“Eu vim de longe para encontrar o meu caminho, tinha um sorriso e o sorriso ainda valia, achei difícil a chegada até aqui, mas nós chegamos, nós chegamos...”
Foto: Ludmila Pereira (Articulação Agro É Fogo)
(De 04 a 07 de outubro de 2023 em Montes Claros – Minas Gerais)
Chegamos acolhidas pelo Centro de Agricultura Alternativa (CAA), chegamos com a justiça no romper da madrugada, de lugares e jeitos diferentes cheias de expectativas, saberes e fazeres; estamos chegando pelas portas e janelas, rios e vielas. Nós estamos chegando com nossos cantos, poesia, sonhos, ancestralidade, espiritualidade, fortalecidas pelas vozes de espaços políticos como a Marcha das Margaridas e Marcha das Mulheres indígenas. Somos mulheres de vários povos, Apinajé, Xerente, Xakriabá, Akroá Gamela, Kiriri, Tuxá, Comunidades Quilombolas, geraizeiras, ribeirinhas, veredeiras, sem-terra, raizeiras, benzedeiras, caatingueiras, apanhadoras de flores, vacarianas e quebradeiras de coco babaçu, reafirmando nossos modos de vida tradicionais como plantadeiras de semente boa. Somos a Sociobiodiversidade do Cerrado!
Tempos de reconstrução, antigos desafios
Permanecem os problemas estruturais que impactam a vida dos povos e seguem as violações dos direitos à terra e território, à água e a biodiversidade. O avanço do agronegócio, do hidronegócio e da mineração traz a concentração e grilagem e o cercamento das terras, desmatamento, levando ao esgotamento, a poluição do solo, das águas e dos alimentos. Vivemos situações extremas: onde há comida, mas não há água para preparação. A riqueza da biodiversidade do Cerrado é celebrada nos nomes de lugares e de coletivos de mulheres, como o Grupo de Mulheres Flores de Pequi e os lugares como Bocaiúva e Fruta de Leite. Mas essas frutas que são tão importantes nas culturas alimentares, no uso medicinal e na fonte de renda das mulheres estão mais escassas.
A destruição das chapadas que são áreas de recargas hídricas do Cerrado, somada ao aumento da captação de água dos aquíferos, está reduzindo a vazão dos córregos, rios e provocando a seca das veredas, e consequentemente diminuindo a safra de frutos de áreas úmidas e impactando a reprodução dos peixes que são fonte de proteínas para mulheres e suas comunidades. Ao mesmo tempo, crescem as propostas mercadológicas de apropriação privada dos bens comuns e de projetos de crédito de carbono, que se configuram mais como falsas soluções.
Denunciamos o avanço da mineração: lá onde existiam animais, plantas medicinais, frutos nativos, hoje, são crateras que extraem lucros em detrimento das condições de vida dos povos, deixando cicatrizes profundas nos corpos das mulheres, na saúde das comunidades e nas paisagens dos territórios.
Denunciamos a orquestração de normativas que buscam bloquear conquistas históricas de proteção e reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. A votação do Supremo Tribunal Federal sobre o Marco Temporal representou uma vitória parcial, carregada de graves condicionantes. Além disso, mantém-se a ofensiva legislativa contra o direito originário dos povos indígenas.
Clamamos pelo fim de todas as formas de violência de gênero e raça, que expressam o ódio, aprisionam, silenciam, dominam, adoecem e matam as mulheres. Manifestamos a nossa firme oposição à invisibilidade da violência da esfera doméstica distanciando-a da sociedade e do Estado. Numa sociedade patriarcal e racista, não podemos ignorar e deixar de protestar contra as formas de violência institucionais que precisam ser combatidas.
Nas terras e nas águas das resistências recontamos nossas histórias
Continuamos com os nossos ritos e ancestralidades, (Re)existindo e reinventando novas formas de organização, de produção, acessando os mercados institucionais, revitalizando as feiras, reafirmando as interconexões entre o Cerrado e a Caatinga em na convivência com a natureza.
Estamos protagonizando inovações a partir dos lugares que ocupamos, como cooperativas, associações, coletivos de mulheres e sindicatos. Nos reinventamos com saberes e sabores com o aproveitamento dos frutos nativos e construção de tecnologias alternativas e artesanais, que se expressam em práticas como os canteiros econômicos e ecológicos e nos diversos usos que fazemos do buriti, do pequi, do jatobá e tantos outros.
Nós, mulheres, ressignificamos a agroecologia e seu diálogo com a agricultura tradicional. Aplicamos os princípios da diversidade, do autoconsumo, reciprocidade, solidariedade e seus sentidos sociais e econômicos para a soberania alimentar.
Nossas vozes ecoam com importantes recomendações para o fortalecimento das mulheres na sociedade e nos seus territórios:
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Priorizar, por parte dos órgãos federais e estaduais, a identificação, demarcação e titulação dos territórios indígenas, quilombolas, de povos e comunidades tradicionais, bem como a implementação da política de reforma agrária, condição fundamental para o enfrentamento à violência e para o fortalecimento da organização política das mulheres. Reconhecer a importância dos Protocolos de Consulta Livre, Prévia e Informada (Convenção 169, da OIT) como instrumento de defesa dos povos em seus territórios.
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Rever a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (Decreto no 5.813/2006), para garantir proteção e fomento para as práticas tradicionais de produção e comercialização de remédios caseiros, bem como reconhecer o ofício das raizeiras e respeitar seus protocolos comunitários bioculturais;
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Garantir leis que apoiem e protejam as práticas de agroextrativismo vegetal sustentável (como do pequi, buriti, mangaba, cajuzinho, capim dourado, flores sempre-vivas e outros) e da fauna conservados pela nossa sociobiodiversidade. Respeitar o livre uso e acesso da biodiversidade pelos povos e comunidades tradicionais e camponesas.
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Garantir recursos e as condições necessárias de acesso para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Garantia de Preços Mínimo para os Produtos da Sociobiobidiversidade (PGPM-Bio), com aplicação das cotas de participação das mulheres agroextrativistas e camponesas e assegurar orçamento para o III Plano Nacional de Agroecologia.
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Adotar metodologia que garanta preços justos e acesso desburocratizado à PGPMBio e equiparação de preços para compras dos alimentos destinados ao PNAE e PAA.
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Efetivar a implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas (PNGATI). E criar políticas de fomento para a produção de alimento em terras indígenas;
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Formular e efetivar as políticas públicas de acesso prioritário à água e ao saneamento básico vinculado diretamente ao direito humano à saúde, à alimentação e soberania alimentar;
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Garantir o reconhecimento, proteção e promoção, por parte do Estado, às tecnologias tradicionais de uso, gestão e aplicação de princípios da agricultura tradicional e agroecológica para a conservação do meio ambiente e produção de alimentos saudável;
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Efetivar a participação igualitária das mulheres nos espaços políticos de decisões das organizações da sociedade e nos espaços de gestão de políticas públicas. E incorporar medidas contra todas as formas de violências, preconceitos e discriminação para afirmar a igualdade étnico-racial.
Convocamos a sociedade para aderir à campanha #VetaLula PL 2903/2023 que fere o direito constitucional originário dos povos indígenas. E convocamos também, a sociedade e parlamentares para aprovarem a Emenda Constitucional que reconhece o Cerrado e Caatinga como Patrimônios Nacionais (PEC 504/2010).
Seguiremos nosso caminho fortalecendo a Articulação das Mulheres do Cerrado com ações coletivas, organização nas comunidades, realização de intercâmbios e com aprofundamento de temas como eliminação dos agrotóxicos, acolhimento das juventudes e construção de uma estratégia política de comunicação popular, contanto e registrando nossas histórias.
Montes Claros, 07 de outubro de 2023
*Baixe a Carta Final do III Encontro Nacional das Mulheres do Cerrado na íntegra e compartilhe!