Segundo dia do Encontro de Povos e Comunidades do Cerrado se pautou no tema “Terra e Território”, repleto de reflexões, relatos e denúncias sobre as resistências e violências que permeiam as lutas no campo
Na manhã do segundo dia do encontro “Das re-existências brota a vida”, a mística de abertura foi proposta pelas lideranças quilombolas. Enaltecendo a ancestralidade - como passado, presente e futuro dos povos -, a celebração refletiu a valorização da terra e dos territórios, finalizada com cantos e com a benção das sementes, que simbolizam a continuidade e a resiliência das vidas que brotam das re-existências.
Após a mística, teve início a roda de conversa “Terra e Território”, que contou com as contribuições e partilhas do Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado do Piaui, nas pessoas de Ariomara Alves e de Juarez Celestino. Também, integraram a roda Clara Barbosa, indígena Guarani-Kaiowá (Retomada Laranjeira Ñanderu, Mato Grosso do Sul), o trabalhador rural e coordenador da CPT Goiás Gerailton Ferreira (Assentamento Padre Ilgo, Goiás) e a advogada popular Aryelle Almeida (Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais, AATR-Bahia).
Juarez Celestino, que é liderança da comunidade tradicional ribeirinho-brejeira de Melancias-PI, que acolheu o evento, iniciou sua fala fazendo memória aos processos de luta no território. Ele explicou que a área da Comunidade Melancias era devoluta - uma parcela das terras públicas que não possui uma destinação específica pelo poder público e que não faz parte do patrimônio de um particular -, sendo ocupada pelas famílias que hoje vivem, trabalham e tiram seu sustento dessa terra.
“A gente vem enfrentando toda essa batalha, toda essa luta e resistência, para termos nosso território livre”, expressou Juarez, que denunciou o cotidiano de ameaças e violências contra a comunidade e suas lideranças por parte de grileiros que tentam usurpar as terras. Ele relatou que as famílias colhem os frutos do Cerrado, valorizando e os beneficiando para sua subsistência e renda, mas com a chegada do “desenvolvimento”, começaram a limitar o acesso da comunidade aos frutos.
São muitos anos de luta pela comunidade, em defesa do território, do seu direito à terra e também pela preservação do Cerrado, que dá vida em abundância, água e muitos frutos. Juarez afirma que estar a frente nos enfrentamentos pela conservação do bioma e a vida de seus povos não é uma tarefa fácil, mas é coletiva. As investidas contra a comunidade são várias, desde intimidações e ameaças contra lideranças, até a devastação do território, com queimadas criminosas e desmatamento ilegal por parte dos fazendeiros interessados na exploração da área, que só permanece preservada graças a resistência das famílias ribeirinhas.
“Sou um dos batalhadores para que pelo menos esse nosso pedaço de Cerrado permaneça de pé, e isso faz com que eu seja uma pessoa ameaçada”, relatou Juarez.
Resistindo e insistindo no direito de existir, Ariomara Alves é do Território tradicional ribeirinho-brejeiro da Barra da Lagoa-PI, e integra o Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado do Piaui, reafirmando a juventude organizada em defesa dos territórios e do bem viver. Ela explica que o coletivo surgiu em 2018, com apoio e acompanhamento da CPT, e que antes as lutas eram feitas individualmente por cada comunidade, até que perceberam a importância de se unirem, se fortalecerem e avançarem nas lutas. “Nós lutamos para que nosso modo de vida seja continuado e que as gerações futuras tenham a permanência garantida nesse território”, explicou a liderança. Ariomara afirmou que, se hoje ainda existe Cerrado, é porque os povos e comunidades tradicionais e originárias são guardiãs e guardiões de toda a sociobiodiversidade do bioma.
“Aqui somos diversos povos: ribeirinhos, brejeiros, quilombolas, indígenas… e nossas causas são comuns, nós somos unidos pela resistência. Nós sabemos o quanto sofremos diariamente, lutando por terra e território, pela nossa permanência, pelo nosso Cerrado e nossas vidas”, refletiu Ariomara.
Para garantia dos territórios livres e do direito à terra, é preciso pensar um novo modelo de reforma agrária, afirmou Gerailton Ferreira, que além de agente pastoral e coordenador da CPT Goiás, também é trabalhador rural assentado no Assentamento Padre Ilgo-GO. Ele alerta que o atual modelo de reforma agrária não atende os povos e trabalhadores do campo, e não os deixam livres dos arrendamentos e dos agrotóxicos. “Nós estamos resistindo às titulações nos assentamentos, para impedir que o capital invada os territórios com essa especulação destrutiva que só visa o lucro”, declarou.
O agente refletiu, ainda, sobre a importância de um projeto de reforma agrária popular, que não apenas garanta o acesso à terra, mas também as condições necessárias para que as famílias tenham uma vida digna no campo.
“Não é possível pensar uma reforma agrária de sucesso se as pessoas nos assentamentos não tem uma casa digna para morar. A gente precisa mudar essa realidade, para que as famílias cheguem à terra e consigam acessar as políticas públicas de assistência e de incentivos à agricultura familiar”, explicou Gerailton.
Expondo a realidade de luta e resistência dos povos Guarani-Kaiowá, Clara Barbosa, da Retomada Laranjeira Ñanderu-MS, refletiu sobre o direito ancestral dos povos indígenas em retomarem seus territórios.
“Nós queremos a devolução dos nossos territórios. Eu nem digo demarcação, a gente quer de volta o que nos foi roubado quando os invasores chegaram aqui, pois em 1500 nós perdemos tudo, principalmente nossa autonomia”, manifestou.
Clara afirmou, ainda, que os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas se identificam na luta pelos seus territórios, pois compartilham o sofrimento, mas também a resistência. Durante sua fala, a liderança também alertou para a violência do agronegócio e dos projetos de morte contra as comunidades e territórios. “O agronegócio é um monstro sem alma que não se controla. Ele vê uma árvore e não enxerga que ela está cheia de vida, ele vê notas de dinheiro”, refletiu.
Seguindo o testemunho de Clara, a advogada popular Arielly Almeida, da Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais-BA, abriu sua fala reverenciando a resistência dos povos indígenas e como esses são referência de luta, mas também de resiliência ao longo destes 524 anos. “As comunidades tradicionais têm muito o que aprender com os povos originários, pois eles são precursores dessas lutas. Nós [povos negros], que fomos sequestrados nos nossos territórios além-mar, fomos acolhidos pelos povos originários, que nos ensinaram a sobreviver e a resistir nesse território renomeado Brasil”, iniciou Arielly.
A advogada explicou que a AATR foi criada há 45 anos, nascida na Bahia, pela necessidade de fortalecer e fornecer acompanhamento e assistência jurídica aos povos do campo e trabalhadores rurais, frente às violências que enfrentam decorrentes dos conflitos. Além, ainda, de promover formação popular, com o intuito de proporcionar, para as comunidades e lideranças, propriedade sobre o processo jurídico, dando ao povo poder de compreender e decidir sobre todos eles.
Percebendo que os conflitos territoriais estavam se expandindo, especialmente na região do MATOPIBA - fronteira agrícola que corresponde às porções de Cerrado entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piaui e Bahia - e afetando cada vez mais os defensores de direitos humanos e as comunidades camponesas, a AATR passou a dialogar e atuar com os estados vizinhos.
“Esse mecanismo da grilagem acontece de forma muito parecida em todos esses territórios que compõem o MATOPIBA. Por isso, nós buscamos nos fortalecer em rede com outros advogados e advogadas populares que estão em outros contextos e estados. A gente chega nos outros estados muito na ideia e intenção de contribuir com as nossas experiências, de compartilhar o que tem dado certo e o que não tem funcionado”, afirmou Arielly.
Após as contribuições da mesa, a fila do povo tomou corpo para as falas-denúncia e os depoimentos de vida e luta dos povos em seus territórios e comunidades. Expedito Ribeiro, do Assentamento Flores-PI, manifestou que, para a luta, é preciso organização. “Nós temos que nos unir e organizar como classe, sem medo, porque com medo não se vence a guerra”, declarou.
Pela tarde, os participantes se dividiram em pequenas rodas, de acordo com suas identidades camponesas e de povos das florestas, para refletirem e definirem coletivamente sobre o fortalecimento das lutas pela articulação e organização dos povos do Cerrado. Após os diálogos, representantes de cada grupo partilharam sobre as discussões, reafirmando as resistências frente às violências do latifúndio, do agronegócio e dos grandes projetos, pois “na luta do povo, ninguém se cansa!”.
Famílias estão há mais de 12 anos na área, situada às margens da estrada vicinal José Pinto Sobral, próxima ao Município de Álvares Florence (SP)
Por Heloisa Sousa e CPT SP
Na última sexta-feira, 08, o Acampamento Vale do Amanhecer, no município de Álvares Florence (SP), realizou uma Assembleia Geral junto à Comissão Pastoral da Terra Regional São Paulo (CPT-SP). A atividade ocorreu após audiência no fórum de Votuporanga (SP) para tratar da reintegração de posse das mais de 300 famílias do acampamento.
“Nós, da CPT São Paulo, estamos acompanhando esse processo com as famílias acampadas no município de Álvares Florence. A prefeitura local pediu a reintegração de posse da área, que é de domínio da prefeitura e está às margens da rodovia, onde as famílias estão acampadas há 12 anos”, explica Eduardo Cunha, advogado da CPT que acompanha a situação.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do Estado de São Paulo (Incra-SP), se fez presente por meio da superintendente Sabrina Diniz, que apontou caminhos que podem ser seguidos para a resolução do conflito. As assessorias dos deputados Nilto Tatto (PT) e Ana Perugini (PT) representaram os parlamentares e se colocaram à disposição das demandas apresentadas.
Segundo Eduardo, boa parte do processo transcorreu sem que os advogados da CPT, que atuam no processo, fossem intimados. “Desse modo, o juiz deu uma sentença concordando com a tese da procuradora do município e nós subimos uma apelação por cerceamento de defesa”, explica.
Sabrina Diniz se propôs a dialogar diretamente com quem, atualmente, possui a propriedade. Na próxima semana, a superintendente irá protocolar um documento apresentando o interesse do Incra na área.
Vale salientar que a terra reivindicada é uma fazenda grilada por fazendeiros ligados ao agronegócio. “As tratativas serão realizadas para que possamos fazer deste grilo um assentamento que produza alimentos saudáveis e ajude a combater a carestia”, destaca Eduardo.
“Acreditamos que, diante de toda essa movimentação, essa reintegração de posse vai ser de fato suspensa. Isso para nós é muito bom porque não ter despejo é muito significativo, mas as famílias também concordam que estão em uma área de risco, às margens da rodovia. Então, estamos tentando sensibilizar a prefeitura para que arrume um local seguro que abrigue o acampamento”, completa Eduardo.
A Comissão Pastoral da Terra São Paulo, acompanha essa demanda por meio dos agentes pastorais e pela assessoria Jurídica, considerando que o princípio pastoral é nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra e nenhum trabalhador sem direitos.
Por CPT RO
Edição: Comunicação Nacional
Uma liderança do Seringal Belmont sofreu uma tocaia com intento de assassinato na última sexta-feira (01), em Porto Velho (RO). Outra das lideranças do grupo, João Teixeira, já foi assassinado na noite do dia 07 de outubro, após ser ameaçado em relação ao conflito de terras existente no local.
Pelo que é conhecido até o momento, o crime que vitimou João Teixeira de Souza, também conhecido como Mineiro ou João da Van, segue sem conclusão oficial. Nem mandantes, nem autores foram oficialmente identificados ou presos, seguindo o padrão habitual de impunidade dos crimes cometidos contra pequenos agricultores no estado de Rondônia, o que contribui para a que a violência continue no local.
Na última sexta-feira, dois homens armados disparam mais de dez vez em direção a casa onde estava a liderança, um dos antigos posseiros da área que ainda não conseguiu voltar a antiga terra dele. Afortunadamente, ele tinha saído do local um pouco antes. Nas imagens das câmeras de segurança, que filmaram tudo, é possível ver os disparos e o cachorro correndo apavorado. Uma mulher presente conseguiu se esconder e se trancou na casa. Logo que o posseiro chegou, pediu ajuda de um vizinho e chamaram a polícia, que descobriu dez cápsulas de calibre 12 no local onde os agressores dispararam.
A liderança que escapou da tocaia solicitou, há meses, a inclusão no Programa de Defensores de Direitos Humanos. Não é a primeira vez que é perseguido e que teve que fugir do local.
Histórico
Ele é um dos mais antigos posseiro da área, que ocupava desde 2014, com morada, roças, estrada construída pela Prefeitura – agora interditada judicialmente por um fazendeiro – e padrão de energia elétrica instalado. Porém, em 2020, em plena pandemia, junto com todos os seus vizinhos, sofreu uma reintegração de posse ordenada de um dia para outro. Quando conseguiu se defender judicialmente, demostrando com os outros posseiros a antiguidade da posse, a ordem de despejo foi suspensa pela mesma magistrada.
No entanto, quando tentaram voltar ao local, em agosto de 2022, foram atacados de noite por jagunços armados, que tentaram pegar as lideranças do grupo e queimaram criminosamente a única casa que tinha restado em pé. Em vez de receber proteção, de novo foram expulsos policialmente de forma irregular. Acampando no Incra por mais de ano, após conseguir suspender um georreferenciamento irregular da área, as famílias foram na entrada do Parque Natural de Porto Velho, próximo as suas antigas posses.
Em situação de grave vulnerabilidade, os acampados foram apoiados pela CPT-RO e por numerosas entidades sociais. Atendidos pela Defensoria Pública, conseguiram que a mesma magistrada ordenasse o retorno deles. Porém, mesmo reiterada a ordem judicial, a ordem não foi cumprida. Assim deram tempo para um desembargador, de forma surpreendente, suspender liminarmente a ordem dos dois magistrados e impedir o retorno deles ao local.
Mesmo assim, sem mais poder aguardar por moradia e produção de alimentos, a área foi ocupada pelo grupo de antigos posseiros do Seringal Belmont. No TJ /RO tramita processo que analisa a questão possessória, estando no aguardo a publicação do teor do julgamento do último dia 29-10-2024 (AUTOS N. 0811952-51.2023.8.22.0000 AGRAVO INTERNO E AGRAVO DE INSTRUMENTO). Ao mesmo tempo, segue em tramitação na justiça federal – (TRF1 Discriminatória 0007402-11.2008.4.01.4100, perante a 5ª Vara Federal Ambiental e Agrária da SJRO) que trata da retomada da área para a União por descumprimento do título concedido.
Em março deste ano, a área foi visitada pela Missão em Rondônia da Comissão Nacional de Combate à Violência, presidida pela Ouvidora Agrária Nacional, Cláudia Dadico. Posteriormente, a intervenção do Incra confirmando a natureza pública da terra e o interesse da autarquia pela área, tem levado a esfera da Justiça Federal diversos processos da disputa do local, que pelas proximidades da cidade de Porto Velho, está ambicionado para fins imobiliários.
A resolução do conflito continua pela via dos fatos, provocando este estado de permanente de tensão no local, agravada pelos recentes episódios de violência e barbárie, tristemente costumeiras no estado. Enquanto demora de resolução jurídica do caso, permanece a violência com mancha severa no campo de Rondônia.
Por Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Sobre a terra devastada por monocultivos tóxicos de soja e milho transgênico, indígenas Guarani Kaiowá – mulheres, crianças, homens, jovens e idosos – montam barracas de lona e iniciam mais uma retomada de parte da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, Mato Grosso do Sul. Desde 2011, a TI foi identificada e delimitada pela Funai (Fundação Nacional do Índio) em 12 mil hectares, mas a demarcação foi barrada por ações judiciais, em um estado que protagoniza escândalos na venda de sentenças judiciais.
Na retomada Yvy Ajhere, lideranças Guarani Kaiowá recebem jornalistas para uma conversa sobre a luta por terra e território. Crédito: Rebeca Bastos - Ascom AATR
Falta tudo na retomada: água potável, alimento, remédios, cuidado médico para quem precisa, falta segurança – jagunços a serviço de fazendeiros rondam dia e noite o local. Sobra a violência do Estado, que se faz presente pela ausência, no total desamparo ao povo que, desde 1500, tenta recuperar seus territórios invadidos e saqueados por Europeus e, agora, por fazendeiros do agronegócio que exportam grãos à China e países da Europa.
É por causa dessa ausência estatal, ancorada no racismo histórico e colonial que estrutura a sociedade brasileira, que os Guarani Kaiowá, segundo maior povo indígena do Brasil, com mais de 64 mil habitantes no Mato Grosso do Sul, entendem que nenhuma demarcação de suas terras será feita, mesmo sendo lei, e que a única forma de estar em seu tekoha (lugar em que se é, na língua guarani) é por meio das retomadas. A demarcação tem sido feita pelos próprios indígenas, com seus pés, rezas e cânticos.
Barracas de lona da retomada são instaladas sobre os campos de soja e milho de fazendas do agronegócio exportador. Falta água e comida nas retomadas, e o solo está contaminado com agrotóxicos. Crédito: Tales Damascena - Kalunga Comunicações
Ao todo, o povo Guarani Kaiowá demanda como suas terras ancestrais 700 mil hectares em todo o Mato Grosso do Sul, cerca de 2% da área do estado, que tem 35 milhões de hectares. No entanto, há décadas eles têm sido obrigados a viver em reservas diminutas, que confinam milhares de pessoas em espaços insuficientes para a manutenção de seus modos de vida.
As mais recentes retomadas aconteceram em julho desse ano, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina. Ao todo existem, hoje, sete retomadas nessa TI. Os ataques de fazendeiros, jagunços e policiais militares aos indígenas em seus territórios reocupados são virulentos. Atropelamentos, tiros com armas de fogo e bala de borracha, espancamentos, perseguição, tortura, tentativas de assassinato. São inúmeros os relatos de violência contra as pessoas acampadas noticiados pela imprensa.
A Força Nacional foi enviada em julho pelo governo federal para garantir alguma segurança aos indígenas diante do aumento da violência de ruralistas contra eles. Ainda assim, houve denúncias de que policiais da Força Nacional estavam interagindo amistosamente com jagunços que cercavam as retomadas para atacar os Guarani Kaiowá. Em agosto, as equipes da Força se retiraram de uma das regiões sem prévio aviso – mesmo com a tensão instalada –, deixando o caminho livre para novos ataques. Jagunços fortemente armados avançaram contra os Guarani Kaiowá, atirando com armas de fogo e balas de borracha; 10 indígenas foram feridos.
Reunião do povo Guarani Kawioá com jornalistas na retomada Yvy Ajhere, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, na zona rural de Douradina, Mato Grosso do Sul. Crédito: Tales Damascena - Kalunga Comunicações
Um deles, um jovem de 20 anos, levou um tiro na cabeça, e até hoje segue com a bala alojada no crânio. O atendimento inicial recebido por ele no hospital público de Dourados, capital do Mato Grosso do Sul, a 40km do local do ataque, foi marcado por mais violência. "O jovem contou que ouviu de um policial militar, que estava no hospital, que o tiro deveria ter sido para matar. 'Ele disse que o tiro foi errado. Que deveria ter atingido no meio do peito. ‘Que assim matava logo o vagabundo'", afirma reportagem sobre o caso.
No Mato Grosso do Sul, estado dominado por monocultivos de grãos do agronegócio exportador, a sanha contra os povos originários é histórica. Há pelo menos 20 anos, a violência que se vê hoje contra as retomadas da Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica já se enraizava no estado, degenerando em expulsões, torturas, sequestros, assassinatos e massacres. Em 2016, o Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowá e entidades apoiadoras da causa indígena, protocolou junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) uma denúncia contra o Estado brasileiro "por violações aos direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, no Protocolo de San Salvador e na Convenção de Belém do Pará".
Lideranças indígenas falaram a jornalistas sobre sua espiritualidade e sobre a força das nhandesi e nhanderu para a permanência no território. Crédito: Júlia Barbosa - CPT Nacional
Atualmente, a instabilidade jurídica das demarcações e a violência de ruralistas e latifundiários contra os povos indígenas em todo o Brasil, e em especial no Mato Grosso do Sul, se intensificou com a lei do marco temporal, aprovada pelo Congresso em outubro de 2023, determinando que os indígenas somente têm direito à demarcação das terras que estavam ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
Um mês antes da aprovação da lei pelo Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a tese do marco temporal. Agora, porém, além da lei – inconstitucional – já aprovada, está em discussão o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) número 48, que pretende incluir na carta magna a tese do marco temporal.
Visita de jornalistas e comunicadoras populares
Diante de todo este cenário de violência colonial, especialmente em territórios ocupados pelos Guarani Kaiowá no Cerrado sul-matogrossense, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e a Articulação Agro é Fogo, em parceria com entidades e movimentos da sociedade civil que trabalham na defesa do Cerrado e dos povos e comunidades tradicionais que o coabitam, realizaram em Dourados, entre os dias 13 e 16 de outubro, o “I Encontro de Comunicadoras/es Populares e Jornalistas: o Cerrado e seus Povos”.
O encontro reuniu 20 jornalistas do sul, sudeste e centro-oeste do país, além de comunicadoras e comunicadores populares quilombolas, indígenas e de comunidades tradicionais de diferentes territórios do Cerrado, com o objetivo de ampliar a difusão das informações sobre este bioma, seus povos e comunidades, e os desafios na defesa dessa região ecológica.
Encontro entre indígenas Guarani Kaiowá e jornalistas aconteceu em outubro, e contou com a presença de profissionais do sul, sudeste e centro-oeste do país. Crédito: Rebeca Bastos - Ascom AATR
De modo especial, o encontro propiciou às pessoas participantes um contato mais próximo com a luta dos Guarani Kaiowá por meio de visitas às retomadas Laranjeira Nhanderu II, na Terra Indígena Brilhantepeguá, no município de Rio Brilhante, e à retomada Yvy Ajhere, na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, tendo no horizonte possibilidades de denúncia sobre as violações sofridas, considerando que as dinâmicas que se desenham nesta localidade têm se configurado como modelo a ser projetado para todo o Cerrado.
Jornalistas e comunicadoras foram recebidas com cantos e danças rituais e puderam ouvir, por horas, relatos em primeira pessoa das violências sofridas, perpetradas ao longo de décadas pelo estado brasileiro e latifundiários, mas também estratégias de resistência baseadas na força espiritual das nhandesy e nhanderu – rezadoras e rezadores –, no respeito à ancestralidade, na coletividade e na soberania alimentar ancorada nos modos de vida tradicionais. Na retomada Laranjeira Nhanderu II, a produção agroecológica dos Guarani Kaiowá é escoada para instituições de ensino locais, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que é federal.
As visitantes foram estimuladas pelas lideranças a fazer denúncias, mas também anúncios sobre as conquistas do povo, como o destaque de jovens Guarani Kaiowá que se dedicam aos esportes e participam de competições oficiais, o ingresso em universidades, a formação de mestras e doutoras indígenas na academia, a manutenção da cultura, a força da sabedoria de anciãs e anciãos, o protagonismo das mulheres Guarani Kaiowá nas lutas e a força ancestral do povo e sua disposição em retomar e permanecer em seu tekoha.
Primeiro dia do Encontro de Povos e Comunidades do Cerrado se inicia com o tema “Água” e é finalizado com Troca de Sementes
Na primeira manhã do encontro “Das Re-existências brota a vida”, mais de 200 pessoas de comunidades e povos de todos os estados do bioma Cerrado compartilharam seus processos de resistência diante das ameaças às águas de seus territórios.
Na mística de abertura, Maria Roxa, pajé do povo Akroá Gamela, abençoou todos os participantes do encontro com rezas e encantamentos, juntamente com outros indígenas presentes. Na atividade seguinte, a Grande Roda “Cerrado: Berço das Águas”, a anciã compartilhou relatos sobre a luta de seu povo, juntamente com Isidora Oliveira, do Povoado de Caruaru (Bahia), e Miguelina de Oliveira, da Comunidade São Manoel do Pari (Mato Grosso).
Dona Maria Roxa narrou a destruição promovida por grileiros que tentaram se apropriar de suas terras. “Nosso território foi devastado e tomado. Derrubaram os juçarais, os cocais, aterraram os igarapés. Era tudo na cerca elétrica, não tínhamos mais licença para ir buscar o nosso sustento nos campos”.
Com organização, o povo Akroá Gamela conseguiu retomar o território. “Depois que retomamos o que era nosso por direito, os nossos encantados ficaram alegres. O rio já retornou a ser o que era. Eles devastaram tudo e o que nós estamos fazendo é replantando para tirar o sustento de nossos filhos, netos e bisnetos”, relatou.
Um grito pelas comunidades e pelas águas de todo o Cerrado
Em 2017, uma jovem de Correntina, em um protesto contra a apropriação das águas da região pelo agronegócio, gritou diante da polícia, que reprimia o movimento popular: “Ninguém vai morrer de sede às margens do Rio Arrojado!”
A frase foi ecoada por todos os presentes e se tornou um grito de resistência das comunidades do oeste da Bahia, que vivenciam a progressiva morte de seus rios, riachos e nascentes por conta da construção de estruturas gigantescas de desvio e drenagem de leitos e extração de água do subsolo para irrigação da monocultura.
A história foi compartilhada por Isidora Gonçalves, que apresentou ao encontro o Mapeamento das Águas Mortas do Oeste da Bahia, resultado da cartografia social iniciada junto às comunidades da região em 2018. “São 7 mil quilômetros de águas mortas e 3 mil quilômetros de águas em estado crítico no oeste baiano. Isso mostra o impacto dos pivôs centrais e piscinões implantados pelo agronegócio”, denunciou Isidora, que incentiva todas as comunidades a fazerem o mapeamento de suas águas.
Miguelina de Oliveira, da comunidade São Manoel do Pari, no Mato Grosso, disse: “Eu sinto uma dor no coração de falar do Cerrado e das nossas águas, do jeito que está. No Mato Grosso, para nós que somos camponeses, da agricultura familiar, é muito dolorosa a situação, por causa do agronegócio. A gente tem resistido à seca, à falta de água, e é só por Deus, porque os ‘grandes’ de lá só pensam neles mesmos. O rico, quanto mais tem, mais quer. E não importa que vende a alma para o diabo. Eles vão devastando, desmatando e cavoucando, porque lá também tem ainda a mineração. Os garimpos também estão chegando para dentro das cidades e dos territórios”, narrou Miguelina.
Miguelina destaca ações coletivas que têm contribuído para a recuperação de áreas nas comunidades. “Os conhecimentos populares têm nos alimentado. O reflorestamento das nascentes tem como nosso patriarca o Baltazar, que tem sido um pioneiro e incentivador. As comunidades estão aprendendo isso. Eu tenho um pensamento assim: se o Cerrado acabar, nós também morremos. O Cerrado vive dentro da gente, a gente vive no Cerrado. Ele traz para nós toda a vida, toda a água.”
Isolete Vischinieski, da Articulação das CPTs do Cerrado, fez a síntese da roda, falando sobre a importância das águas do Cerrado para as principais bacias hidrográficas do Brasil, do Uruguai e do Paraguai. “O que nos une no Cerrado são os veios das águas. É o sangue que corre no Cerrado, que nos mantém vivos. Somos povos bonitos, que sustentam este Cerrado em pé. Onde há mata? Onde há comunidade. Nós, que estamos caminhando juntos, somos os verdadeiros guardiões destes territórios. O Cerrado interliga nosso Brasil e tem relação com todos os outros biomas, e por isso ele é tão diverso e importante. Estamos falando que o Cerrado é vida”, disse Isolete.
Isolete fez um apanhado histórico dos grandes projetos de desenvolvimento implantados pelo Estado brasileiro, que, ao longo de nossa história, não trataram este bioma com a devida importância e cuidado, promovendo sua devastação. Primeiramente, a Revolução Verde e o projeto nacional de expansão da agropecuária, que avançou sobre os territórios de Minas, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Depois, o projeto Matopiba, juntamente com os grandes projetos de hidrelétricas e mineração. “Esse território que é vida vai se tornando um território de resistência, de projetos que querem nos matar, e nós dizemos: não – não vamos morrer. Se o Cerrado morrer, nós também morremos”, arrematou Isolete.
A manhã foi finalizada com a Fila do Povo, onde a fala foi aberta a todos os participantes que quiseram relatar a situação das águas de seus territórios, compartilhando conflitos vividos, ações de preservação e cuidado, e experiências de resistência e enfrentamento do agronegócio.
No período da tarde, o grande grupo se dividiu para as oficinas formativas com os seguintes temas: Mulheres e geração de renda; Juventudes e defesa dos territórios; Autocuidado, cuidado coletivo e segurança; Comunicação popular; Incêndios e Protocolo de Segurança. Ao final do dia, as discussões de cada grupo foram partilhadas com todo o coletivo.
À noite, foi realizada a Troca de Sementes e a Feira de Produtos das Comunidades, onde, com alegria e orgulho, mulheres e homens apresentaram os resultados de seus trabalhos junto à terra. Nas comunidades, as sementes crioulas representam a ancestralidade, a resistência na terra e a tradição de partilha, como também defendem a possibilidade de um futuro fraterno, com soberania alimentar e popular. "Nós somos o Cerrado. No dia que o Cerrado acabar, nós também morremos. O Cerrado precisa ficar em pé. Nós precisamos preservar essa troca de sementes e de experiências para preservar o Cerrado", expressou Miguelina.
O encontro contou com momentos de mística, memória das mulheres que fizeram e fazem parte da história da CPT, partilha de experiências, cuidado coletivo e oficina de Arpillaria
Por Heloisa Sousa | CPT Nacional
Foto: Heloisa Sousa
Entre os dias 21 e 24 de outubro, o Coletivo de Mulheres da Comissão Pastoral da Terra (CPT) reuniu cerca de 37 agentes e coordenadoras da Pastoral em uma atividade no município de Hidrolândia, Goiás. Na noite de chegada, foi realizada uma dinâmica de acolhimento e cuidado coletivo.
No dia 22, as participantes da atividade puderam rememorar a trajetória dos 50 anos da CPT, trazendo a história e olhar das mulheres na luta por terra e território. Pela manhã, agentes de várias regionais que fizeram parte dos primeiros anos dessa caminhada fizeram relatos de suas experiências. Pompéa Bernasconi, agente histórica da CPT, contou sobre a formação da Pastoral e a luta à luz do evangelho contra a repressão na época. Em seguida, Ivaneide Minozzo, falou sobre as lutas no Mato Grosso do Sul, onde ela é agente, nesses primeiros anos de CPT.
"Se o povo soubesse a força que tem, ninguém os dominaria” - Pompéa Bernasconi
Marina Rocha (CPT Bahia), Sônia Martins (CPT Rio de Janeiro) e Antônia Calixto (CPT Maranhão), por meio de vídeo, trouxeram seus depoimentos sobre a atuação, desafios enfrentados pela CPT e também por elas e a presença marcante das mulheres na caminhada, a exemplo de Irmã Dorothy Stang.
“A gente está indo para 50 anos, para o Congresso da CPT, e é impossível pensar os 50 anos da CPT sem revisitar a história das mulheres. Sejam as mulheres agentes da CPT ou as mulheres que estão longe, no processo de ocupar a terra, que resistem e que estão reconstruindo um novo jeito de ser, de saber e de fazer a CPT aqui e no Brasil”, destacou Sônia, que também apresentou sua perspectiva enquanto mulher negra na luta por terra no Rio de Janeiro.
Falou também Isabel Diniz, coordenadora da CPT Paraná, que foi a primeira mulher coordenadora nacional da CPT, no final da década de 90. Nesse período, ocorreu a reestruturação da instituição, das linhas de ação da Pastoral – que inclui o eixo temático das águas – e a realização do I Congresso da CPT, em 2001, que contou com forte presença das trabalhadoras e trabalhadores do campo e das florestas.
“A gente não pode cantar ‘pra mudar a sociedade do jeito que a gente quer’ e ter medo de realmente fazer isso.” - Maria Mendonça, coordenadora CPT Roraima
Dando continuidade, Amélia Romano, secretária executiva do Centro de Estudos Bíblicos do Mato Grosso do Sul (Cebi MS), trouxe a reflexão sobre a prática da CPT a partir da palavra de Deus e a presença da mulher no evangelho. “Precisamos fazer a leitura da Bíblia com os pés no chão da realidade, porque só assim vamos entender onde as mulheres estão na Bíblia”.
Bordando direitos
Ainda no dia 22, na parte da tarde, Elisa Estronioli, integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), apresentou o contexto histórico em que surge a arte das “Arpilleras”, prática chilena em que mulheres bordavam mensagens de resistência no tecido da juta. A prática, que funciona como ferramenta de organização e denúncia, é hoje muito utilizada pelas mulheres no MAB, que inspiraram as companheiras no encontro a contar suas próprias histórias por meio da arpillaria.
A partir da explicação de Elisa, as participantes se dividiram em grupos para partilhar sobre quem são, de onde vêm, suas trajetórias, desafios e realizações dentro da CPT. O momento, que se dividiu entre os dias 22 e 23, foi de aproximação e inspiração para que os grupos pudessem elaborar seus próprios bordados.
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A oficina também contou com a escrita das cartas que acompanharam os bordados, onde questões como ancestralidade, acolhimento entre as mulheres, assédios, machismo, a construção de espaços seguros dentro dos movimentos e pastorais e a esperança de um futuro mais acolhedor foram levantadas. Além disso, a criação e fortalecimento dos espaços para contar as histórias femininas nas lutas, reafirmando as memórias das mulheres da CPT, foram reivindicados. “É preciso rasgar caminhos e romper as ideias de dominação”, destacou uma das participantes.
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As cartas e artes produzidas durante o encontro serão publicadas nas redes da CPT Nacional. Fique de olho!
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