Por Everton Antunes/ Comunicação CPT Nacional
O evento reuniu cerca de 200 pessoas, no último sábado (03), na comunidade de Penaduba, paróquia de Frecheirinha.
A Romaria, realizada na comunidade de Penanduba (CE), reuniu cerca de 200 pessoas. Créditos: CPT-CE
Em sua oitava edição, a Romaria do Mártir Benedito Tonho foi realizada no último sábado – 3 de agosto –, na comunidade de Penanduba (CE), capela de Santa Luzia. A programação teve início às 06h, com o tema “Romper cercas e tecer teias: A terra a Deus pertence!”, reunindo diversos padres, religiosos, leigos e agentes da CPT em memória aos 38 anos de resistência e martírio de Benedito Tonho.
O evento contou com diversas atividades. Às 08h, iniciaram-se cirandas e rodas de diálogos – mediadas por religiosos, políticos e o ex-secretário executivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Ceará, Flávio Telles. Já às 10h, houve o lançamento da publicação Conflitos no Campo Brasil 2023, assim como celebrações eucarísticas e diálogos sobre a defesa da vida e o enfrentamento de grandes projetos de impacto ambiental ao longo do dia.
As atividades foram organizadas pela CPT em parceria com a Diocese de Sobral, Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a paróquia Nossa Senhora da Saúde e a Capela de Santa Luzia de Penanduba. Cerca de 200 pessoas participaram da romaria, entre elas, o Padre Emídio Moura, da Igreja de Nossa Senhora da Saúde; o Padre Marconi Martins, pároco da Paróquia de Senador Sá, e o Padre Maurílio, da Paróquia de Ubaúna.
Benedito Tonho
Motivação dos fiéis para a caminhada e, também, símbolo de resistência na reivindicação pela Reforma Agrária, o mártir “foi assassinado no dia cinco de agosto de 1986, por lutar pelo direito à terra e ao território”, conforme relata Francisco Silva (‘Chiquinho’), coordenador da CPT-CE. “Foi um dia de celebração, de poder rememorar a história, a memória e a resistência de Benedito Tonho”, conta.
A Comissão Pastoral da Terra – CPT (Coordenação Nacional e Regional Mato Grosso do Sul) manifesta profundo repúdio à violência sofrida pelo povo Guarani Kaiowá e pelas famílias sem-terra em Mato Grosso do Sul, ocorrida no último sábado (3). Os ataques deixaram dez indígenas feridos gravemente por balas letais e balas de borracha, numa área de retomada, no município de Douradina, e um incêndio criminoso contra o acampamento Esperança do MST, em Dourados.
A retomada do território é um direito legítimo das comunidades Kurupa Yty e Pikyxyin, visto que o Mato Grosso do Sul é um dos estados brasileiros com maior concentração de terras e conflitos envolvendo os povos indígenas. A violência contra os Guarani Kaiowá tem sido constante desde que foram expulsos do seu território pelos grileiros e confinados a pequenas reservas. Em 2023, foram registrados 116 conflitos por terra no MS, sendo 92,7% entre fazendeiros e indígenas, o que resultou em dois assassinatos e mais de 20 mil famílias atingidas pelos conflitos.
No dia 14 de julho, a mesma retomada indígena havia sido alvo de ataques armados na madrugada. A Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica já é oficialmente reconhecida, identificada e delimitada com 12 mil hectares no ano de 2011. O processo de demarcação está paralisado devido à morosidade do Estado brasileiro e aos efeitos das medidas legislativas inconstitucionais como a Lei 14.701 e a PEC 48/2023, que propõem a instituição da tese do marco temporal. Os fazendeiros do agronegócio interpuseram recurso e, desde então, o conflito tem se intensificado com diversos ataques contra os indígenas. As retomadas indígenas são legítimas para pressionar o Judiciário a resolver a questão e, de forma justa, devolver a terra aos legítimos donos, os Guarani Kaiowá.
É importante destacar que esses ataques ocorridos no MS são uma parte do contexto de crescimento e acirramento da violência no campo brasileiro. Os dados dos Conflitos no Campo, documentados pela CPT, apontaram a ocorrência de 2.203 conflitos em 2023. Reafirmamos que, enquanto o Estado brasileiro não assumir efetivamente o compromisso com a reforma agrária, demarcação e titulação das terras indígenas e quilombolas, a violência tende a continuar e a se intensificar contra os povos do campo.
Somos solidárias e solidários aos povos do campo, das águas e das florestas, que sofrem ataques de setores do agronegócio em diferentes regiões do Mato Grosso do Sul. Repudiamos e denunciamos também o ataque contra as 300 famílias do acampamento Esperança do MST, em Dourados, ocorrido na madrugada do dia 3 de agosto. O acampamento foi cercado por um incêndio criminoso provocado por pessoas que ocupavam dez caminhonetes e duas motos. Há indícios de que se trata de uma ação articulada contra a luta pela terra na região, uma vez que o acampamento do MST está localizado a 50 km da área onde os indígenas foram baleados.
Conclamamos a sociedade para que se solidarize com as causas justas dos empobrecidos do campo, pois essa é uma causa de todos nós. Exigimos que o Estado brasileiro cumpra o seu dever e não se omita diante desses massacres. O governo Lula, de uma vez por todas, deve se comprometer com a democratização do acesso à terra e com a garantia dos territórios indígenas e demais povos do campo do estado de Mato Grosso do Sul e do Brasil.
Goiânia/GO, 5 de agosto de 2024
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Insuflados por políticos ruralistas e bolsonaristas locais, ataques deixam dois indígenas entre a vida e a morte. Atitude da Força Nacional é questionada
Por Assessoria de Comunicação Cimi
Ambulâncias prestam socorro a indígenas Guarani e Kaiowá gravemente feridos em ataque de jagunços às retomadas de Douradina. Foto: Divulgação/Aty Guasu
“Pega teu povo e sai daqui ou vocês vão morrer”. Este foi o aviso dado a um indígena Guarani e Kaiowá das retomadas de Douradina (MS), no início da tarde deste sábado (3), por um agente da Força Nacional pouco antes do destacamento se retirar da área dando liberdade para um ataque de jagunços fortemente armados, que empoleirados em camionetes atiraram com munição letal e balas de borracha deixando dez Guarani e Kaiowá feridos – em apuração inicial.
Dois indígenas estão em estado grave: um levou um tiro na cabeça e outro um tiro no pescoço. Aparentemente alvejados com munição letal. Além deles, mais seis feridos foram encaminhados ao Hospital da Vida, em Dourados. Após pressões, a Força Nacional voltou a montar guarda nas retomadas. “Queremos saber a razão da Força Nacional ter saído daqui. Os agentes saíram e o ataque aconteceu. Parece que foi combinado. Queremos entender”, diz um indígena Guarani e Kaiowá por áudio no WhatsApp.
O ataque deste sábado ocorreu na retomada Pikyxyin, uma das sete na Terra Indígena Lagoa Panambi, identificada e delimitada desde 2011, e a mesma onde nesta sexta-feira (2) um ataque já havia ocorrido, mas sem ferir os indígenas, e também local em que um casal de jagunços armado foi detido pela Força Nacional na quinta (1). Ou seja, os agentes federais sabiam que o ambiente seguia tenso, com incursões de jagunços nas retomadas.
A Defensoria Pública da União (DPU) anunciou que entrará com representação pedindo a destituição do comando da Força Nacional no Mato Grosso do Sul. Na retomada Yvy Ajere, onde há um acampamento de jagunços, mais camionetes chegaram para reforçar o grupo que lá estava. “A jagunçada se mexe na frente de todo mundo. A gente observa eles manuseando armamentos pesados. Vão e voltam com liberdade”, diz o indígena.
Foram acionados o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Ministério dos Povos Indígenas, Ministério dos Direitos Humanos, Ministério Público Federal (MPF) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) cuidou do pronto-atendimento das vítimas do ataque, mobilizando duas ambulâncias de terapia intensiva para cuidar dos dois feridos com mais gravidade.
Falso comunicado
Pela manhã, conforme apuração, a Força Nacional comunicou a Coordenação Regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) de que os Guarani e Kaiowá tinham avançado nas retomadas. Uma equipe do órgão indigenista foi enviada às retomadas para averiguar a informação da Força Nacional. Contudo, os servidores da Funai não confirmaram a informação e constataram que, ao contrário, os indígenas seguiam nos mesmos locais.
Ocorre que durante a semana, na segunda reunião mediada pelo MPF em Dourados, a Federação da Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (Famasul) e políticos ruralistas, caso do deputado federal Marcos Pollon (PL/MS), boicotaram um acordo de permuta de terras envolvendo as propriedades incidentes na Terra Indígena – que contou com o aceite por parte de três proprietários, sendo um quarto incluído posteriormente. Com bolsonaristas locais, que usam o caso para visibilidade eleitoral, insuflaram uma cruzada contra os Guarani e Kaiowá.
Por CPT Regional Rondônia
Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Imagens: Registros da comunidade e equipe CPT Rondônia
Um grupo de jagunços encapuzados destruiu na tarde desta quinta-feira, dia 01 de agosto de 2024, cerca de 10 casas da ocupação do Acampamento Ipê, um grupo de 125 famílias que reivindicam uma área de terra no Distrito de Tabajara, de Machadinho do Oeste, a 221 km da capital do estado, Porto Velho.
Enquanto o grupo estava serrando e destruindo as casas, carros com pessoas armadas e encapuzadas estavam situados na entrada do Acampamento, nas proximidades da área reivindicada, para impedir a aproximação e qualquer reação das famílias acampadas. Junto com as famílias, diversas crianças presentes corriam grave risco de serem vítimas da violência. As ações ocorrem sem nenhum mandato judicial nem diálogo com as famílias.
As imagens mostram a maioria dos participantes fardados como pertencentes a uma suposta empresa de segurança e escolta armada. Os moradores do Acampamento Ipê, localizado no município de Machadinho do Oeste, residem na área do acampamento há cerca de dois anos, após terem sofrido uma reintegração de posse da área reivindicada.
Em maio deste ano de 2024, acampados e acampadas relataram a uma missão da Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo, do Ministério de Desenvolvimento Agrário, as constantes agressões que têm assolado o acampamento, entre elas o assassinato de uma liderança, vítima de 31 tiros, José Carlos dos Santos, de 54 anos, assassinado na noite de 14 de outubro de 2023, enquanto a esposa dele resultou ferida no pé. Outros têm sofrido graves ameaças de morte, solicitando a proteção do Programa de Defensores de Direitos Humanos, o que demonstra a gravidade da situação e o perigo enfrentado pelos residentes do acampamento.
Os moradores mencionaram também que alguns companheiros foram vítimas de prisões indevidas por parte da polícia da região em diversas ocasiões, e que a área é monitorada diariamente por jagunços, evidenciando um ambiente de constante tensão e ameaça. Os mesmos também têm divulgado numerosas filmagens que comprovam em outras ocasiões as violências sofridas dentro da área, incluindo destruição de roças e de casas, assim como incidentes envolvendo a polícia local. Uma destas ocorrências aconteceu em janeiro deste ano.
A população reivindica uma área de 3.000 alqueires de terra para Reforma Agrária, enquanto os herdeiros de João Carlos de Gênio se apresentam como proprietários da Fazenda Maroins. Segundo os acampados, a fazenda foi subdividida em várias áreas, acumulando total mais de 10.000 alqueires, a maior parte acrescentados de forma ilegal a um antigo título provisório, sem cumprimento das cláusulas resolutivas.
No ataque de hoje, diversas pessoas armadas e equipadas com motosserra destruíram casas, roças e mantimentos das famílias, roubando diversos pertences como lonas, que protegiam as famílias da chuva e do sol.
Os acampados também denunciam o desmatamento de madeira nativa, que os envolvidos alegam ser de manejo. Segundo os moradores, pessoas responsáveis pelas derrubadas das árvores também estariam ligadas ao massacre no Assentamento Taquaruçu do Norte, em Colniza (MT), ocorrido em 2017, quando nove trabalhadores rurais foram assassinados com requintes de crueldade.
Enquanto a destruição de casas e roças continua, diante desse cenário de violência e impunidade, os representantes do acampamento Ipê fazem um apelo por ajuda às famílias do acampamento, destacando que todos os órgãos responsáveis já tem sido repetidamente notificados sobre as violações e os crimes ocorridos, mas até o momento nenhuma ação efetiva foi tomada para garantir a segurança e o bem-estar das famílias, protegendo seus direitos fundamentais e proporcionando um ambiente seguro para suas reivindicações.
Uma reunião foi marcada com o Incra para o próximo dia 07/08 (quarta-feira), para discutir o assunto. Foram convidados o Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU) e Defensoria Pública do Estado de Rondônia (DPE).
Por: Campanha Nacional “De Olho aberto para não virar escravo” - CPT
Foto: Bom Jesus da Lapa, Campanha da CPT contra trabalho escravo - arquivo CPT Nacional
Os resultados do combate ao trabalho escravo do último ano (2023) confirmam a tendência registrada nos dois anos anteriores: a retomada de números expressivos de fiscalização e de resgate, uma situação que, equivocadamente, alguns comentadores têm interpretado como a ressurgência de uma prática criminosa após 7 anos de “calmaria”. É sempre bom lembrar que número não é realidade: somente a ponta do iceberg que a vigilância da sociedade e as investigações do poder público conseguem trazer para a superfície visível.
A mobilização da categoria dos Auditores fiscais do trabalho, desde janeiro de 2024, manifesta o desdém com o qual esses combatentes da primeira linha têm sido tratados pelos últimos governos, chegando ao extremo de faltar mais de 40% do efetivo teoricamente aprovado para ir a campo, sem falar do abandono na área de equipamentos e meios de trabalho.
Nossa primeira saudação é para eles e para elas. Apesar das condições adversas, às vezes tirando leite de pedra, eles conseguem comprovar para a sociedade que o trabalho escravo nunca parou. Pelo contrário, continuou se propagando à sombra de políticas de abandono e precarização que, anos a fio, presidiram ao destino do país.
Números que questionam
Vejamos alguns dados, começando pelo ano de 2023 e ampliando para períodos recentes. Pela quantidade de pessoas resgatadas, os 5 estados que em 2023 mais ‘escravizaram’ — Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Piauí (nessa ordem) — formam um quinteto surpreendente. Isso porque nele não estão estados habituados a frequentar essa classificação inglória, como costumam ser Pará, Maranhão, Mato Grosso ou Bahia, estados nos quais, durante décadas, o trabalho escravo tem sido prática recorrente.
Outra curiosidade: este mesmo quinteto ‘2023’ já vem liderando praticamente desde 2015, mediante ínfimas diferenças na ordem dos fatores (Minas ficando à frente de Goiás — e de longe — na 1ª posição, ou Pará mantendo-se esporadicamente na 5ª posição).
No quinteto ‘2023’, como no de 2021-2024, estão representadas todas as grandes regiões do Brasil: Sudeste, Centro Oeste, Sul, Nordeste... Todas? Falta aquela que, na ótica da história do trabalho escravo contemporâneo, “deveria” ser a principal: a região por onde iniciou grande parte da luta moderna contra essa prática: a região Norte (e a Amazônia como um todo).
O Pará, que ocupou sempre a 1ª posição até 2014, passou para a 5ª posição no ranking 2015-2024 (e para a 7ª posição no ranking 2021-2024).
Entre 1995 e 2004, o bioma amazônico representou 64% dos resgatados (9.105 pessoas); essa proporção caiu para 31% no período 2005-2014 (11.500) e apenas 10% no período 2015-2024 (1.620).
Cerrado, espaço de expansão do agronegócio... e do trabalho escravo
Em contrapartida, é notável a posição dominante ‘conquistada’ pelos estados inseridos na região do ‘Cerrado’, território principal da expansão recente do agribusiness brasileiro. Os trabalhadores escravizados encontrados no Cerrado estavam em 49% do total em 1995-2004 (7.059), subiram para 56% em 2005-2014 (20.883) e 63% em 2015-2024 (10.041)
Para o período de 2021 a 2024, dos 9 estados com maior número de resgatados (5.914, ou 71% do total nacional), 7 estados têm seu território — em totalidade ou em sua maior parte — dentro do Cerrado. São eles, por ordem: Minas, Goiás, São Paulo, Piauí, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Bahia. Idem para o período 2015-2024: esses mesmos 7 estados permanecem no grupo dos 9 ‘campeões’ de resgates.
De 2015 para cá, neles foram resgatadas, uma média de 1.000 pessoas por ano (7 em cada 10 do total nacional). Sua força de trabalho era explorada, principalmente, em lavouras (350 resgatados por ano, sendo 140 na cultura do café, 90 entre soja e milho, 75 no alho), em canaviais (128), no extrativismo vegetal (43), na pecuária (34) ou na monocultura de árvores (16).
Situações contrastadas
Nos últimos 4 anos, mais da metade dos resgates se concentrou em apenas 2 estados: Minas e Goiás, ficando os outros 3 estados do quinteto com 20% dos resgatados. Em todos eles, o trabalho escravo é concentrado em atividades realizadas no campo e ligadas ao agronegócio — com destaques para o café e para o “retorno” do setor canavieiro:
- A disseminação da prática é grande em Minas Gerais: é alto o número anual de casos identificados no estado mineiro (70 ou mais), comparado ao de Goiás (15 a 20). Quanto às atividades econômicas envolvidas, 80% dos 739 resgatados de Goiás em 2023 foram retirados de 4 canaviais e 2 lavouras; em Minas Gerais, a maioria dos resgates foi concentrada em 2 setores: café (27 ocorrências) e carvoarias (12). Mesma situação em 2022, com a diferença de que, naquele ano, Minas Gerais resgatou 367 pessoas em 5 canaviais. Outro indício da disseminação do trabalho escravo em Minas: a prática foi flagrada em nada menos que 58 municípios em 2023 e 57 em 2022 (em Goiás: 18 municípios em 2023, 14 em 2022).
Trabalho Infantil no canavieiros na Bahia. Foto: João Ripper
- Em São Paulo: 27 dos 40 flagrantes de 2023 ocorreram fora do campo, mas metade dos resgatados foram encontrados no campo (196 deles em 6 canaviais).
- No Rio Grande do Sul: 9 em cada 10 resgatados de 2023 foram retirados de apenas 3 estabelecimentos, e virou manchete nacional o caso das vinícolas de Bento Gonçalves (Garibaldi, Saltão & Aurora), com seus 210 resgatados, quase todos negros, trazidos da Bahia por um gato “pejotizado” por nome “Fênix”. Em 2022, o trabalho rural havia também representado 10 dos 12 casos ali encontrados, com destaque na maçã onde é costumeira a contratação de trabalhadores indígenas trazidos de Mato Grosso do Sul.
- No Cerrado piauiense, o panorama é distinto: fora algumas lavouras de soja, o trabalho escravo é flagrado na extração de palha de carnaúba e em pedreiras, na atividade de britamento.
- No resto do país, em 10 estados a média ficou, em 2023, na faixa de 80 pessoas resgatadas: MA (107), PR (101), BA (94), MS (88), ES (77), AL (74), PA (74): esses mesmos estados têm ocupado posição semelhante (exceção: AL) ao longo dos últimos 3 anos (2021-2023). Por fim, outros 11 estados, cada um com uma média de 30 resgatados (PB, SC, CE, TO, RR, RJ, PE, RO, MT, AM, DF). Apenas 4 estados não tiveram resgate (AC, AP, RN, SE).
2023: número recorde
O total de fiscalizações e de resgates realizados em 2023 superou qualquer número observado desde 2010. O ano de 2023, por si só, representa o dobro da média registrada entre 2010 e 2022.
Mesmo assim fica essa dúvida: quantas pessoas nesta condição não foram resgatadas? Quantas situações semelhantes deixaram de ser denunciadas ou investigadas?
E mais essa pergunta: por que mistério — em contraste com os Cerrados - a região Norte e a Amazônia, também comprovadas áreas de expansão do agronegócio ao longo do famoso arco do desmatamento e espaço aberto para tantas atividades ilícitas, teriam escapado desta “nova onda” de trabalho escravo no país?
A média anual de resgates na Amazônia — 2.000 pessoas por ano no período 2003-2012 — caiu abaixo de 500 resgates anuais a partir de 2013, ficando na média de 300 por ano entre 2013 e 2018, e 235 de lá para cá (em 2023: 285). Paralelamente, verificamos que a média de fiscalizações de trabalho escravo na Amazônia, que era de 150 por ano entre 2003 e 2015, de lá para cá caiu abaixo de 100, com exceção dos anos de 2017 (114) e 2021 (140).
Foto: João Ripper
As dificuldades de acesso, mas, sobretudo, a desarticulação e os retrocessos nas políticas de controle ambiental, reforma agrária e fiscalização dos territórios, devem ser relacionados a esse recuo. Difícil é acreditar que a situação hoje visível na Amazônia seja reflexo da realidade: ela mais traduz um déficit crucial de fiscalização e uma falta de coordenação das ações do Estado — especialmente na área ambiental — que remetem a problemas criados por anos sucessivos de sub investimento em contratação e infraestrutura.
Neste contexto, o anúncio, feito em junho de 2023, de um concurso visando repor 900 vagas na carreira da Auditoria Fiscal do Trabalho — ainda por ser efetivado — soou como um alívio. No entanto, isso não garante que serão providos os cargos tão necessários nas regiões hoje entre as mais deficitárias, se for considerada não apenas a população ativa existente, mas também a extensão do território a ser fiscalizado e suas dificuldades próprias.
Hoje, na Amazônia, estão lotados em torno de 200 Auditores Fiscais do Trabalho, menos que em São Paulo (292), Minas Gerais (223) ou Rio de Janeiro (216); o Norte tem 137 Auditores: menos que o Rio Grande do Sul (145).
Trabalho escravo doméstico
Um destaque importante nos últimos anos é a frequência de flagrantes no trabalho escravo doméstico (101 casos desde 2021). Uma atividade emblemática, essencialmente feminina, não exclusiva do ambiente urbano: entre as 41 pessoas resgatadas de serviços domésticos em 2023, 11 laboravam em residências rurais.
De novo, verificamos que os 5 estados liderando neste ramo tão emblemático da cultura escravocrata são quase os mesmos já citados acima, só trocando Piauí por Bahia: SP (11), RS (7), BA (6), MG (5), GO (2), sendo equiparado com RJ e PE.
Emblemático, o trabalho escravo doméstico pode ser assim considerado não só pela tradicionalidade desta prática em um país que tem 5,8 milhões de pessoas empregadas em serviços domésticos (92% são mulheres e 65% delas, negras), mas também pela força e recorrência das narrativas de naturalização apresentadas pelos próprios empregadores, encampadas por setores da mídia ou mesmo ratificadas por membros eminentes da magistratura, como ocorreu no caso recente — escandaloso — da empregada Sônia, mulher negra, com deficiência auditiva profunda, mantida analfabeta, sucessivamente resgatada e “retornada” ao lar dos seus patrões catarinenses, auto referidos como “pais afetivos” de uma senhora relegada por 40 anos no quartinho da casa grande.
Sônia Maria de Jesus. Foto: Divulgação
Neste caso específico se expressa com toda a sua crueldade, a contraditória condução da política brasileira de combate ao trabalho escravo. Inédita é a paralisia concertada das mais altas instâncias do Judiciário, exclusivamente empenhadas em acobertar, há quase um ano, a mais descarada prática escravagista de um dos seus membros de alta patente (desembargador de Justiça). Inacreditável é a inversão total de responsabilização que levou um Ministro do STJ a decretar investigação administrativa e penal contra o Auditor Fiscal do Trabalho que coordenou, com todas as regras da arte, a operação de resgate de Sônia em junho do ano passado. Insuportável é a re-vitimização da trabalhadora resgatada e, em seguida e até hoje, des-resgatada, devolvida aos seus patrões e privada do convívio da própria família biológica.
Em sua absurda extremidade, o caso de Sônia deixou de ser singular, tão revelador o caso se tornou da entranhada impregnação da cultura do quartinho e da naturalização da prática do trabalho escravo no discurso de quem dela se beneficia há séculos.
Quantas outras ‘Sônias’ precisarão aguardar uma vida para saírem (se saírem...) desta condição? Quem falhou?
Em tempo: nas características recorrentes das pessoas tratadas em condição análoga à de escravo está a cor: no registro oficial do Seguro-Desemprego onde, a partir de 2003, todo resgatado tem o nome inserido, apuramos que, entre as 8.309 pessoas incluídas entre 2016 e 2022, 6.813 se autodeclararam como pardas (65,2%) ou como pretas (16,8%): 4 em cada 5. Sônia é mais uma delas. #sonialivre!
Chega de Escravidão!
Para a CPT, o combate ao trabalho escravo nos remete à raiz do compromisso com o caráter sagrado da vida e sua absoluta dignidade. Nela, se conectam e se reforçam as lutas travadas pelos povos do campo contra todas as cercas que oprimem, degradam e matam a vida.
Por isso, vem! Entra na roda com a gente! Hoje lançamos essa campanha de sustentabilidade: um convite dirigido a você para lutarmos juntos pela erradicação do trabalho escravo e com as demais lutas conectadas com essa causa. Juntos, façamos nosso esse clamor: “Chega de Escravidão!”
Saiba mais e contribua com a continuidade da ação da CPT pelo site chegadeescravidao.org.br. Aguardamos você.
*Texto atualizado e publicado na coluna da Campanha em Defesa do Cerrado, no Mídia Ninja
Caso Gabriel Sales Pimenta: Ato de Reconhecimento de Responsabilidade do Estado
Juiz de Fora, 30 de julho de 2024 – O caso Gabriel Sales Pimenta e outros foi o primeiro decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em que se reconheceu o contexto de impunidade estrutural e violência contra pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil. Em sua sentença, a Corte não somente reitera sua jurisprudência sobre o dever reforçado dos Estados de prevenir, proteger e garantir o direito a defender direitos, mas também estabelece obrigações para o Estado brasileiro de reparar os danos sofridos e adotar medidas para sua não repetição.
O Brasil está entre os países mais violentos para aqueles e aquelas que trabalham cotidianamente para a defesa de direitos humanos, arriscando as suas vidas para que possamos avançar no fortalecimento da democracia e do Estado de Direito. Deste modo, o cumprimento da sentença é também uma medida necessária e urgente para que violações de direitos, como as denunciadas no caso, não voltem a acontecer.
O ato público de reconhecimento de responsabilidade é um passo importantíssimo e simbólico para a reparação dos familiares de Gabriel. Também, deveria ser um marco do compromisso do Estado brasileiro para cumprir todas as medidas determinadas pela sentença e que estão pendentes de cumprimento. É fundamental que, neste esforço, além da criação de espaços institucionais, sejam garantidas as condições para o seu pleno funcionamento e para a participação social efetiva.
“Para nós, é extremamente importante; é um ato histórico que está acontecendo aqui hoje, esse pedido de desculpas formal do Estado brasileiro aos familiares do advogado Gabriel Sales Pimenta. Fazer justiça, preservar a memória e a história desse advogado lutador e defensor dos Direitos Humanos é, para mim, uma grande satisfação”, disse José Batista Gonçalves Afonso, advogado do Comissão Pastoral da Terra (CPT Marabá/PA), organização que litigou o caso perante a Corte IDH junto com o Centro por la Justiça e o Direito Internacional (CEJIL).
Destacamos, neste sentido, iniciativas como a criação dos grupos de trabalho no âmbito do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, que têm como objetivo a elaboração de um Plano Nacional para a proteção de pessoas defensoras, e do Conselho Nacional de Justiça, que deve elaborar recomendações para enfrentar a impunidade em relação às violências contra pessoas defensoras.
Contudo, ainda estão pendentes medidas importantes, como a criação de um protocolo nacional para a investigação de crimes contra pessoas defensoras de direitos humanos; um sistema de dados público e acessível sobre esses crimes; e um mecanismo que permita avançar no cumprimento de decisões internacionais que determinem a reabertura de investigações de casos prescritos de forma irregular.
“A importância da sentença e das medidas de reparação e de não repetição a serem construídas pela sociedade brasileira pode parecer algo meio distante, mas não é. […] Nós precisamos de uma política real de defesa dos defensores de direitos humanos advogados, lideranças indígenas, quilombolas, gente do povo, que estão sendo ameaçadas ou mortas pela violência do latifúndio, das milícias, em todos os cantos do Brasil”, disse Rafael Pimenta, irmão de Gabriel.
“A trajetória de Gabriel foi brutalmente interrompida no auge de seus esforços e de sua disposição, mas seu legado permanece, produzindo impactos até a atualidade. O dia de hoje, representa mais uma importante etapa nessa luta, mas é fundamental que a sociedade civil siga articulada e que o Estado brasileiro siga cooperante, para que a sentença alcance todo o seu potencial transformador e que a trajetória de Gabriel não seja novamente interrompida”, disse Lucas Arnaud, advogado do CEJIL.
Assim, esperamos que o presente ato de reconhecimento transcenda seu simbolismo enquanto reparação e possa representar um verdadeiro compromisso do Estado brasileiro pela prevenção, promoção e garantia do direito a defender direitos e pelo pleno cumprimento da sentença.
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