direito à verdade e sua relação com a violência contra trabalhadores rurais.
Sessão de 2024 da Corte Interamericana ouviu o filho de Manoel Luiz da Silva — Foto: Ruggeron Reis/Justiça Global
A sentença da Corte determina que o Brasil indenize os parentes de Manoel Luiz, ofereça suporte médico e psicológico adequado e realize um ato público de reconhecimento da responsabilidade do Estado. As medidas incluem indenizações compensatórias de 20 mil dólares para cada familiar, tratamento gratuito para a esposa e o filho de Manuel Luís e a implementação, no prazo de dois anos, de um sistema regional de monitoramento da violência contra trabalhadores rurais na Paraíba.
O país também deverá publicar, no prazo de seis meses, um resumo oficial da decisão nos Diários Oficiais da União e da Paraíba, além de manter o documento disponível por um ano nos sites do Governo Federal, do Ministério Público e do Tribunal de Justiça estadual.
Tânia Maria de Sousa, agente pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT), acompanhou o caso desde o início e comentou a decisão da Corte IDH: “Estou com sentimento de justiça, apesar de que já vai fazer, em maio, 28 anos do assassinato de Manoel Luíz. Uma vez que a justiça no Brasil absolveu os acusados, essa iniciativa, da Justiça Global com a Comissão Pastoral da Terra e a Dignitatis, de levar à Corte Interamericana para julgar o país, dá uma sensação de que, mesmo tarde, a justiça está acontecendo”, afirmou.
Para Manoel Adelino de Lima, filho de Manoel Luíz, a decisão da Corte representa uma forma de reconhecimento da luta de seu pai. “É importante saber que o que aconteceu com meu pai não foi inútil. A morte do meu pai não foi em vão. A CPT correu atrás e a morte do meu pai não foi esquecida. Espero que isso venha para melhorar, para o pessoal do campo ter mais qualidade de vida e mais respeito”, afirmou.
Equipe da CPT, Justiça Global e Dignitatis com advogados e a família de Manoel Luiz.
Agora, o desafio, segundo Noaldo Meireles, advogado e assessor jurídico da CPT em João Pessoa, é garantir que as medidas determinadas pela Corte sejam implementadas dentro dos prazos estabelecidos.
Um passo importante na luta pela terra
Após a leitura da sentença, na semana passada, Tânia celebrou a decisão: “Para mim foi a maior satisfação escutar uma Corte Interamericana ler uma sentença contra o Estado brasileiro, que nega os Direitos Humanos e violenta um trabalhador que luta pela terra”, disse.
A agente pastoral também agradeceu a parceria com as organizações que se uniram por justiça: “Minha gratidão à Justiça Global e à Dignitatis por se juntar conosco e embarcar nessa luta para que a justiça seja feita. Isso criou mais expectativa para que o caso de Manoel Luiz realmente tenha um resultado positivo e que a família seja justiçada também por esses anos de negação do Estado brasileiro”, concluiu.
O martírio de Manoel Luiz da Silva
Manoel Luiz da Silva, à época com 40 anos, foi executado a tiros por capangas da Fazenda Engenho Itaipu enquanto voltava de uma mercearia com outros três trabalhadores sem-terra. O grupo foi atacado ao passar por uma estrada dentro da fazenda, que estava em processo de expropriação para a reforma agrária. Os agressores abriram fogo, atingindo Manoel, que morreu no local, enquanto os outros dois trabalhadores conseguiram fugir.
A conquista da terra veio no ano seguinte, em 1998. A Fazenda Itaipu, reivindicada pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais acampados na época, deu lugar ao assentamento Novo Itaipu.
Em 2003, os dois acusados do assassinato foram absolvidos pela Justiça brasileira, e um terceiro suspeito jamais foi localizado. Nenhuma investigação foi conduzida contra o proprietário da fazenda, apesar das ameaças constantes contra trabalhadores rurais na região.
Manoel Luiz da Silva foi assassinado por lutar pelo direito à terra e à dignidade de sua família. Sua morte não foi um caso isolado. Ao longo da história, inúmeros trabalhadores rurais foram vítimas da violência no campo, marcada por assassinatos, ameaças, perseguições, despejos e destruição de lavouras e moradias.
O caso de Manoel segue como um lembrete da urgência de políticas públicas que garantam a segurança e os direitos dos trabalhadores rurais no Brasil. A condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos representa um passo na busca por justiça, mas o país ainda enfrenta um longo caminho para assegurar proteção efetiva aos que lutam pela terra e pela dignidade.
Caso Almir Muniz também está na Corte IDH
Assim como no caso de Manoel Luiz, as organizações peticionárias que levaram essa ação à Corte Interamericana de Direitos Humanos denunciam inúmeras falhas e omissões na investigação do desaparecimento de outro trabalhador rural: Almir Muniz.
Como as audiências desses casos ocorreram paralelamente, a expectativa é que o próximo julgamento aconteça entre março e abril. “A esperança é que, com a condenação, seja dada sequência também ao caso de Almir Muniz ainda nesse início de ano”, afirmou Tânia Maria.
Almir desapareceu em 29 de junho de 2002, após trafegar com seu trator por uma estrada que levava à Fazenda Tanques, em Itabaiana (PB). Líder na luta pela terra, ele fazia parte de um grupo de famílias que reivindicava a criação de um assentamento na região.
Em 2004, a Fazenda Tanques foi desapropriada para fins de reforma agrária, e o assentamento criado recebeu seu nome.
O caso, porém, foi arquivado em 2009, sem sequer ter sido levado a julgamento. O corpo de Almir Muniz nunca foi encontrado. Seu trator foi localizado quase uma semana depois, já no estado de Pernambuco, abandonado em um canavial e coberto de lama, em uma aparente tentativa de ocultação de provas.
Antes do desaparecimento de Almir, famílias da comunidade já denunciavam reiteradamente as violências sofridas. Relatos indicam que jagunços da fazenda, sob o comando do policial civil Sérgio de Souza Azevedo, praticavam agressões físicas e psicológicas contra os trabalhadores.
O julgamento do caso Almir Muniz pela Corte Interamericana representa um marco histórico: é o primeiro caso brasileiro de desaparecimento forçado no contexto da luta pela reforma agrária e um dos primeiros a tratar dessa grave violação de direitos humanos no período pós-1988.
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