Carta enviada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pede que o Brasil forneça informações sobre vítima resgatada em regime análogo à escravidão em Florianópolis
Por Alessandra Monnerat | Uol - Editado por CPT Nacional
Foto: Arquivo Agência Brasil
Nove organizações e sindicatos expressaram "profunda preocupação" em uma carta enviada na sexta-feira, 27, à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), a respeito da situação de uma mulher resgatada em condições análogas à escravidão doméstica em Florianópolis, Santa Catarina.
Na carta, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT) e outras organizações afirmam que "houve desrespeito aos procedimentos legais" da política de combate ao trabalho escravo no caso. A vítima foi resgatada em junho da casa do desembargador Jorge Luiz de Borba, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, mas voltou à convivência da família em setembro, após autorização do Supremo Tribunal Federal (STF).
A CPT, responsável pela iniciativa, junto às demais organizações, pede que a CIDH questione o Brasil sobre a situação atual da vítima. As entidades perguntam se a mulher recebeu atendimento adequado e educação formal no pós-resgate e se o retorno dela à casa do desembargador ocorreu após sentença judicial definitiva. Outro questionamento levantado é sobre o afastamento do auditor do trabalho que denunciou o caso, Humberto Monteiro Camasmie. Ele é investigado por crime de violação de sigilo funcional por ter concedido uma entrevista ao Fantástico sobre o ocorrido. A carta também pede que o governo liste quais medidas tomou em relação ao caso da mulher resgatada e a casos de trabalho escravo.
Também assinam a comunicação: Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar), Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Instituto Trabalho Digno (ITD), Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Anafitra) e Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).
Relembre o caso da mulher mantida sob escravidão em Florianópolis
A mulher foi resgatada pela Polícia Federal (PF) em junho deste ano. As investigações apontaram que ela vivia em condições análogas à escravidão há 40 anos. A vítima é surda e muda, e nunca recebeu salário, assistência médica ou instrução formal. O Ministério Público do Trabalho (MPT) ouviu diversas testemunhas que lembraram situações de "trabalho forçado, jornadas exaustivas e condições degradantes".
Desembargador Jorge Luiz de Borba é acusado de manter uma mulher em condições análogas à escravidão e sua casa por 37 anos. Foto Assessoria de Imprensa - TJSC
De acordo com 11 depoimentos obtidos pelo Estadão, a mulher resgatada sofria com puxões de cabelo e beliscões, usava roupas "nojentas" e antigas, dormia em um "quarto mofado" fora da casa da família e não podia comer da mesma comida dos patrões. Uma das ex-funcionárias relatou que em uma ocasião a empregada apresentou uma poça de sangue e pus no ouvido.
No início de setembro, a mulher voltou à casa de onde tinha sido resgatada. O reencontro com a família do desembargador catarinense foi autorizado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça. Ele manteve a posição do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que não havia indícios suficientes de crime porque a empregada vivia "como se fosse membro da família". A Defensoria Pública vai recorrer ao STF da decisão.
O MPT afirmou que o reencontro foi um "circo estapafúrdio". Borba e a mulher dele teriam debochado da equipe de atendimento que acolheu a mulher resgatada e desrespeitado a decisão que autorizou o encontro. Eles levaram consigo dez advogados, uma escrevente cartorária, vários membros da família e empregados.
Jorge Luiz de Borba é desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) há 15 anos e foi advogado por quase 30. Ele presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Blumenau. Borba recebe salário de R$ 37,5 mil por mês e, de janeiro de 2022 a junho de 2023, recebeu R$ 271 mil em benefícios da magistratura, os chamados penduricalhos.
O magistrado nega a acusação de trabalho escravo; diz que acolheu a vítima em sua casa como um "ato de amor". Ele afirmou ainda que vai fazer um pedido de filiação da mulher para reconhecer a relação familiar.
Leia a carta: Caso Sônia Maria de Jesus