A Polícia Federal esteve no território após receber a denúncia de ameaça de fazendeiros contra casal de ambientalistas, na comunidade rural de Barreiro Azul, em Varzelândia, em Minas Gerais. Estado nega proteção.
Por Adi Spezia | Le Monde Diplomatique Brasil
O Brasil é o segundo país mais letal para ambientalistas, ficando atrás apenas da Colômbia que lidera o ranking como país mais violento para ativistas. Em 2022, foram assassinados 177 defensores do meio ambiente no mundo, sendo que 34 ocorreram no Brasil, aponta o estudo da Global Witness, que monitora o cenário de ativismo ambiental desde 2012.
No Brasil, o relatório “Conflitos no Campo Brasil 2022″, organizado anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), registrou em média um conflito por terra a cada quatro horas, em 2022. Um total de 2.018 casos, envolvendo 909,4 mil pessoas e mais de 80,1 milhões de hectares de terra em disputa em todo território nacional.
Entre esses casos estão o casal Maria Izabel Da Silva Francisco e Clailson Gonçalves Ferreira. Camponeses, ambientalistas, raizeiros e militantes do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo (MTC). Eles vivem em um território tradicional na comunidade rural de Barreiro Azul, no município de Varzelância, Minas Gerais.
“Resgatar a minha história quanto mulher camponesa, de ancestralidades estão ligadas a liberdade e a luta pela permanência no campo”, afirma Dona Izabel (Foto: Adi Spezia)
Cercados por vizinhos grileiros e fazendeiros, o casal enfrenta ameaças e constantes investidas contra seu espaço de vida, produção, cuidado e autossustentação. Dona Izabel conta que as perseguições começaram em 2005. Desde então ela luta pela posse da área que herdou de seu pai. “Com frequência ouvimos tiros [disparos de arma de fogo] contra nossa casa, destruição das lavouras, matam os cachorros e nos ameaçam de morte”, conta Izabel.
Em ofício protocolado junto ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), no dia 6 de julho deste ano, consta que “o casal de ambientalistas e raizeiros Sra. Maria Izabel Da Silva Francisco e Sr. Clailson Gonçalves Ferreira se encontram em situação de ameaça e vulnerabilidade no seu território”. Dada a gravidade, o ministério encaminhou a denúncia ao Diretor da Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente da Polícia Federal que efetuou uma diligência à comunidade rural de Barreiro Azul, em agosto deste ano de 2023.
No ofício o MMA destacou: “denúncia referente à ameaça contra casal de ambientalistas e raizeiros em Varzelândia (MG)”, onde existe um conflito de terra agrário ambiental com os vizinhos fazendeiros. Além de enfatizar ser preciso levar em consideração “que o governo de Minas Gerais negou a proteção necessária ao casal, sendo omisso até o presente momento mesmo após provocado formalmente sobre a situação”.
A denúncia também foi realizada junto ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDH), onde o movimento reiterou “a permanência do risco à integridade física da senhora Maria Izabel da Silva Francisco e de seu companheiro, especialmente no local de sua residência”.
Frente às denúncias apresentadas aos órgãos públicos, o Ministério dos Direitos Humanos solicitou à Polícia Federal que adote “as providências cabíveis, especialmente no sentido de garantia à integridade física do casal de ambientalistas e raizeiros ameaçados em pretenso conflito agrário e fundiário”.
No entanto, Adriano Ferreira liderança do MTC, destaca não haver “nenhum tipo de providências para assegurar a vida de Izabel e Clailson. O estado de Minas em nenhum momento tomou providências sobre o caso, tem sido omisso, por isso que a Polícia Federal entrou no caso”, explica.
Izabel conta que “para a Polícia Federal ter que ir lá [na comunidade rural de Barreiro Azul] é porque várias vezes foi denunciado, mas apesar disso o povo ficou amedrontado, todo mundo assustado, também perdi minha liberdade, meu direito de expressão religiosa, de assumir a minha identidade quanto mulher do campo, negra”, explica.
Na avaliação do MTC, as investidas contra o casal se dão por Izabel ser uma liderança religiosa, defensora ambiental e por integrar um movimento de trabalhadores do campo que luta pelo direito à terra.
Desde que a Polícia Federal esteve na comunidade rural de Barreiro Azul, “não sabemos qual foi o encaminhamento que eles deram. Depois da visita a gente foi encaminhado para ouvidoria nacional, por conta da proteção à vida e só”, esclarece Italo Vinicius, integrante do MTC que acompanha o caso em Brasília.
Durante o mês de outubro, Izabel e demais lideranças do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras da Campo estiveram em Brasília para dialogar com órgãos públicos e parlamentares voltados à defesa ambiental e de direitos humanos, em especial do estado de Minas Gerais, pois nenhuma medida foi adotada até então para assegurar a vida de Maria Izabel Da Silva Francisco e Clailson Gonçalves Ferreira.
O conflito que já era intenso, após a morte de um dos fazendeiros da região, conhecido como ‘Zé Ruim’, tornou-se ainda mais intenso. “Chegaram e derrubaram as cercas e invadiram nosso espaço, nosso habitar, que é sagrado, terapêutico, um espaço para trabalhar o sagrado” descreve Izabel.
Com olhos marejados, ela relata que, “antes de dar 24 horas da morte de Zé Ruim, ao escurecer as cercas foram derrubadas, o gado foi solto em toda plantação – comeram, estragaram e destruíram tudo. Agora que Zé Ruim morreu, os filhos, os herdeiros estão invadindo, dizendo que aquela terra é deles. É não, porque fizeram uma compra de boca, não tem documentação”, esclarece Izabel.
Após ocorrido, a polícia local foi acionada e efetuou o registro de um boletim de ocorrência, “mas só registrou e não teve mais nada, mesmo após terem cortado árvores centenárias – que para nós é muito importante -, fizeram a matança dos animais”, conta a ambientalista e raizeira.
Junto à comunidade e ao MTC, Izabel desenvolve trabalhos com terapias naturais, homeopatia e autossustentação por meio da produção de alimentos. Na área destruída havia plantações de ervas medicinais, lavoura e também é onde um grupo de quinze mulheres são acolhidas e atuam no resgate da identidade e cultura camponesa, da espiritualidade, do sagrado feminino e se organizam na autossustentação de seus núcleos familiares, além de ser um espaço de preservação da biodiversidade. “Devido à história, se tornou um espaço de acolhimento, de conhecimento, que não é só meu, mas de muitos outros que estão próximos, está muito claro, essas coisas é para intimidar mesmo”, desabafa Izabel.
Além da proteção à vida dos defensores de direitos humanos, entre as reivindicações do Movimento e do casal ameaçado está a realização de um laudo antropológico da área, a fim de comprovar sua ocupação tradicional. Segundo relato de integrantes do MTC, lá tem outros territórios com comunidades resistindo. A resistência e processo de luta caracterizam aquele lugar como espaço de autossustentação, de referência religiosa, ambiental e sustentável, que acolhe outras mulheres, explica Dona Izabel, que ainda completa. “Resgatar a minha história quanto mulher camponesa, de ancestralidades estão ligadas a liberdade e a luta pela permanência no campo”.
*Adi Spezia é jornalista do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo (MTC).
**Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil
Por Luis Hallazi (IBC Perú),
com edição de Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
O bioma Amazônia é a maior floresta do planeta com 696 milhões de hectares distribuídos por 9 países. Esse cenário de biodiversidade tem sido historicamente descontrolado pelos Estados, o que criou mitos, como ver a Amazônia como um espaço "vazio”, “uniforme” ou um lugar para "colonizar". Hoje a Amazônia é palco de disputas, não só pelo Estado extrativista (madeireiro, mineração e exploração de petróleo), mas pelo crime organizado. Por isso não é suficiente identificar as pressões que se exercem no território, mas também analisar os conflitos que emergem e que estão gerando uma espiral de violência alarmante.
Foi com esse objetivo que, no Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA) reunido em 2017 em Tarapoto (Peru) foi gerada a Iniciativa de Mapeamento de Conflitos Socioambientais e, a partir daí, tornou visíveis as principais causas das disputas ou os principais sujeitos impactados por esses conflitos, informações publicadas no Atlas de Conflitos Socioterritoriais e posteriormente na cartilha Assassinatos na Pan-Amazônia. Com esta tarefa confiada, neste ano de 2023, após a reunião em Bogotá em fevereiro, a Iniciativa se reuniu em outubro na capital peruana (Lima) para construir, de forma coletiva e colaborativa, essas duas ferramentas muito úteis para tornar visíveis os conflitos socioambientais e a violência no bioma amazônico.
Nesta ocasião, o encontro em Lima teve como anfitrião o Instituto do Bem Comum (IBC) e contou com a participação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Universidade Federal do Amapá, representando o Brasil; do Centro de Investigación y Promoción del Campesinado (CIPCA), da Bolívia; Asociación Minga, da Colômbia, e pela primeira vez a participação da organização Secours Catholique, da Guiana Francesa. Pela CPT, participaram Darlene Braga (Acre) e Gilson Rêgo (Santarém/PA), da Articulação das CPTs da Amazônia.
O objetivo do encontro foi atualizar as informações e procedimentos de coleta, sistematização, divulgação e incidência para um novo mapeamento dos conflitos socioambientais, e sobretudo, a visibilidade da crescente onda de violência nos territórios amazônicos até 2023. A meta é apresentar as informações no próximo FOSPA, que será realizado na cidade de Rurrenabaque (Bolívia), em junho de 2024.
Cabe lembrar que recentemente na Cúpula da Amazônia em Belém do Pará, os presidentes dos países amazônicos concordaram na articulação e fortalecimento de organizações amazônicas encarregadas de gerar informações sobre a Amazônia como o Observatório Regional Amazônico da OTCA, daí a importância do mapeamento de conflitos socioambientais e violência.
O encontro em Lima permitiu analisar a conjuntura atual de cada um dos países amazônicos, os casos emblemáticos de cada país e também houve apresentações sobre a experiência de mapeamento de pressões e ameaças da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), e a experiência do MapBiomas-Peru na cobertura e uso do solo com sensoriamento remoto .
Com todo esse intercâmbio de informações e experiências, a Iniciativa de Mapeamento de Conflitos e Violência na região Pan-Amazônica entra em uma nova etapa, que busca dar maior sustentabilidade ao seu processo de articulação para continuar disponibilizando duas ferramentas necessárias para analisar, debater e incidir sobre as causas dos conflitos territoriais, seus impactos na natureza e a violência gerada, num território que, como menciona o recente relatório da Global Witness, trava uma batalha devastadora contra os seus recursos e já é um dos espaços mais perigosos para os defensores dos direitos humanos. Durante 2022, dos 177 homicídios registrados no mundo, mais de 36 deles ocorreram na Amazônia.
Projeto de Lei que institui a Política de Direitos dos Atingidos por Barragens (MAB) deverá ser votado no Senado na próxima terça-feira
Por Leonardo Fernandes e Roberta Brandão | Comunicação MAB
Atingidos em marcha pela aprovação da PNAB. Fotos: Patricia Sousa e Nívea Magno.
Mais um passo foi dado na direção de consolidar uma Política Nacional de Direitos dos Atingidos por Barragens (PNAB). O Senado Federal aprovou hoje (7), a urgência para a votação em plenário do Projeto de Lei que institui a PNAB (PL 2788/2019). O projeto deverá ser votado na próxima terça-feira.
Esta é uma das principais reivindicações do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A PNAB prevê indenizações e reparações aos atingidos por barragens em caso de tragédias ou de impactos pela construção de empreendimentos e pretende coibir a violação sistemática de direitos humanos contra as populações, como o deslocamento forçado, a perda de meios de subsistência e a degradação da saúde coletiva.
“Essa é uma conquista muito importante, histórica, da luta dos atingidos. A gente segue otimista e esperançoso de que vamos aprovar também em plenário a Política Nacional de Direitos dos Atingidos”, disse Robson Formica, da coordenação nacional do MAB.
De manhã, o PL havia sido aprovado na sessão da Comissão de Serviços de Infraestrutura da casa, com relatoria do senador Eduardo Gomes (PL-TO). A partir da discussão dos atingidos com o governo federal e com os senadores, a comissão acatou o texto como foi aprovado na Câmara dos Deputados, apenas com alterações de redação. O objetivo é evitar que a matéria volte para a Câmara dos Deputados, atrasando, ainda mais, sua aprovação. No Senado, o texto já havia passado pela Comissão de Meio Ambiente, com relatoria da senadora Leila Barros (PDT-DF), que apresentou um substitutivo.
O projeto de lei da PNAB foi aprovado na Comissão de Serviços de Infraestrutura durante a manhã. Foto: Marcelo Aguilar.
O relator comemorou a aprovação na comissão e parabenizou os atingidos pela luta: “Estou muito feliz em participar como relator da aprovação dessa política importante para o país. O Brasil precisa amadurecer as suas relações entre desenvolvimento e atendimento social. Então, parabéns a todos vocês do MAB por essa luta que é uma luta que eu respeito muito”.
O PL foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados em agosto de 2019 com forte apoio dos deputados: 328 votos favoráveis, apenas 62 contrários e uma abstenção. O contexto foi a comoção gerada pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG), ocorrida em 25 de janeiro daquele ano. 272 pessoas morreram e milhares são atingidas.
Fotos: Patricia Sousa, Nane Camargos e Nívea Magno.
Sem uma lei que os proteja, os atingidos por barragens têm ficado à mercê de acordos judiciais que nem sempre os contemplam.
Lucas Martins Pereira, do Vale do Jequitinhonha (MG), é atingido pela mineração e enfrentou 17 horas de viagem para lutar pela aprovação da PNAB em Brasília: “É uma emoção muito grande, porque finalmente teremos Justiça, principalmente para a gente das comunidades que foram realocadas com a construção da usina de Irapé, e até hoje não têm dignidade, um reassentamento, ou seja, de viver em paz e tocar suas vidas em harmonia”, comenta Lucas.
A conquista encerra a Jornada de Lutas do MAB, que reuniu 2.500 atingidos e atingidas do Brasil inteiro em Brasília. A data escolhida para iniciar a jornada, 5 de novembro, marca os 8 anos do rompimento da barragem da Samarco (Vale/BHP), considerado o maior desastre socioambiental do Brasil.
Evento contou com representantes de 10 estados e ressaltou sabedorias, denúncias e a coragem das guardiãs do bioma
Por Ludmila Pereira e Helen Borborema | Brasil de Fato
Cerca de 70 mulheres, lideranças em diversos estados do Cerrado brasileiro, estiveram reunidas para o Encontro. Foto: Júlia Barbosa / CPT Nacional
Fortalecidas pela ancestralidade e as experiências construídas nos territórios, cerca de 70 mulheres vindas de diversos estados do Cerrado brasileiro se reuniram, em Montes Claros (MG), para o 3º Encontro Nacional Vozes e Práticas das Mulheres do Cerrado. O evento aconteceu na Área Experimental de Formação em Agroecologia do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM), entre os dias 5 e 7 de outubro.
A chegança teve início com três vivências em comunidades tradicionais do norte de Minas Gerais: Grande Sertões, Coletivo de Mulheres do MST Flores Pequi e Grupo de Mulheres de Riacho dos Machados. Em que compartilharam os resultados com a agricultura familiar, a feitura de doces e como as mulheres se uniram, nesses territórios, para anunciar outras formas de trabalhar com a terra e garantir o sustento de suas casas.
Visitas às experiências fizeram parte da metodologia. Fotos: Júlia Barbosa / CPT Nacional e Ludmila Pereira / Articulação Agro É Fogo
Como síntese, foi elaborada uma Carta Final do encontro, divulgada na última segunda-feira, dia 16, e ressalta as sabedorias, as denúncias, mas, sobretudo, os anúncios, a coragem, a luta e a esperança das guardiãs do bioma, considerado o berço das águas do Brasil.
“Somos mulheres de vários povos, Apinajé, Xerente, Xakriabá, Akroá Gamela, Kiriri, Tuxá, comunidades quilombolas, geraizeiras, ribeirinhas, veredeiras, sem-terra, raizeiras, benzedeiras, caatingueiras, apanhadoras de flores, vacarianas e quebradeiras de coco babaçu, reafirmando nossos modos de vida tradicionais como plantadeiras de semente boa. Somos a Sociobiodiversidade do Cerrado”, afirmou o documento construído ao longo do evento pelas muitas mãos das mulheres reunidas.
“Eu sou o Cerrado. A luta das mulheres pela libertação dos corpos não é uma luta separada do território. O primeiro impacto que a gente sente das violações do Cerrado, são em nossos corpos, justamente porque a gente tem essa relação direta de cuidado e tem uma sensibilidade melhor para sentir as coisas benéficas pra gente e infelizmente também as mazelas que chegam até nós, em nossos territórios”, contou Emília Costa, do Quilombo Santo Antônio do Costa e do grupo Mulheres Guerreiras da Resistência, do Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM).
Para Maria Emília Pacheco, assessora da ONG Fase e integrante do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), esse encontro é histórico e marca um tempo muito significativo nessa construção, principalmente do ponto de vista metodológico, porque ele foi precedido por visitas que apresentam os anúncios do fazer agroecológico e tradicional, e a potência das mulheres.
“As experiências visitadas mostraram o papel predominante das mulheres, como elas exercem a liderança na construção e inovação da sociobiodiversidade. Vimos aqui que o aproveitamento dos frutos nativos reforça as culturas alimentares, e isso se opõe a uma realidade que vivemos hoje, que é da monotonia alimentar, exatamente porque é um país que predominantemente está aí com os monocultivos”, analisou Maria Emília, que foi a primeira mulher presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
Várias dimensões da luta e seus vários sentidos
Foto: Ludmila Pereira / Articulação Agro É Fogo
O evento foi uma realização da Articulação de Mulheres do Cerrado, que integra a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, com apoio da Cese, Misereor e Comissão Pastoral da Terra (CPT). Segundo Aline Silva de Souza, da coordenação técnica do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais (CAA-NM), entidade que acolheu o encontro, “o objetivo do evento foi trocar experiências e atualizar as formas, as estratégias e as lutas pela água, pelo território e pelos direitos das mulheres”.
Segundo ela, a Articulação das Mulheres do Cerrado é um espaço que vem da necessidade de fortalecer e ampliar a voz das mulheres. “A gente acredita que para falar de agroecologia, de direitos dos povos, do Cerrado é preciso um espaço próprio das mulheres”, explicou.
No total, mulheres de cerca de 10 estados brasileiros participaram do evento. ”Saímos desse encontro aqui muito fortalecidas, com intuito da gente poder planejar nossas atividades, planejar novos trabalhos, pra gente poder construir novas políticas públicas para a vida das mulheres e para a vida do povo do campo. O Cerrado é super importante na vida de todo mundo, então, devemos estar todos juntos e lutar para proteger esse bioma”, afirmou Maria de Lourdes Souza Nascimento, coordenadora da Rede Cerrado e diretora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha.
Diversas mulheres indígenas estiveram presentes. A cacica Elsa Xerente, de Tocantins, foi uma delas. “Temos que fortalecer a luta que nós temos. Temos que levantar e falar de nós mesmas. É o momento de sair, de falar na frente o que sentimos. Se calarmos a boca, ninguém vai falar por nós, não,” encorajou as outras mulheres. “Se nós não cuidarmos, como vai ficar o futuro? Estamos preocupados com as cabeceiras que estão secando. Sem água, não temos vida, não. Nós queremos é bem viver para nosso futuro, nossos netos, nosso ancião, nossos filhos e o futuro que vai vir”, ressalta a Cacica Elsa, denunciando as monoculturas e empreendimentos do agronegócio que estão destruindo o meio ambiente e desrespeitando os territórios indígenas em seu estado.
A cacica Elsa Xerente trouxe importantes reflexões sobre o futuro que as mulheres do Cerrado defendem. Foto: Júlia Barbosa / CPT Nacional
Um dos momentos da programação do Encontro foi a partilha da experiência da Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais, uma rede que atua, principalmente, no Norte de Minas Gerais, através da conexão de oito povos: geraizeiros, vazanteiros, veredeiros, caatingueiros, apanhadores de flores, vacarianos, quilombolas e indígenas.
“Gostaria de falar da importância que é a gente ouvir o relato de vocês em torno da Articulação Rosalino Gomes, que isso sirva de inspiração para nós que estamos nas outras regiões. O Mato Grosso tem mais de 120 comunidades quilombolas, nenhuma conseguiu ser titulada”, partilhou Cidinha Moura, da ONG Fase.
Ela atua no Mato Grosso e é conselheira do Consea Nacional representando a ANA. “Precisamos mostrar que no Mato Grosso também tem agricultura familiar, tem povos quilombolas, tem povos indígenas. Que existem povos e comunidades tradicionais que estão ali há muitos e muitos anos, que estão ali antes da chegada do do agronegócio, com seus malefícios. O Mato Grosso não pode ser visto pelo mundo como um lugar do agronegócio”, desabafou.
Mulheres do Cerrado fortalecem a agroecologia como estratégia de segurança alimentar e nutricional e preservação ambiental. Foto: Lilian Bento / Rede Cerrado
“Eu comparo esse encontro à adubação das raízes. Precisamos visar muito a união dos povos em suas diferenças e pluralidade, mas também em sua igualdade de direitos. A memória de povos que aqui viveram, aqui vivem e aqui viverão precisa ser respeitada. Os povos precisam ter qualidade de vida,” falou a Irmã Porcina Amônica de Barros, mais conhecida como Irmã Mônica, que atua há mais de 25 anos com plantas medicinais e terapias naturais através da Associação Casa de Ervas Barranco de Esperança e Vida (ACEBEV).
Também esteve presente, no último dia do evento, a deputada estadual Leninha, militante do movimento agroecológico e que há muitos anos contribui com a Campanha em Defesa do Cerrado. Atualmente, ela é vice-presidenta da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Leninha falou sobre os desafios e oportunidades para avançar na defesa dos territórios e na garantia de direitos, tanto no contexto nacional como estadual, e refletiu sobre a importância das pessoas da luta socioambiental ocuparem a política, sobretudo as mulheres.
“Para poder ter a política olhando para os pobres, defendendo os povos tradicionais, os povos originários, as populações que mais precisam, a sociobiodiversidade, nós precisamos pensar estratégias inteligentes, com nosso jeito. É preciso ocupar os espaços de participação social para fazer o debate sobre a luta de classes no Brasil, sobre a inclusão que queremos fazer, de forma politizada e não politiqueira, construindo políticas públicas e contribuindo com a formação cidadã”, afirmou.
Entre os apelos das mulheres do Cerrado reivindicados no evento, estavam: o veto integral do presidente Lula ao PL 2903/2023, que diz respeito ao marco temporal proposto pela bancada ruralista do Congresso Nacional e que fere o direito constitucional originário dos povos indígenas; e a aprovação da Emenda Constitucional (PEC 504/2010), que reconhece o Cerrado e a Caatinga como Patrimônios Nacionais.
Realização do III Encontro Nacional marca história da Articulação das Mulheres do Cerrado. Foto: Ludmila Pereira / Articulação Agro É Fogo
“A carta que acabamos de aprovar fala de uma situação limite, porque lá onde tem o alimento, não há água para preparar esse alimento. São situações extremas que nos convocam em permanência para que política de agroecologia e produção orgânica, política de segurança alimentar e nutricional, política de biodiversidade, mas que respeitam o conhecimento tradicional, sejam consideradas como ancoragens para a gente enfrentar esse período das mudanças climáticas”, revelou Maria Emília.
A ex-presidenta do Consea ainda completou: “Então, esse encontro nos mostrou várias dimensões da luta e seus vários sentidos. A liderança das mulheres é extremamente importante e precisa ser reconhecida, por isso que nós nos posicionamos de forma muito incisiva contra todas as formas de violência. Não podemos continuar no país com essas formas de violência, que também são, muitas vezes, violência do Estado. Precisamos combater com políticas que reconheçam o direito das mulheres e que a gente construa políticas igualitárias, tanto do ponto de vista de gênero como políticas étnico racial”.
Bandeiras e símbolos mostram as lutas e as representatividades das lideranças. Foto: Ludmila Pereira / Articulação Agro é Fogo
A Carta Final do III Encontro Nacional de Mulheres está publicada no site da CPT Nacional, acesse aqui.
*Helen Borborema é comunicadora da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), e Ludmila Pereira, comunicadora da Articulação Agro é Fogo. Edição: Rodrigo Durão Coelho.
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Por Roberto Ossak (Agente da CPT Regional Rondônia),
com edição de Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Imagens: Equipe CPT Rondônia
Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), nossa população perdeu 75% da diversidade de sementes em todo o mundo, somente no século passado. No lugar dessa variedade, cresceu a utilização de sementes híbridas ou geneticamente modificadas, associadas à monocultura, o que coloca a humanidade como refém na mão da pouca variação de alimento para consumir, e ainda assim de má qualidade. Isto se refletiu durante a safra 2021/2022, quando o agronegócio comercializou 6% mais sementes de soja, atingindo um lucro de R$ 21 bilhões em sementes que precisam de agrotóxicos, para não sucumbirem diante das pragas.
Na contramão de tudo isto, as famílias camponesas em Rondônia se fortalecem a partir de encontros de troca de sementes crioulas. São chamadas "crioulas" por não possuírem patentes: são um bem da humanidade e vêm sendo passadas há milhares de anos de geração a geração, e entre membros de comunidades rurais.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) Regional Rondônia vem intensificando a campanha de trocas de sementes crioulas. Muitos agricultores, que já vinham perdendo suas sementes que tradicionalmente cultivavam, perderam as sementes crioulas com o avanço dos transgênicos, e passaram a ter necessidade de alimentos saudáveis no período da pandemia da covid-19.
A contribuição para o desastre vem com o aumento da monocultura de grandes lavouras do agronegócio, impactando muitas comunidades rurais com os agrotóxicos e sementes transgênicas no Estado de Rondônia e sul da região amazônica Brasileira nos últimos anos, deixando os agricultores reféns de um sistema capitalista, que para viver no campo necessita ser dependente de uma loja agropecuária e de algumas marcas de sementes, adubos e agrotóxicos, deixando pequenos e médios agricultores familiares presos a um sistema de produção no qual para ter acesso às políticas públicas, especialmente as linhas de créditos agrícolas, necessitam de um pacote de insumos agrícolas.
O resultado desse modelo de agricultura tóxica e que não alimenta a população é sentido no bolso dos consumidores e na saúde da população em Rondônia: o custo para uma família se alimentar em Rondônia está entre os mais altos do Brasil. Quase todos os alimentos provenientes da agricultura familiar estão vindo do Sudeste e Centro-Oeste Brasileiro, alimentos que encontramos nas feirinhas com alto índice de agrotóxicos, em específico alguns alimentos mais comuns que encontramos nas feirinhas de supermercados da região vindo de fora do estado, como batata, abóbora, banana, pepino, berinjela, tomate, laranja e verduras. Alimentos esses que poderiam estar sendo produzidos no Estado de Rondônia, com incentivo de políticas públicas voltadas para produção agroecológica.
A CPT-RO, todos os anos no mês de outubro, quando celebra a Semana da Agroecologia, realiza trocas de sementes crioulas nas atividades e nos grupos acompanhados e paróquias. Também há investimento em equipamentos agrícolas, que ajudam a melhorar a renda familiar e alimentação das comunidades através de pequenos projetos produtivos.
No ano de 2023, foi possível realizar a distribuição e trocas de sementes de arroz crioulo tipo agulhinha, aproximadamente 500 litros da variedade. Também foram trocadas sementes de feijão, milho, abóboras e ramas de macaxeiras, alimentos altamente impactados pelos transgênicos na região, mas que as comunidades estão resistindo em permanecer nas sementes crioulas com ajuda de pequenos projetos produtivos.
Para melhorar as técnicas de produção agroecológicas dos grupos acompanhados da CPT-RO, foram investidos recursos para aquisição de 3 monocultivadores agrícolas. São pequenos tratores de manuseio simples, facilitando o preparo do solo para cultivo e transporte da produção dentro das comunidades, uma roçadeira motorizada, um kit para construção de horta, um tacho de cobre para fabricar açúcar mascavo, infraestrutura de farinheira, um kit de máquinas de fabricação de artesanatos e uma máquina de beneficiar arroz.
Foto: Máquina de beneficiar arroz
São pequenos investimentos que apoiam as famílias acompanhadas pela CPT-RO, contribuem no combate à fome na região amazônica e têm demonstrado empoderamento para as comunidades tradicionais na permanência em seus territórios, protegendo a floresta e sua biodiversidade e produzindo alimentos saudáveis sem o uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, abrindo um debate regional sobre a importância de cultivar sementes crioulas e plantas medicinais milenares de nossos ancestrais.
Campanha da Fraternidade
Em seu capítulo 90, o texto-base da Campanha da Fraternidade 2023 afirma: "Nas experiências de solidariedade alimentar, a valorização dos povos originários, tradicionais e do campo e de seus saberes comunitários agroecológicos são inspiração para decisões de combate à fome e de resistência a estilos de produção alimentar contrários às dimensões da ecologia integral. As práticas comunitárias de cuidado e preservação do alimento que garantiram e garantem a biodiversidade das sementes e a soberania alimentar precisam ser reconhecidas, divulgadas e protegidas como bens culturais comuns. Entre essas práticas podemos citar os guardiões e as guardiãs de sementes nativas e/ou crioulas, os guardiões e guardiãs mirins de sementes (tanto em comunidades quanto em escolas), as casas, feiras e festas e redes de sementes, as romarias da terra e das águas, as hortas comunitárias, entre outras práticas, são expressões de resistência comunitária que cuidam e demonstram como construir a solidariedade alimentar. Essas iniciativas são um sinal de resistência, educação e espiritualidade ecológicas que se opõem às ações de biopirataria que reduzem as sementes (o alimento) a mercadorias (sementes corporativas)."
Este relato faz parte da série de experiências da campanha 'Fraternidade Sem Fome, pão na mesa e justiça social'
Legenda: Acidente com hélices de aerogeradores em comunidade no litoral do Piauí em 2020 (Foto: G1 / Divulgação)
João do Vale é membro da Comissão Pastoral da Terra, educador popular e professor universitário
Querido presidente Lula, que o mundo pode acabar, a gente já sabe. Ou melhor, que a existência humana na terra pode chegar ao fim, não há mais como duvidar. Aquele tempo, que chamávamos de futuro, e tinha dentro dele catástrofes ambientais gigantescas, chegou. Em níveis diversos, e com propósitos também diversos - você já deve ter observado isso - a humanidade tem apresentado caminhos de salvação. Os povos da natureza estão propondo a salvação da vida. As empresas e governos a salvação do capitalismo.
No meio disso tudo, incentivado, principalmente, por governos e empresas europeias, acontece o que estão chamando de transição energética, que seria, em síntese, deixar de usar fontes energéticas que emitem CO2 e causam o efeito estufa. Deixar de usar combustíveis fósseis - que emitem dióxido de carbono -, incentivando, assim, a instalação de usinas que produzem eletricidade a partir do vento e do sol. Até aí a história parece ser bem interessante. Porém, presidente Lula, tem uma outra parte dessa história que pouca gente tem contado, e que sem ela a conversa acaba se tornando mentirosa.
Presidente Lula, seria menos trágico se o que está nos levando ao fim do nosso mundo – ou queda do céu, como chamam os Yanomami - fosse somente as emissões de CO2. Assim, bastava mudar a matriz energética e não haveria mais o que se preocupar, viveríamos igual aqueles quadros antigos que retratavam o paraíso, com pessoas loiras fazendo piquenique com leões. Lembra desses quadros, presidente Lula?
Pois é, nem o paraíso loiro apresentado no quadro, nem a solução que vem sendo apresentada pelo capitalismo para a crise ambiental são reais. Não há como frear o fim do mundo, presidente Lula, sem rever a lógica do consumo sem limites, sem frear a mineração que tem cavado nossa cova, sem parar com a derrubada das florestas – todas elas, não só a amazônica. Sem se preocupar com o desaparecimento de espécies, com a poluição de rios e mares. Sem questionar o capitalismo.
A emissão de gases de efeito estufa é apenas um problema, dentro de vários outros. Porém, é o problema que o capitalismo percebeu que pode mexer sem deixar de ser capitalismo. Sem deixar de ser violento, ecocida, opressor e desigual. E, de quebra, ganhar muito dinheiro com isso. A solução que nos tem sido apresentada – ou melhor, empurrada – é a de mudar o modelo energético sem questionar o padrão de violência contra a natureza, contra os povos da natureza e a lógica de consumo. Ou seja, na verdade, na verdade, a chamada transição energética – ou pelo menos o modelo que a Europa está impondo e o Brasil está adotando de maneira irresponsável - não carrega consigo uma preocupação com o meio ambiente, mas é tão somente um jeito de colocar uma roupa nova no capitalismo.
O Brasil tem hoje 916 parques eólicos funcionando, a maioria no Nordeste, quase todos no sertão. Como eles têm se espalhado mais rápido do que conversa ruim, em poucos dias esse número não será verdadeiro. O argumento para a implementação desses parques – e para seu contínuo avanço – volto, é o da transição energética.
Porém, presidente Lula, o Brasil faz muito tempo que já utiliza energia renovável. Mais de três quartos de nossa eletricidade é produzida por uma matriz de energia considerada renovável e limpa, que são as hidroelétricas. O problema delas é outro e tem sido repetido pelos empreendimentos eólicos. Presidente Lula, se formos pesquisar direitinho – e nem precisa do ChatGPT – vamos ver que 73% do dióxido de carbono no Brasil é emitido pelo agronegócio. Por que, presidente Lula, não fazemos uma transição do modelo do agronegócio para o da agricultura tradicional camponesa, que é tradicionalmente não poluente?
A Europa não chega a um quinto de eletricidade produzida por fontes renováveis. E por que essa tal de transição está acontecendo aqui? Essas empresas de energia eólica, que passaram a ter controle total sobre os territórios camponeses, chegam em nosso país por um cálculo de mercado, e por encontrar aqui no Brasil uma legislação permissiva, que não regula – nem quer regular – praticamente nada sobre o tema. Esses dias, em um jornal de grande circulação, a chamada de capa era: Brasil, a Disneylândia das energias renováveis. A nossa vida, presidente Lula, para os gringos, é lugar de diversão. Ou melhor, ou pior, de enriquecimento.
E o que esses mais de novecentos parques eólicos tem causado onde chegaram? Muito sofrimento. Como assim? Explico:
Os parques – ou usinas – eólicas são instalados em territórios de comunidades camponesas e povos tradicionais, porém fingindo que elas não existem. Derrubada de árvores centenárias, promessas de coisas que nunca são cumpridas, contratos abusivos e ameaças é a metodologia usada pelas empresas – e apoiados pelos governos - para se instalar nesses lugares. As famílias perdem o direito de conviver com seus lugares e assumem a função de inquilinos. Como o governo federal tem incentivado o latifúndio de energia eólica, as comunidades são inundadas por imensas torres instaladas a poucos metros das casas, roçados e lugares de criação de animais.
Essas torres – chamadas também de aerogeradores – fazem, dia, noite e madrugada, sem parar, um barulho enlouquecedor – sem exagero algum na palavra - que impede as pessoas e bichos de dormirem. Não conheço nenhuma comunidade que esteja feliz vivendo com parques eólicos em seus territórios. Na verdade, arrendar a terra para a instalação de torres eólicas só tem valido a pena para latifundiários que não vivem nela. Quem, por assinar um contrato, é obrigado a viver ao lado do barulho de um parque eólico está tendo que escolher entre gastar o dinheiro com medicamentos para depressão ou sair de seu lugar ancestral e pagar o aluguel de uma casa na periferia de alguma cidade.
Presidente Lula, Dona Alzira, rezadeira, a pessoa mais idosa da Comunidade de Sobradinho, está com a pele do corpo caindo. Um pó tóxico liberado das torres eólicas cai sobre o telhado das casas, é levado pela chuva para as cisternas e ingerido por Dona Alzira e sua família. Dona Alzira fez um empréstimo para comprar os medicamentos, já que o salário mínimo que recebe de sua aposentadoria não permite comprar. Saiu ganhando o banco e o parque eólico, que se procurar direitinho corre o risco de pertencerem aos mesmos acionistas.
Na Comunidade de Pau Ferro, os porcos criados por Seu José estão tentando suicídio. O estresse causado pelo barulho dos aerogeradores tem os levado a automutilar-se até a morte. Na Comunidade Quilombola do Cumbe, os moradores, em sua maioria pescadores e pescadoras, dependem da permissão do parque eólico para visitar o cemitério, os lugares sagrados e o mar, que está cercado. Presidente Lula, já visitei comunidades que depois da chegada do parque eólico, ao menos uma pessoa por família passou a usar antidepressivos e ansiolíticos. Um adoecimento generalizado. Por não conseguirem dormir em razão do barulho, pressão alta, diabetes e problemas cardíacos passaram a ser cada vez mais comuns.
Imagino, presidente Lula, que você dorme uma noite silenciosa. Que no palácio da alvorada as emas não perturbam seu sono. Infelizmente quem viu uma torre eólica erguer-se a poucos metros de sua casa não desfruta do mesmo direito. Já imaginou você ter um problema e não conseguir dormir para descansar um pouco o juízo? E você estar doente e ter que conviver com um barulho insuportável ao seu lado? E uma criança? E um idoso? E as abelhas e passarinhos que sumiram quando os parques eólicos chegaram? O governo federal sabe disso tudo. Em todos os estados do Nordeste há comunidades articuladas fazendo as denúncias e cobrando uma solução, o governo permanece fingindo que nada está acontecendo, em silêncio. Ao contrário dos aerogeradores.
Esses parques eólicos ocupam dois, dez, vinte mil hectares cada e passam a ter controle sobre tudo que acontece. Nesses mais de novecentos parques em funcionamento, quantos milhões de hectares estão nas mãos de empresas estrangeiras? Dois, três, cinco milhões?
Presidente Lula, em suas viagens pela Europa você tem dito que o Brasil está disposto a ajudar na transição energética mundial com os parques eólicos no mar, chamados off shore – afinal, tem que ter um nome em inglês. Vamos traduzir isso tudo? Não satisfeitos com os quinhentos anos de colonização de nossas terras, agora estamos chamando os colonizadores para privatizar nossos mares. É bem triste ver que a atitude do governo tem sido oferecer os territórios da pesca artesanal à Europa. Qual seria a palavra em inglês pra isso?
Lembro que na última eleição, em que te defendemos a sonho e suor, presidente Lula, tínhamos a preocupação que você repetisse os mesmos erros em relação à natureza e aos povos da natureza. O que vemos agora é que não só repete os mesmos erros, como insiste em cometer erros novos. E o principal deles, e de onde saem a maioria dos outros, é de não levar a sério o que dizem os povos da natureza...
É sem discussão, presidente Lula, que já entrasse para a seleta lista dos presidentes que se preocuparam com a população pobre de um país. O mundo reconhece isso. Agora, presidente Lula, você tem uma chance de ser ainda mais do que isso, a de entrar para o ainda mais seleto grupo de lideranças que se preocuparam com a natureza e com a sobrevivência humana na terra. Você, presidente Lula, pode ficar pra história como um dos poucos presidentes que ouviu o povo que mora dentro das matas, nas margens de rios e mares, no pé do mangue e no alto das serras sobre o que fazer pra salvar a natureza. Por quê, presidente Lula, você optou por não fazer isso?
O que o governo tem dito, a propaganda que tem sido feita sobre a transição energética, sobre os parques eólicos, presidente Lula, é um mundo de fantasia, que seria muito bom que fosse realidade, mas não é. Não há como achar que empresas multinacionais, que a Europa, vai deixar de ser colonizadora. Ela, elas, vivem faz mais de cinco séculos às custas de nosso sofrimento. Existe uma expressão chique que aprendi: Zona de Sacrifício. Mas há como esperar que um governo eleito pelos povos da floresta, pelos movimentos sociais, pelo Nordeste, poderia realizar uma “transição energética” – as aspas, lembro, são merecidas – que não fosse às custas do sofrimento do nosso povo.
É ruim perceber que mais uma vez os de sempre – empresas capitalistas - ganham, e também os de sempre – povos da natureza – perdem, nisso que chamam de progresso, de desenvolvimento. Presidente, o que nós, que somos seres da mata, da zona rural, do mato, queremos, é continuar ouvindo o canto dos pássaros, o sopro o vento, o berrar da cabra. É continuar chamando o sossego de companheiro. E, pela primeira vez depois da invasão, ter uma paz duradoura. Mas vocês – aí, infelizmente, tenho que te incluir presidente Lula - não estão deixando. A pergunta que teima em ficar é: por que perde essa chance, presidente Lula?
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