82% das pessoas resgatadas do trabalho escravo são pretas ou pardas, conforme números da campanha permanente da CPT “De Olho Aberto para Não Virar Escravo”
Trabalhadores da Cana Juazeiro-BA17. Foto: João Zinclar
Instituído em novembro de 2011, por meio da Lei Nº 12.519, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra rememora a data do falecimento de Zumbi dos Palmares. Líder do Quilombo dos Palmares durante o período do Brasil colonial, Zumbi é hoje reconhecido como ícone da resistência negra à escravidão e pela prática da cultura africana no Brasil.
Contudo, na contramão das expectativas que a figura do líder suscita, o trabalho escravo não deixou de ser uma realidade no Brasil. Números atualizados registrados pela Campanha nacional permanente da CPT “De Olho Aberto para Não Virar Escravo” mostram que, em 2023, quase 3.500 pessoas foram encontradas em situação de trabalho escravo. Delas 3.288 foram resgatadas em ações coordenadas pelo Ministério do Trabalho.
Os dados da Campanha apontam ainda que, desde que se iniciou o registro, em 1995, até 2024, a pecuária tem sido o setor de atividade com o maior número acumulado de casos identificados de trabalho escravo – 2.115, ao todo. Em seguida, figuram as lavouras - com 910 casos, incluindo entre outras culturas de grãos, de frutas, canaviais - e as carvoarias (501). Nos últimos 10 anos, o número de casos em lavouras passou a ultrapassar os da pecuária.
Perfil dos trabalhadores
Trabalhadores negros, nordestinos e com baixa escolaridade são os principais entre os resgatados do trabalho análogo ao escravo. Nos últimos dez anos, mais de 34% das vítimas resgatadas de trabalho escravo não haviam completado o 5º ano e a faixa etária mais afetada foi de jovens homens de 18 a 24 anos. Além disso, pelo menos 53% do total de trabalhadores é da região Nordeste do país, segundo dados do Registro Nacional do Seguro-Desemprego analisados pela CPT.
Carvoaria Buritirama (BA). Foto: João Zinclar.
Quando é traçado o perfil racial, entre os anos de 2016 e 2023, 82,0% das pessoas resgatadas são negras – que se autodeclaram pretas ou pardas. Nesse período, mais de 12 mil pessoas foram resgatadas do trabalho escravo no país. Dessas, 65,8% se declararam pardas, 16,8% pretas, 16,0% brancas, 1,4% indígenas e 0,4% como amarelas.
Na visão de Cecília Amália Cunha Santos, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Araguaína (TO), esses números demonstram a herança colonialista do país e a reprodução da lógica escravocrata entre a elite brasileira. “A gente não vive mais no sistema colonial, oficialmente, mas as ideias da colonialidade continuam nas nossas relações. Então a percepção de que as pessoas negras não são dotadas de dignidade por parte dos patrões e empregadores, ainda está entranhada nas nossas elites”, explica.
A procuradora destaca ainda a vulnerabilidade da população negra decorrente desse passado escravocrata e do sistema racista ainda existente. “Do mesmo jeito que as pessoas brancas têm um acúmulo de privilégios, as pessoas negras, ao longo dos anos, passam por situações sociais, acumuladas por gerações, de déficit de acesso a direitos básicos, que acabam colocando essas pessoas historicamente numa situação de vulnerabilidade, mais expostas ao trabalho escravo. São tanto fatores sociais, desse histórico de acúmulo de violações aos direitos, quanto essa percepção colonialista, que ‘coisifica’ as pessoas negras”.
Trabalho escravo no ambiente doméstico
No recorte de gênero, os dados mostram que, entre 2016 e 2023, 10.349 homens foram resgatados do trabalho escravo, enquanto que as mulheres correspondem ao total de 972 vítimas. Deste último número, as mulheres negras representam a maior porcentagem de resgatadas – isto é, 765 pessoas ao todo, quase 80%.
Brígida Rocha, agente pastoral da CPT regional Maranhão e integrante da Campanha “De Olho Aberto para não Virar Escravo”, destaca a manutenção do trabalho escravo em ambiente doméstico, que acomete principalmente as mulheres negras. “Os resgates que já aconteceram são principalmente de pessoas negras, algumas idosas que não tiveram acesso à educação, não têm contato com a família, não criaram novos relacionamentos, não tiveram acesso à saúde, não tiveram direitos previdenciários respeitados, têm fraudes em seus nomes ou não têm documento civil organizado”, detalha.
“No caso das trabalhadoras escravizadas, além da questão racial, elas são também atravessadas pela questão de gênero e por serem vistas nesse lugar do trabalho de cuidado não remunerado”, evidencia Cecília. Ela também explica que esses casos de trabalho doméstico decorrem da extrema vulnerabilidade financeira de famílias marginalizadas, que oferecem o trabalho das filhas, ainda crianças, em troca de estudos e acolhimento – que nunca se concretizam e culminam em trabalhos compulsórios.
Diversas entidades se reuniram em junho na campanha #SôniaLivre, em defesa da liberdade de Sônia. Foto: Divulgação
O caso de Sônia Maria de Jesus, encontrada em situação de trabalho escravo na residência do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), Jorge Luiz de Borba, exemplifica tantos outros casos de mulheres mantidas em situação de trabalho escravo doméstico. Resgatada pelo Grupo de Fiscalização coordenado pelo Ministério do Trabalho em junho do ano passado, Sônia passou 40 dos seus 50 anos a serviço da família Borba.
Mulher negra e com profunda deficiência auditiva, Sônia nunca recebeu salário, assistência médica ou instrução formal. Além disso, ela sofreu violências físicas e vivia em situação degradante em um quarto na residência. Sônia foi tirada muito cedo da sua família biológica e mantida incomunicável durante todos esses anos.
Em setembro de 2023, com autorização do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Mauro Campbell, avalizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça, ela foi levada de volta à residência onde passou décadas cativa e onde permanece até hoje, e impedida de se relacionar com seus familiares. Em muitas histórias semelhantes, a defesa apresentada pelos exploradores tem sido a mesma: para negar qualquer relação de trabalho com a sua empregada, usam a narrativa de que essa mulher era “como filha da família”.
A ação da CPT
Fundada em junho de 1975, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) surgiu da necessidade de denunciar a desigualdade e violência no campo no Brasil. A primeira denúncia de trabalho escravo foi realizada em outubro de 1971, por meio da carta pastoral "Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social", escrita pelo bispo da prelazia de São Félix do Araguaia (MT), dom Pedro Casaldáliga, um dos fundadores da Pastoral.
Desde 1995, por meio da Campanha nacional “De Olho Aberto para Não Virar Escravo”, a CPT trabalha nas frentes de acolhimento e apoio às vítimas do trabalho escravo e busca de alternativas, na denúncia de empregadores que utilizam mão de obra escrava, além de monitorar e cooperar para o aprimoramento de políticas públicas visando a erradicar o trabalho escravo.
“A CPT participa do fluxo de atendimento a vítimas do trabalho escravo, hoje formalizado em nível nacional, desde a acolhida aos trabalhadores e trabalhadoras, o registro de suas denúncias, as articulações para que ocorram as fiscalizações, a sistematização de dados e a elaboração de materiais para processos formativos e informativos. Nós conseguimos elevar essa capacidade de trabalhadores, trabalhadoras e da sociedade de refletirem sobre as causas culturais da escravidão e, também, de pensar nas estratégias de combate, a exemplo do que a gente tem feito junto a alguns municípios com forte incidência do problema, por meio da Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão – o programa Raice”, conta Brígida.
Em abril deste ano, durante o lançamento da publicação “Conflitos no Campo Brasil 2023”, a Comissão Pastoral da Terra anunciou a ação de sustentabilidade “Chega de Escravidão”, de modo a levantar fundos para seguir realizando sua missão no apoio à autonomia dos povos e comunidades em seus territórios. Entre no site www.chegadeescravidao.org.br e saiba mais sobre como fazer parte desta ação.
*os dados da Campanha “De Olho Aberto para Não Virar Escravo”, constantemente atualizados, são de acesso aberto. Para este texto, foram utilizados dados do dia 14.11.2024
Com informações do Tapajós de Fato e Conselho Indígena Tupinambá do Baixo Tapajós (CITUPI)
Fotos: Marta Silva (Tapajós de Fato), Leonardo Milano e Pedro Alcântara (CITUPI)
Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
O eco do grito de cerca de 400 indígenas contra o projeto da Ferrogrão ressoou nas águas do rio Tapajós no último sábado (16), durante o 7º Grito Ancestral. Do alto dos pedrais da ilha de Ilagé, localizada na aldeia Jacaré, os manifestantes paralisaram de forma pacífica por cerca de seis horas o transporte fluvial no rio Tapajós, em Santarém, no Pará.
“Nós estamos aqui […], para reivindicar a defesa do território, a defesa de nossas vidas”, reafirma Raquel Tupinambá, coordenadora do Conselho Indígena Tupinambá.
Liderança indígena, Raquel Tupinambá, denuncia a falta de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas do baixo Tapajós/ Foto: Marta Silva (Tapajós de Fato)
O grito esse ano denunciou o projeto de construção da EF-170, a Ferrogrão, corredor ferroviário de quase 1000 km que pretende ligar a cidade de Sinop (MT) ao distrito de Miritituba, em Itaituba (PA), para ampliar o corredor logístico do agronegócio pelos rios da Bacia Amazônica.
A bordo dos barcos, barcaças e bajaras que trafegam pelo rio, representantes dos povos hastearam faixas e bandeiras em repúdio ao projeto que cortará ao menos seis terras indígenas, onde vivem 2,6 mil pessoas, além de 17 unidades de conservação. Além disso, o aumento do escoamento da produção de grãos prevê a intensificação do volume de exportação de grãos pelo rio Tapajós.
O ato reuniu povos Tupinambá, Munduruku, Arapiun, Kumaruara, Jaraqui, Tapajó, Tapuia, Apiaka, Kayapó, e de comunidades ribeirinhas do Baixo Tapajós e de Montanha e Mangabal, que durante os dias 15 a 17 participaram do 7o Grito Ancestral, unindo forças para protestar contra o “projeto de morte” da Ferrogrão, mas também para se fortalecerem em sua espiritualidade e ancestralidade.
Comunidades ribeirinhas também apoiaram a manifestação contra os grandes projetos / Foto: Marta Silva (Tapajós de Fato)
Os rituais entoados nesse espaço sagrado emanaram a força da ancestralidade em defesa da vida: rio, água, povo. Os protestos dos povos indígenas deste fim de semana demonstram a importância de escutar as vozes dos povos originários, que dependem diretamente do equilíbrio ambiental para sua sobrevivência.
“[…] Nós vivemos uma pressão muito grande aqui dos comboios de balsa que passam todo dia no nosso território, carregados com grãos […] Então, nesse sentido, nós temos chamado a atenção, porque está impactando diretamente nós, que moramos aqui, e agora, com a Ferrogrão, que é um grande projeto, e vai aumentar ainda mais a quantidade de soja que vai vir a ser transportada, aumentando a pressão sobre os nossos territórios, sobre nossos rios”, relata Raquel Tupinambá.
A Aliança contra a Ferrogrão reúne 39 movimentos e organizações da sociedade civil, incluindo a Comissão Pastoral da Terra (CPT) Regional Pará/Equipe Itaituba, que esteve presente apoiando o ato.
O ato deste ano marca o 7º ano do grito, que pelo 2º ano consecutivo acontece nos pedrais da Ilha de Ilagé, na aldeia Jacaré, dentro da Reserva Tapajós-Arapiuns (PA), no território indígena Tupinambá, local sagrado para os indígenas por ser um berço de reprodução de várias espécies aquáticas. Esse espaço sagrado corre riscos reais de ser destruído se houver a necessidade de dragagem do rio Tapajós.
“Há uma possibilidade real de escavação e explosão dos pedrais, que são espaços encantados, espaços de reprodução dos peixes. Isso vai representar para nós que vivemos do peixe, um grande prejuízo. Então, nesse sentido, nós estamos aqui também para reivindicar, para chamar a atenção do poder público, dos governantes, para que nossos direitos sejam respeitados. Chega de violação de direitos, e é por isso que nós estamos aqui, para dizer não à Ferrogrão”, enfatiza Raquel.
Acompanhe o que já publicamos sobre este caso:
27.06.2024 - Representantes de povos indígenas e comunidades tradicionais emitem Carta Aberta em protesto contra a Ferrogrão
31.07.2024 - Por que a sociedade civil está rompendo com o GT Ferrogrão?
24.10.2024 - Conselho Nacional de Direitos Humanos recomenda ao Governo suspensão do projeto Ferrogrão
08.11.2024 - Estratégias de destruição: Ferrogrão e outras ferrovias
Na terra de Zumbi e Dandara, peregrinos da esperança caminham juntos em romaria para tecer teias de comunhão e fraternidade
Por Lara Tapety | CPT Alagoas
Fotos: Lara Tapety
A 35ª edição da Romaria da Terra e das Águas, realizada nos dias 16 e 17 de novembro de 2024, reuniu centenas de peregrinos e peregrinas na Serra da Barriga, em União dos Palmares, Alagoas, para refletir sobre o tema "Com fé, rompendo cercas e tecendo teias” e o lema "A terra a Deus pertence" (cf. Lv 25).
Acolhida e reflexão poética
A programação começou na noite do dia 16, no Sítio Recanto, com uma acolhida marcada por cânticos e o anúncio das caravanas participantes. A religiosa Marcela Dantas, da congregação Filhas do Sagrado Coração de Jesus, chamou atenção do público ao recitar um poema de Jorge de Lima sobre o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, destacando a luta pela liberdade.
A saudação aos participantes ficou por conta dos italianos Fúlvio, Francesca e Serena, da Associação Amici di Joaquim Gomes, e do padre Alex Cauchi, de Malta. Pela terceira vez presente numa Romaria da Terra e das Águas, Fúlvio afirmou que eles se impressionam com a participação e a capacidade dos camponeses de caminharem juntos. Explicou, também, que na Itália não existe a questão dos sem-terra, e ao ver os acampamentos nas estradas alagoanas e ouvir suas histórias, os italianos ficam admirados com a luta diária de cada um.
“Fazem muitos anos que o nosso trabalho de sensibilização na Itália procura tecer teias junto com a CPT Alagoas para apoiar as vossas batalhas porque pensamos que a luta pela terra é uma batalha fundamental e o direito à terra é um dos direitos fundamentais pelo qual se deve lutar", enfatizou o italiano.
Padre Alex destacou que a romaria na Serra da Barriga lhe traz muitas memórias. Ele fez menção à primeira romaria na terra de Palmares e lembrou:
“A cada cinco anos a gente volta aqui para lembrar de um lutador grande que nos ajuda até hoje, mostrando que nós devemos lutar, especialmente pela terra e na terra: Zumbi".
Celebração eucarística e reflexões
Após a entronização da "Cruz Sem Males" - símbolo da romaria que indica a direção da "Terra sem Males" - os fiéis assistiram ao filme da Campanha Nacional Contra a Violência no Campo, que trouxe à tona dados históricos sobre a violência contra povos do campo, das florestas e das águas.
A noite seguiu com a apresentação cultural do samba de coco da Comunidade Quilombola Muquém, remanescente do Quilombo de Palmares, que animou os presentes antes da celebração eucarística.
A missa, presidida pelo arcebispo de Maceió, Dom Beto, contou com concelebrantes de diversas localidades. Entre eles estavam: os padres George Lourenço, da paróquia Santa Maria Madalena e Lourenço Júnior, da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes - União dos Palmares; padre Alex Cauchi, de Malta, na Europa; padre Gilvan Neves, pároco da Igreja Nossa Senhora das Graças - Levada, Maceió; padre Raul Moreira, da Área Pastoral Nossa Senhora de Fátima - Rio Largo; padre Diego Vanzetta, pároco da Paróquia Senhor Bom Jesus, em Matriz de Camaragibe; e Valdo Omena, da paróquia São Sebastião em Ibateguara.
Durante a homilia, inspirada no livro de Levítico, que motivou o lema da edição, Dom Beto destacou que é preciso criar relações novas, tecer teias de comunhão e fraternidade. O arcebispo destacou, ainda, a conexão da romaria na Serra da Barriga - lugar marcado por resistência e pela luta pela liberdade - com o Jubileu de 2025, definido pelo Papa Francisco como o ano dos “Peregrinos da Esperança”:
“Fazendo ecoar a palavra antiga dos profetas, o Jubileu lembra que os bens da terra se destinam a todos, e não a poucos privilegiados. É preciso que seja generoso quem possui riquezas, reconhecendo o rosto dos irmãos em necessidade. Penso de modo particular naqueles que carecem de água e alimentação: a fome é uma chaga escandalosa no corpo da nossa humanidade, e convida todos a um debate de consciência”, disse citando o Papa.
Após a celebração, o público foi animado por um encontro musical com o poeta e cantor Zé Vicente, cujas canções de fé, luta e liberdade ecoaram entre crianças, jovens, adultos e idosos. Em sua apresentação, Zé abriu uma grande bandeira do Brasil, que foi balançada pelos presentes e circulou o espaço ao som da música “Quando o dia da paz renascer”. Animados, os peregrinos e as peregrinas partiram em caminhada.
Uma caminhada rumo à Serra da Barriga
Durante o percurso, a juventude camponesa conduziu a primeira parada com o tema "A terra a Deus pertence", apresentando o trecho do poema de Dom Pedro Casaldáliga:
“Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por poucas mãos, para ampararem cercas e bois e fazerem da terra escrava e escravos os homens!”.
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) conduziram a segunda parada com reflexões sobre o tema "Romper cercas". Já no platô, a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) destacou a importância de "tecer teias", convidando os organismos da Igreja, as organizações e os movimentos sociais a compartilharem suas missões.
Memórias e mensagens de esperança
Entre os presentes, estava a Irmã Tereza, de 81 anos, participante da primeira Romaria da Terra, realizada em 1988, e de tantas outras. Ela lembrou a mística do evento:
“Eu acredito que a romaria tem uma mística do andar, do caminhar, do refletir e de se sentir perto um do outro, fazendo um caminho juntos, que é o incentivo de que as pessoas levem depois para viver dessa forma: um caminhar juntos, uma meta de se sentir irmanado pelo mesmo objetivo que é a terra, a liberdade, o se sentir irmão”, disse a religiosa da congregação Irmãs de São José de Chambéry.
A camponesa Maria do Bosque estava com seus filhos André e Dandara. Maria participou de diversas romarias há muitos anos, sendo uma delas, em 27 de novembro de 1998, para a terra de Flor do Bosque, onde ela é assentada da Reforma Agrária. A agricultora agroecológica também reforçou o significado do evento:
“A Romaria da Terra é um espaço de compreensão e união. Ela nos lembra que a terra é de Deus e, sendo de Deus, é do povo”, afirmou.
O padre George Lourenço, pároco anfitrião da 35ª edição, refletiu sobre o espírito da romaria:
“É uma experiência mística que nos leva a refletir sobre esse grande dom que Deus nos concedeu que é a natureza. A espiritualidade nos eleva para refletir sobre esse dom que muitas vezes é dilapidado e que está nas mãos de poucas pessoas. Então, a romaria possibilita a gente ter contato com essa reflexão e nos ajuda muito. Vale a pena!”.
Encerramento marcado por partilha e memória
Chegando a alvorada, Carlos Lima, coordenador nacional da CPT, relembrou a celebração dos 30 anos da Romaria da Terra e das Águas em Alagoas, marcada por um gesto simbólico do bispo Dom Enemésio Ângelo Lazzaris. Na ocasião, Dom Enemésio deitou-se no solo da Serra da Barriga em reverência, conectando-se com a terra, os ancestrais e a memória das lutas quilombolas, de Zumbi e Dandara. Inspirado por esse momento, Carlos Lima convidou os romeiros e romeiras a tocarem a terra sagrada do Quilombo dos Palmares com as mãos e/ou com os pés descalços. Por fim, o padre Alex realizou a bênção e envio dos romeiros e das romeiras.
O encerramento contou com o momento de partilha do café da manhã camponês. Os romeiros e romeiras receberam café, chá, tapioca, beiju e pé-de-moleque. Além disso, houve o sorteio de um carneiro e uma cesta camponesa. O ganhador foi o agricultor Pedro Norenço, do assentamento Todos os Santos, situado em Água Branca, Sertão de Alagoas.
Realização e propósito
Realizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Arquidiocese de Maceió, Paróquia Santa Maria Madalena, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Centro de Estudos Bíblicos (Cebi), Cáritas Brasileira, Amici di Joaquim Gomes e Pachamama, a 35ª Romaria da Terra e das Águas reafirmou a luta histórica pela terra e pela dignidade, celebrando a comunhão entre de fé, resistência e compromisso com a justiça social e ambiental.
As organizações indígenas e quilombolas da Amazônia vêm, por meio desta nota, expressar seu repúdio ao discurso do governador Helder Barbalho, proferido durante a abertura do estande da Confederação Nacional da Indústria (CNI) na COP-29, em Baku, Azerbaijão. A fala do governador, ao afirmar que os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos dependeriam do mercado de carbono para garantir seu sustento e dignidade, demonstra uma visão preconceituosa e desinformada sobre a realidade dos povos tradicionais. O governador ignorou, em sua fala, o fato de que nossas comunidades vivem, manejam e preservam a floresta há milênios, utilizando a biodiversidade, a água e a terra para garantir sustento com autonomia e abundância.
Os povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos do Pará e da Amazônia têm um modo de vida que não depende de projetos de mercado de carbono ou de subsídios governamentais para sobreviver. Nossa alimentação saudável, baseada em conhecimentos tradicionais, é fruto do trabalho cuidadoso com os recursos naturais, livres de contaminações químicas e de mercúrio. Além disso, nossos povos contribuem de forma plural para a sociedade, com representantes que são escritores, médicos, advogados, professores, cientistas e parlamentares, promovendo nossa cultura e saberes para além dos limites das comunidades. A “bioeconomia” que o governador propõe vender como uma novidade ao mercado global é, na verdade, um modo de vida que praticamos há gerações.
A fala do governador reforça uma visão reducionista e colonialista sobre nossas comunidades, tratando-nos como se fôssemos meros dependentes de políticas de governo, ao invés de reconhecer nossa autonomia, saberes e práticas sustentáveis. O mercado de carbono, ao contrário do que foi afirmado, não pode ser imposto como única solução de desenvolvimento para as comunidades tradicionais, sem que haja consulta prévia, livre e informada, em respeito à Convenção 169 da OIT. As comunidades e povos precisam continuar mantendo sua autonomia na gestão de seus territórios, pois é isso que tem garantido um futuro sustentável com respeito à biodiversidade existente na Amazônia. A imposição de tais projetos, sem diálogo e sem respeito aos direitos constitucionais das comunidades, desrespeita nossa história, nossa luta por autonomia e coloca em risco o direito ao território das futuras gerações.
Acrescentamos ainda que o crédito de carbono, na modalidade REDD+, representa a comercialização da natureza, um processo financiado por empresas e governos estrangeiros que, assim, continuarão a lançar gás carbônico na atmosfera. Trata-se de comercializar a natureza para garantir a continuidade de lucros. Com seu apoio a essa iniciativa, o governador do Pará se dispõe a servir aos interesses do capital internacional, desconsiderando os direitos e a autonomia dos povos amazônicos.
Defendemos o direito à autodeterminação de nossas terras e afirmamos que não aceitaremos ser usados como justificativa para projetos de governo que não considerem nossa voz e nosso modo de vida. Reafirmamos que as decisões sobre nossos territórios devem ser construídas em conjunto com nossas comunidades, respeitando nossos conhecimentos e modos de subsistência, que há séculos garantem a conservação dos nossos territórios na Amazônia.
Exigimos que o governador Helder Barbalho e o Governo do Estado do Pará respeitem o direito de consulta e o protagonismo das comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas na formulação de políticas e projetos que afetem diretamente nossas vidas e territórios. Que cessem as falas coloniais e as soluções impostas sem diálogo e respeito aos nossos direitos, e que sejam reconhecidos os saberes e práticas que já sustentam a Amazônia e garantem a vida em harmonia com a floresta.
Assinam a carta:
1. Instituto Zé Cláudio e Maria
2. Comissão Pastoral da Terra - Regional Pará
3. Rede Agroecológica
4. Associação Indígena Pariri
5. Movimento Tapajós Vivo
6. Rede de Mulheres das Marés e das Águas do Litoral do Pará
7. Quilombo Gibrié de São Lourenço
8. Organização dos Educadores Indígenas Munduruku-Arikico
9. Associação Wakobrun de Mulheres do Alto Tapajós
10. Comitê Chico Mendes
11. Comitê de Defesa dos Direitos dos Povos Quilombolas de Santa Rita e Itapecuru Mirim (MA)
12. Casa Preta Amazônia
13. Associação Indígena Tembé do Vale do Acará
14. Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes do Quilombo do Alto Acará (AMARQUALTA)
15. Associação Comunidade Quilombola Sítio Cupuaçu
16. Instituto Madeira Vivo
17. Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira
18. Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental
19. Coletivo Indígena Mura de Porto Velho
20. Instituto Patauá Socioambiental
21. Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase)
22. Associação da Comunidade Ribeirinha Extrativista da Vila Tauiry (ACREVITA)
23. Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé
24. Terra de Direitos
25. Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do PDS Brasília (AMTRAB)
Nós, Povos Cerradeiros dos estados de Goiás, Tocantins, Maranhão, Piaui, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso, Rondônia, Mato Grosso do Sul e Roraima, representantes dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, brejeiros, pescadores, vazanteiros, veredeiros, retireiros, geraizeiros, fundos e fechos de pastos, sertanejos, agricultores familiares, assentados da reforma agrária, sem-terra, boias-frias, agentes de pastorais e organizações parceiras, nos reunimos, entre os dias 27 e 30 de outubro de 2024, no Território Tradicional Melancias, em Gilbués, no Piauí, para partilhar os clamores que nos atravessam nos últimos tempos e as re-existências tecidas em nossos territórios.
Vivemos ataques permanentes contra os nossos corpos-territórios, onde a Terra, nossa grande mãe, encontra-se em processo de esgotamento e clama por socorro. Nossos rios, veias que sustentam o grande corpo-Brasil, estão sendo devastados pelo agronegócio, hidronegócio e mineração, que avança sobre os Cerrados com o desmatamento, o envenenamento do solo, das águas e do ar, com o roubo das águas e a extração de minérios, com os incêndios criminosos que impactam diretamente as comunidades camponesas, devastando seus territórios e depredando nosso Cerrado.
Os territórios, que são moradas e partes constituintes da nossa existência e do nosso chão, ancestral e sagrado, estão sendo violados pelas cercas da ganância do latifúndio e pelas cercas invisíveis das leis e políticas genocidas, como a Lei 14.701/2023, que institui o Marco Temporal na demarcação das terras indígenas, e a Lei 14.757/2023, que, na prática, regulariza a grilagem de terras e acirra os conflitos no campo. Há, ainda, os projetos de morte, como a fronteira agrícola do Matopiba, nos quais o Estado - vendido, burguês e capitalista - e a iniciativa privada, juntos, tentam esmagar nossos direitos e roubar nossa dignidade, seja pela ação direta ou pela omissão calculada.
A grilagem, a pistolagem, a especulação, o extermínio da sociobiodiversidade, o adoecimento, a perseguição e agressão das lideranças, os assassinatos e as constantes ameaças de expulsão dos nossos territórios, são violências que marcam a injustiça histórica que enfrentamos e denunciamos, e também nos lembram da força coletiva que mobilizamos para resistir. Por isso, fazemos ecoar, aqui e agora, o compromisso da luta em defesa dos Cerrados, por nossas terras, nossas águas e nossas vidas.
Nós, guardiãs e guardiões cerradeiros, re-existimos através dos nossos saberes e fazeres ancestrais. Acreditamos na agroecologia como alternativa de produção de alimentos que garantam soberania e segurança alimentar, em harmonia com os nossos territórios sagrados. Com os nossos modos de vida, lutamos pelo o acesso à terra e a permanência no território, conectada a defesa dos Cerrados, que garantem nossas existências e autonomia.
Neste chão de raízes profundas, onde os Cerrados, no coração deste país, pulsa em cada nascente preservada ou reflorestada, em cada árvore protegida ou plantada, seguimos de punhos cerrados, re-existindo. Não recuaremos. Seguiremos denunciando as chagas abertas em nossos territórios e afirmando, com esperança, que ‘não morreremos de sede às margens de nossos rios’.
A Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais (CPT-MG) vem a público denunciar o hediondo atentado sofrido pela Comunidade Quilombola do Baú, em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, na noite desta segunda-feira, 11 de novembro de 2024, por volta das 19h. Homens armados cercaram o território quilombola, disparando contra as residências e bloqueando as estradas de acesso, impondo um cerco violento e ameaçador.
A Comunidade Quilombola do Baú enfrenta constantes ameaças devido ao processo de regularização fundiária de seu território tradicional. Mesmo argumentando que a proteção às lideranças quilombolas é insuficiente e, apesar dos inúmeros alertas e denúncias feitos às autoridades, os atentados continuam ocorrendo, mesmo sob a proteção policial e com a inclusão de Antônio Baú, liderança da comunidade, no programa de proteção a defensores de direitos humanos. No dia 06 de novembro, a pedido da própria comunidade, a Comissão das Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha e a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’GOLO reuniram-se com o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública da União, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e outras instituições e movimentos de defesa dos direitos das comunidades tradicionais para denunciar as ameaças que colocam em risco a integridade dos quilombolas do Baú. Em decorrência dessa reunião, as organizações e movimentos divulgaram uma nota pública para cobrar dos órgãos públicos responsáveis, dos diferentes níveis do poder público, a garantia da vida do povo quilombola. Em meio a esse processo de mobilização, hoje a comunidade foi alvo desse atentado.
A CPT-MG repudia veementemente essa violência brutal contra a Comunidade Quilombola do Baú e exige das autoridades uma resposta enérgica e imediata, com uma investigação célere, proteção efetiva às vidas dos quilombolas que lutam pelo direito à regularização dos seus territórios e punição rigorosa aos executores e mandantes deste atentado.
A luta pelos direitos das comunidades quilombolas e pela garantia de seus territórios não será interrompida.
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