Moradores da comunidade Brasil Verde ainda lutam pela direito à terra onde vivem
Por Heloisa Sousa e Sirlei Carneiro da Silva (CPT Tucuruí)
Fotos: Comunidade Brasil Verde e CPT Tucuruí
Lote Rancho Emanoel 'Deus Conosco', de Valquer e Lora dos Carroceiros Produção de farinha, na propriedade de seu Francisco Alves
Localizada em ilhas no lago da Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHT), no Pará, a Comunidade Brasil Verde se originou a partir da pesca, em 2006. O movimento se deu quando pescadores dos municípios de Tucuruí e Breu Branco, ao perceber que a região era estratégica para a atividade pesqueira, passaram a se deslocar para a região do lago da UHT, formado pelas águas do rio Tocantins. Ali, montavam seus barracos provisórios e ficavam até a piracema, época em que ocorre a reprodução dos peixes, quando então retornavam para a cidade até o período de reabertura da pesca, de abril a setembro.
Posteriormente, no ano de 2008, com a necessidade de permanência no local, um grupo de 63 famílias iniciaram a construção das primeiras moradias fixas na região, ocupando a área pública conhecida como Fazenda Bom Jesus II e passando a lutar pela conquista da terra. O espaço, que antes era frequentado apenas no período de pesca, se tornou lar de dezenas de famílias ribeirinhas que tiram seu sustento da pesca e do cultivo de milho, mandioca, feijão, abóbora, pepino, arroz, banana, hortaliças e diversas plantas frutíferas. A produção excedente é levada de rabeta até o polo pesqueiro de Tucuruí, onde é comercializada.
Maria de Nazaré, agricultora da comunidade Brasil Verde, cultiva uma variedade de legumes e frutas e percebeu o aumento da produção deste ano. “Meu trabalho na comunidade está evoluindo, graças a Deus. Todos os anos nós fazemos a roça, mas esse ano tivemos mais produção. Meu arroz está lindo, já está começando a jogar cachos e, fora a plantação de legumes, tem a plantação de cacau, açaí, pimenta, banana, cupuaçu”, conta. O trabalho de Maria é apenas um exemplo de produção agroecológica na comunidade, que alimenta não apenas cada uma das 63 famílias, mas também as comunidades de Tucuruí e Breu Branco através da comercialização nas feiras.
Direito à terra
Os ribeirinhos, que se organizam por meio da Associação de Pequenos Agricultores e Pescadores e realizam mutirões nos serviços da roça, encontraram no poder da união uma maneira de resistir e enfrentar as violências que vêm sofrendo na luta pelo direito à terra. Isso porque, desde sua ocupação, fazendeiros interessados na área atuam de forma violenta contra as famílias, realizando tentativas de expulsão, ameaças, queima de canoas, desmatamento para implantação de pastagem e criação de gado.
É também desde a ocupação, que os moradores da comunidade reivindicam que a área se torne um projeto de assentamento onde possam viver e manter suas atividades de pesca e agricultura. Em 2010, uma decisão da Vara Agrária de Marabá favorável às famílias, determinou que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tomasse posse da área para criação do assentamento. No entanto, o pretenso proprietário, Paulo Scandian, recorreu em 2ª instância, conseguindo a derrubada da sentença.
“Nós ganhamos as audiências e tivemos o direito de plantar e tirar o nosso sustento daqui. Plantamos arroz, milho, macaxeira, abóbora, para subsistência e para complementar nossa pesca, não só eu como muitas famílias. O fazendeiro se diz dono daqui, mas a gente sabe que é uma terra livre, é área do governo”, explica Francisco Alves de Souza, morador de Brasil Verde. No ano de 2020, o pretenso proprietário repassou as terras para o fazendeiro Maurício Assunção Resende, que não cessou com as perseguições e ameaças, apontam as famílias.
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Reunião com a comunidade, em julho, sobre a luta e permanência na terra e organização produtiva Plantio de arroz no lote de seu Francisco Alves
A comunidade denuncia ainda a movimentação de balsas e caminhões transportando madeira e máquinas utilizadas para o desmatamento, oferecendo risco às florestas, ao rio, às nascentes e à vida das famílias. A equipe da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Tucuruí, acompanha as denúncias da comunidade, lutando junto a ela pela permanência na terra e também pelo crescimento da agricultura familiar agroecológica na região.
As famílias seguem aguardando decisão judicial para garantir seu direito à terra, que vem sendo reivindicado desde 2008, além do fim da violência e da exploração do agronegócio na região e do acesso a políticas públicas como saúde, educação e eletrificação rural, que possibilitem que as moradoras e moradores da comunidade vivam de maneira digna e plena.
*Este relato faz parte da série de experiências da campanha 'Fraternidade Sem Fome, pão na mesa e justiça social'
Mobilização com 2000 camponeses e camponesas conquista canal direto com Incra em Brasília
Por Lara Tapety | CPT Alagoas
Fotos: Jailson Tenório e Lara Tapety
A Marcha em Defesa da Democracia e por Reforma Agrária em Alagoas, ocorrida nos últimos dias 07 e 08 de agosto, mostrou que a unidade entre aqueles que lutam pela terra é fundamental para a garantia da execução de políticas públicas para as famílias camponesas e para o respeito aos direitos conquistados.
A avaliação das organizações e dos movimentos do campo que encabeçaram a iniciativa foi positiva. A partir da mobilização, foram definidas agendas de negociação com os governos estadual e federal, além de encaminhamentos práticos no sentido de atender as reivindicações.
“Estão se apresentando caminhos importantes de diálogos no sentido de trazer conquistas para o nosso povo que luta por terra e por reforma agrária no estado de Alagoas”, comentou Carlos Lima, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre os desfechos da caminhada que ultrapassou 45km.
Realizada conjuntamente, a marcha reuniu cerca de 2000 camponeses e camponesas vindos de todas as regiões do estado. A mobilização começou com a chegada dos participantes no município de Messias, na noite de domingo, 06. No dia seguinte, houve a passeata rumo ao Centro de Ciências Agrárias (Ceca) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), em Rio Largo. De lá, foi até o campus A. C. Simões, em Maceió, onde foi montado acampamento durante a noite da segunda-feira, 07.
Na Ufal, uma comissão de representantes foi recebida pelo magnífico reitor, Josealdo Tonholo, e por Alexandre Conceição, assessor especial do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar (MDA) em Brasília (DF). Na ocasião, houve o diálogo sobre o cenário político agrário em Alagoas e como a universidade pode contribuir com a agricultura familiar camponesa.
Comunicação direta com o Incra em Brasília (DF)
Na terça-feira, 08, pela manhã, houve uma reunião entre as coordenações das organizações e movimentos sociais e representantes do governo federal, na superintendência do Ibama em Alagoas.
Participaram da conversa o presidente do Incra, César Aldrighi; a diretora nacional de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assentamento do Incra, Rose Rodrigues; o assessor especial do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar (MDA) em Brasília (DF), Alexandre Conceição; e o coordenador executivo do escritório do MDA em Alagoas, Gilberto Coutinho.
Em discussão, estava a retomada da reforma agrária em Alagoas e dos programas de incentivo a agricultura familiar camponesa que, até então, permanecem paralisados. Diante desse cenário, as organizações do campo reivindicam a exoneração do atual superintendente, considerado “bolsonarista de carteirinha”.
O presidente do Incra reconheceu que das 28 superintendências do Brasil, Alagoas é a única que não há diálogo. “A ideia de vir aqui é a partir dessa leitura de que precisamos avançar, já que a mudança do César Lira está fora do meu alcance”, explicou César Aldrighi. Assim, a vinda da equipe nacional à capital alagoana, em decorrência da marcha, teve o intuito de propor uma alternativa para o impasse: estabelecer um canal das organizações do campo do estado com o Incra em Brasília.
“A gente avalia que foi uma reunião boa. Havia um clima tenso em Alagoas porque o atual superintendente ainda não foi exonerado. Então, foi criada uma mesa de diálogo com o governo federal, com o presidente do Incra nacional, e marcamos uma reunião para o dia 16 à noite em Brasília, onde vamos apresentar a nossa pauta. Essa mesa de diálogo é uma comunicação direta com o governo federal, enquanto o superintendente não é exonerado”, disse a dirigente nacional do MST em Alagoas, Margarida da Silva, a Magal.
Fornecimento de energia elétrica no campo
Durante a reunião com o governo federal, os agricultores e as agricultoras aguardavam os encaminhamentos ali perto, na sede da Equatorial, empresa privada que comprou a antiga Eletrobrás num leilão por apenas R$50 mil.
No local, houve uma reunião com o gerente de relacionamento com cliente, Carlos Humberto, e sua equipe técnica, para tratar sobre a deficiente estrutura de rede elétrica e o oferecimento de tarifa social nas comunidades assentamentos e acampamentos de luta pela terra.
A empresa se comprometeu em verificar os casos de contas altas para as famílias camponesas e fazer visitas nas áreas no sentido de melhorar a qualidade do fornecimento de energia elétrica e atender novas demandas. Também estiveram presentes o Centro de Gerenciamento de Crises, Direitos Humanos e Polícia Comunitária (CGCDHPC) da PM/AL.
Unidade das organizações e movimentos sociais de Alagoas
A Marcha em Defesa da Democracia e por Reforma Agrária em Alagoas foi encerrada na noite de ontem, 08 de agosto. A mobilização foi uma iniciativa conjunta da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Frente Nacional de Luta (FNL), do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL), do Movimento de Luta pela Terra (MLT) e do Terra Livre.
Por CPT Regional Xinguara (PA)
Foto: CPT Regional Xinguara (PA) / Divulgação
Em manifestação de moradores do campo e da cidade contra os impactos socioambientais causados pela empresa Horizont Minerals, do projeto Araguaia (Pará), organizações sociais, comunidades e movimentos emitiram a seguinte nota de reivindicações:
A VIDA VALE MAIS QUE O NÍQUEL: ASFALTAMENTO JÁ!
Nos dias 07 e 08 de agosto de 2023, cerca de 300 agricultores e agricultoras, representantes de 10 comunidades rurais, do município de Conceição do Araguaia/PA, bloquearam o tráfego de veículos na PA 449, estrada que liga o referido município a cidade de Floresta do Araguaia/PA. Esta mesma estrada dá acesso ao Projeto Araguaia, o qual visa a extração de níquel naquela região. A manifestação das comunidades locais que ficam no entorno do Projeto, visava denunciar os impactos causados pela poeira, já que o trecho não é asfaltado, e reivindicar da empresa as medidas cabíveis para solucionar o problema.
Com o início das atividades de construção da infraestrutura, no processo de implantação do projeto, houve um aumento de aproximadamente 80% do fluxo de veículos da empresa naquele trecho (site Amazônia Real, 07/07/2023), aumentando significativamente o volume da poeira, ocasionando gravíssimos problemas ambientais, impactando diretamente a saúde das pessoas, dos animais e das plantas.
Os relatos dos moradores evidenciam o agravamento de problemas respiratórios, tosses, gripes. O aumento da poeira acarreta também uma baixa visibilidade, agravando a ocorrência de acidentes, trazendo dificuldades para o deslocamento dos moradores, as crianças também ficam expostas, quando se dirigem à escola. O problema causado pela poeira, atinge também moradores de alguns bairros da cidade de Conceição, que dão acesso ao início da PA 449, causando, além da sujeira e doenças respiratórias, a desvalorização dos imóveis. Neste contexto, famílias destes bairros afetados se manifestaram em junho/2023, na cidade, através de um bloqueio.
O projeto Araguaia Níquel, de responsabilidade da empresa inglesa Horizont Minerals, prevê uma duração mínima de 25 anos, podendo ser prorrogado. A expectativa é que sejam produzidas 900.000 toneladas de minério seco, sendo 52.000 de ferro-níquel, contendo em média, 14.500 toneladas de níquel por ano, apenas na primeira etapa. Um projeto de grande porte como este, que sequer iniciou a etapa de extração do minério, já está causando sérios impactos socioambientais, e a pergunta é: qual será o saldo que ficará para a população, após tantos anos de exploração?
Esses graves problemas iniciais estão ocorrendo, principalmente, devido a falta de uma fiscalização efetiva por parte dos poderes públicos estaduais e municipais. Vale lembrar que os impactos socioambientais já estavam previstos no Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), que a empresa Araguaia Níquel apresentou à Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Sustentabilidade, portanto, já de conhecimento das autoridades.
No primeiro dia da manifestação, representantes da mineradora compareceram no bloqueio da estrada, para negociação, e se propuseram a formar uma comissão com os agricultores, com o objetivo de buscar uma solução para o problema da poeira. Se comprometeram ainda a retornar no dia seguinte, o que não ocorreu.
No dia 09/08, logo cedo, os manifestantes foram surpreendidos com a chegada de 18 viaturas da Polícia Militar, que acompanhava a oficial de justiça, encarregada de dar cumprimento decisão liminar para desobstrução da estrada. Mediante esta ordem judicial, após 03 dias de manifestação houve a liberação da estrada.
A solução apresentada pela empresa na negociação, foi realizar a umectação da estrada, alegando a inviabilidade econômica para atender a reivindicação das famílias, que consiste na pavimentação da rodovia PA 449. No entanto, a proposta de solução apresentada pela empresa, traz um outro problema, que é a utilização de grande quantidade de água para umectação da estrada.
No processo de busca de solução do problema da poeira, representantes das 10 comunidades afetadas, com o apoio do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Conceição do Araguaia, recorreram aos diversos órgãos competentes, dentre eles: Conselho Municipal de Meio Ambiente, Secretarias Municipal e Estadual de Meio Ambiente, Ministério Público Estadual, Secretaria de Estado de Transporte, prefeito, governador do Estado e a Câmara Municipal de Conceição.
O Conselho Municipal de Meio Ambiente aprovou, no dia 09/08/2023, a Instrução Normativa nº 01, para o enfrentamento dos problemas apresentados pelos manifestantes. Tal instrução já deveria ter sido publicada imediatamente pela SEMA. No entanto, como até o dia 10/08, a instrução não foi publicada, um grupo de representantes das famílias afetadas voltou a cobrar da SEMA, agilidade na publicação. A Secretária de Meio Ambiente, justificou a não publicação da instrução normativa, alegando que esta não era legal. Mediante a posição da SEMA, os representantes das famílias afetadas deverão retornar na próxima semana, para retomar as cobranças.
O Ministério Público Estadual mediante o recebimento das denúncias, se manifestou, solicitando que no prazo de 10 dias, o STTR de Conceição apresente informações que comprovem os impactos socioambientais negativos de alteração da qualidade do ar. É importante considerar que a empresa Araguaia Níquel Mineração Ltda no RIMA apresentado, classificou a poeira como um impacto negativo que gera alterações na paisagem, baixa visibilidade nas vias de tráfego próximas. Nesse sentido indicou que uma das finalidades do consumo de água no Projeto Araguaia seria para “umidificação de estradas para diminuição da poeira nas frente de obras ” (RIMA, 2014, p. 06). No entanto, a empresa mineradora não está cumprindo as condicionantes do licenciamento ambiental relativas à poeira, e os próprios moradores é que precisam comprovar que estão sendo prejudicados.
Mediante os sérios problemas socioambientais ocasionados pelo descaso da empresa Horizont Minerals, as 10 comunidades afetadas e as organizações abaixo relacionadas reafirmam a necessidade do cumprimento das reivindicações já apresentadas à empresa e aos poderes públicos:
- Publicação imediata pela SEMA, da Instrução Normativa, aprovada pelo Conselho Municipal de Meio Ambiente;
- Asfaltamento da PA 449;
- Que a empresa deixe de adotar uma gestão temerária dos recursos hídricos para a umectação da estrada.
Conceição do Araguaia – PA, 11 de agosto de 2023.
Assinam a nota:
Por Comunicação CPT Bahia
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) – Regional Bahia irá realizar, na próxima terça-feira (15), o lançamento do Caderno de Conflitos no Campo Brasil 2022, que traz dados alarmantes sobre a violência no campo no país, durante o último ano. O lançamento acontecerá a partir das 14h, no auditório da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/BA), localizado nos Barris, em Salvador (BA).
O evento contará com a presença de agentes da CPT Bahia e de integrantes da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR) e do Grupo de Pesquisa Geografia dos Assentamentos na Área Rural (Geografar/UFBA) que irão apresentar os dados dos conflitos e analisar os contextos da violência no campo no estado baiano. O lançamento contará ainda com depoimentos de integrantes do Movimento de Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST) e de comunidades rurais atingidas por conflitos.
De acordo com o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc-CPT), em 2022 foram registradas 2.018 ocorrências de conflitos no campo no Brasil, envolvendo 909.450 pessoas e 80.165.751 hectares em disputa. Na comparação com os números de 2021, no qual se registrou 1.828 ocorrências de conflitos, houve um aumento de 10,39% no número total.
Na Bahia, os conflitos no campo têm crescido nos últimos dez anos, especialmente, no período recente do Governo Bolsonaro. O estado é o terceiro mais conflituoso do Brasil, ficando atrás somente do Pará e do Maranhão, que fazem parte da Amazônia Legal.
O lançamento do Caderno de Conflitos no Campo Brasil 2022 é organizado pela CPT Bahia, AATR e Geografar/UFBA, com o apoio da Comissão Especial da Reforma Agrária e do Direito Humano à Terra e ao Território da OAB Bahia.
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Lançamento do relatório: Conflitos no Campo Brasil 2022
Quando: 15 de agosto (terça-feira), às 14h
Onde: Auditório da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/BA) – R. Portão da Piedade, 16, Barris, Salvador (BA)
Por Andréia Silvério, da Coordenação Nacional da CPT
Revisão: Comunicação / Cedoc
Foto: Divulgação / CNDH
Em audiência pública realizada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), no dia 05 de agosto de 2023, foram evidenciados os conflitos socioambientais, a vulnerabilidade em que vivem povos do campo, das águas e das florestas, e as violências contra eles praticadas no estado do Pará e na Amazônia. O órgão colegiado realizou diversas atividades durante o período dos Diálogos Amazônicos e a Cúpula da Amazônia, sendo unânimes as denúncias de violações de direitos humanos, violência policial e omissão estatal escutadas.
Uma denúncia em especial ganhou força a partir da audiência pública! O advogado popular e indígena Jorge Tembé relatou sua experiência no acompanhamento do conflito agrário entre povos indígenas Tembé, comunidades quilombolas, extrativistas e agricultoras e a empresa de exploração de óleo de palma Brasil BioFuels (BBF) na região do Acará. Diversas violações contra os direitos das comunidades se destacam nesse caso, especialmente a ausência de consulta prévia, livre e informada, inexistência de estudo de componente indígena e não realização do devido processo de licenciamento ambiental pelos órgãos ambientais competentes para instalação da monocultura de palma.
Além disso, as famílias das comunidades sofrem com as constantes ameaças de morte e prisão, criminalização, agressões, tentativas de assassinato e homicídios, praticados por seguranças privados prestadores de serviço para a empresa BBF, e até mesmo por agentes públicos do estado do Pará.
Já na sexta-feira, dia 04, fora amplamente divulgada a notícia de intensificação do conflito em razão de atos de violência praticados por seguranças da empresa MTS Segurança LTDA, contratada pela BBF. O jovem indígena Kauã Tembé de 19 anos, da Aldeia Kunawaru, havia sido baleado e encontra-se hospitalizado em Belém, buscando recuperar-se do disparo que atingiu seu órgão genital.
Advogados que acompanham o caso ressaltam a necessidade de investigar a atuação das forças policiais frente ao conflito, já que são constantes os relatos de que policiais militares dão suporte aos seguranças particulares da empresa BBF, além de agirem com abuso de autoridade, intimidando, ameaçando e prendendo ilegalmente indígenas na região.
Foto: Andréia Silvério
Três dias após a audiência pública citada acima, na última segunda-feira (07), representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos puderam presenciar o modus operandi da polícia militar local.
Na manhã do dia 07, uma comitiva do CNDH, acompanhada de organizações da sociedade civil local, nacional e internacional, órgãos públicos como o Ministério Público do Trabalho (MPT), e observadoras da Organização das Nações Unidas (ONU) se deslocou em missão, desde a capital, Belém, até o município de Tomé-Açú, a 265 km de distância. O objetivo foi ouvir e apurar as denúncias de violação de direitos humanos em decorrência de conflitos socioambientais e agrários na Mesorregião do Nordeste Paraense, especificamente nos municípios de Tomé-Açu e Acará, anteriormente apresentadas ao CNDH.
Contudo, além de ouvir as comunidades locais que aguardavam a comitiva, as organizações atuaram ativamente para evitar maiores consequências negativas decorrentes de ação criminosa e ilegal praticada por seguranças particulares armados, e pela própria polícia militar de Tomé-Açú.
No período de deslocamento entre Belém e o local agendado para reunião com as comunidades, no Distrito de Quatro Bocas, a comitiva recebeu a grave notícia que foram baleados outros três jovens, da Aldeia Pytawã e Aldeia Turé Mariquita, após manifestação realizada pelos indígenas na portaria de uma das fazendas da empresa BBF. Uma das vítimas, a jovem Elaine Tembé recebeu um tiro no pescoço e enfrenta um delicado processo de recuperação.
Para além do baleamento, já nas vésperas do início da reunião com as comunidades, a comitiva também foi surpreendida com a notícia de que o jovem Felipe Tembé, recentemente atingido por tiros, acabara de ser preso pela Polícia Militar. Ele foi uma das vítimas das tentativas de homicídio praticada pelos seguranças privados da BBF.
No destacamento da Polícia Militar, advogados populares e representantes do CNDH foram informados pelo Major Warner, que o jovem Felipe havia sido preso em flagrante pelo crime de dano ao patrimônio privado da empresa e transferido para a delegacia de Polícia Civil em Castanhal, município localizado a cerca de 200 km de Tomé-Açú, local de ocorrência do fato do qual Felipe era acusado.
A ilegalidade da prisão e o abuso de autoridade praticado pelo Major Warner geraram comoção entre as comunidades presentes, que passaram a se manifestar pacificamente na porta do destacamento da Polícia Militar, exigindo a soltura de Felipe e seu retorno imediato para Tomé-Açú. Em absoluto estado de revolta, os manifestantes mais uma vez enfatizaram serem vítimas de sucessivos atos de violência praticados pelas forças policiais militares locais.
Permeada por diversos momentos de tensão e risco de repressão armada por parte dos policiais contra os manifestantes, o ato se estendeu até as 17:00 horas, quando a comitiva foi informada de que o jovem Felipe Tembé havia sido libertado em Castanhal e logo retornaria em segurança para sua comunidade.
Histórico do conflito contra comunidades indígenas do Povo Tembé, quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e agricultoras do Vale do Acará.
Conflito socioambiental e agrário que ocorre na mesorregião do Nordeste paraense nos municípios de Tomé-Açu e Acará, em dois territórios de povos e comunidades tradicionais, sendo eles: 1) A Terra Indígena (TI) Turé Mariquita e 2) As comunidades quilombolas do Alto Acará e a de Nova Betel, violadas em decorrência das atividades de plantio de óleo de palma (dendê) realizada pela empresa Brasil Bio Fuels (BBF).
A Brasil BioFuels é uma empresa produtora de óleo de palma fundada em 2008 no Estado de Roraima, e que no ano de 2020 comprou a empresa BioPalma da Amazônia S/A, antes pertencente à mineradora Vale. A operação envolveu a venda da totalidade das ações da empresa, a qual possuía milhares de hectares de plantações dendê (dendezais) no Pará.
Segundo estudos científicos realizados por Damiani, 2017:
[...] No Nordeste paraense, a microrregião de Tomé-Açu foi alvo de políticas de estímulo à dendeicultura, concentrando as plantações desta oleaginosa no Estado que responde por 95% da área plantada no Brasil (CARVALHO et al., 2015). Nesta região, no município de Tomé-Açu, extensas plantações de grandes empresas nacionais e transnacionais chegaram às proximidades de três áreas indígenas da etnia Tembé – aldeia Urumateua, Terra Indígena Tembé e Terra Indígena Turé-Mariquita (DAMIANI, 2017, p 25).
[...] Na última década, assim como Tomé-Açu, outros 36 municípios da região Nordeste paraense foram foco de investimentos de uma dezena de empresas para a produção de dendê, no chamado Polo do Dendê (LAMEIRA, VIEIRA e TOLEDO, 2015). Políticas de estado criam as condições favoráveis para estimular a adoção de um modelo de desenvolvimento regional com foco nesta commodity no Nordeste paraense. Para Nahum e Santos (2017) foram criados “território-rede” do dendê, caracterizados por espaços territoriais cuja marca é a concentração e centralização de terras dominadas por esta monocultura em que vastas áreas isoladas se tornam pontos da rede que se forma em âmbito regional (DAMIANI, 2017, p. 35).
Os dendezais, comprados pela BBF em 2020, cobrem os dois lados da estrada de terra que leva aos territórios dos povos e comunidades tradicionais. As delimitações dos três territórios estão em disputa na Justiça. As famílias quilombolas aguardam há mais de 10 anos pela titulação das duas áreas. Já os Tembé requerem, desde 2016, a ampliação da terra indígena de 147 hectares, demarcada há 30 anos.
Enquanto as comunidades lutam pela regularização de seus territórios, a BBF assegura ser dona de fazendas sobrepostas às terras reivindicadas. Em meio ao caos fundiário, um clima de ameaças e violência se intensifica na região. “É a guerra do dendê”, afirmam os povos (REPORTER BRASIL, 2022).
Desde setembro de 2022, a tensão do conflito aumentou. Líderes indígenas e quilombolas sofreram ataques a tiros que culminaram no assassinato de um não-indígena e deixaram dois indígenas Turiwara e um não-indígena feridos no município do Acará, no Pará. As ações da empresa não se restringem a agressões físicas. Duas grandes valas foram abertas na estrada que liga a terra indígena e a reserva indígena Turé Mariquita II – área de 587 hectares criada em 1996 – ao quilombo Alto Acará AMARQUALTA, impedindo a circulação de mais de 700 famílias.
Além disso, a segurança armada e privativa da empresa se utiliza da violência e impede o direito de ir e vir dos quilombolas e indígenas no próprio território das comunidades. O estímulo à violência e ao crime ganha apoio de alguns políticos locais, como o deputado Delegado Caveira (PL). “Onde a justiça não alcança, a pólvora tem que alcançar”, afirmou este deputado em uma manifestação de trabalhadores da BBF em Belém, em abril, contra as ações dos indígenas e quilombolas (REPORTER BRASIL, 2022).
Os territórios indígenas e quilombolas estão estrangulados por esses empreendimentos nocivos à existência digna. Sem uma zona de amortecimento que deveria existir de pelo menos 10 km de distância entre os cultivos e a área das comunidades, sem licenciamento ambiental da atividade da BBF, resultando em graves impactos socioambientais que não foram avaliados em um estudo de impacto ambiental. Além disso, o empreendimento, toda a cadeia produtiva e os impactos ocorrem em total desconformidade com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), instrumento este que é recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88).
Os recorrentes crimes praticados contra povos do campo, das águas e das florestas no Pará e na Amazônia
O professor da Universidade Estadual do Pará, Aiala Couto, e os advogados da CPT no Pará, Raione Lima e José Batista Gonçalves Afonso, participaram da audiência pública realizada conjuntamente com o CNDH em Belém, e ressaltaram o contexto de violência e impunidade em que vivem essas populações.
Foto: Lilian Campelo / Assessoria de Comunicação da ALEPA
Segundo Batista, com base nos dados registrados pela CPT nos últimos 40 anos, é possível afirmar que o Pará é o estado com maior número de ameaças, mortes, chacinas e casos impunes do Brasil. Dentre os 1.536 casos registrados pela CPT entre 1985 a 2021, dos quais resultaram 2028 vítimas de assassinato, apenas 147 foram julgados. Isso significa que somente 9,57% dos casos foram a julgamento perante o Poder Judiciário (CPT, 2023). Destes assassinatos, 741 pessoas foram vitimadas no Pará, e 1.384 em todos os estados da Amazônia.
É importante também destacar o número de vítimas em massacres no campo [hiperlink para a página]. De todos os casos registrados pela CPT, ao menos 293 foram vítimas de massacres no estado do Pará, tal como em Eldorado dos Carajás, em 1996, e em Pau D’Arco, em 2017. Em ambos os casos policiais militares e civis foram identificados como responsáveis pelos homicídios.
Nessa mesma linha, destaca-se o caso de Corumbiara, em 1995, no estado de Rondônia, quando 8 sem-terras foram assassinados durante uma operação com cerca de 300 agentes da tropa de elite da polícia militar. Em 2020, o Judiciário reconheceu também a morte de um adolescente durante o ataque, enquanto morte presumida, já que não foi encontrado nenhum resto mortal.
Um outro caso, dessa vez mais recente, é o massacre que ocorreu no ano de 2020 contra comunidades ribeirinhas e indígenas na região do Rio Abacaxis, no estado do Amazonas. Ao todo, seis pessoas foram assassinadas também por policiais militares durante uma operação policial autorizada pelo governo estadual. Denota-se que tais comunidades da região do Rio Abacaxis ainda se encontram ameaçadas pelo conflito e por sua vez, na iminência de novos ataques.
Segundo o professor e pesquisador da Universidade do Estado do Pará, Aiala Couto, nos últimos anos, além das tradicionais violências praticadas contra esses povos, tem crescido as articulações do crime organizado na Amazônia, novo agente atuante na expropriação de terras públicas e exploração predatória dos recursos naturais. Esse movimento torna cada vez mais frequente a presença de facções criminosas nos territórios.
O contexto de violência e ameaças são a dura realidade enfrentada por lideranças em comunidades rurais, tradicionais e indígenas no estado. De acordo com a advogada da CPT, Raione Lima, existem 55 defensores incluídos no Programa Estadual de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Pará, enquanto outros 53 aguardam análise de seus pedidos de inclusão no Programa.
Ainda segundo Raione, que acompanha o Conselho Deliberativo do Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos no Pará (CONDEL/PPDDH), os órgãos responsáveis pela política pública não têm pensado em proteção coletiva dos territórios ameaçados, somente individual dos defensores. Isso é uma fragilidade, pois “o programa do jeito que está funcionando não está sendo eficaz na proteção de direitos humanos”.
A imensa maioria dos casos de pessoas defensoras de direitos humanos ameaçadas no Pará estão relacionados a conflitos socioambientais. O caos fundiário é agravado pela omissão do estado, especialmente dos órgãos fundiários. Problemas como grilagem, pistolagem, ameaças de morte e expulsões continuam sendo recorrentes. Outro elemento tem se mostrado um agravante em conflitos no campo no Pará: a emissão de licenças de operação pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Estado, para implantação de monocultivos em áreas vizinhas a territórios indígenas e tradicionais, sem respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e sem a devida fiscalização dos impactos ambientais decorrentes da atividade.
Esses fatos demonstram que é necessário dar um basta a essa realidade. “Não é aceitável que chefes de estado discutam um modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia, enquanto os verdadeiros guardiões da floresta continuem sendo massacrados impunimente em seus territórios. Essa foi a fala do Presidente do CNDH, André Carneiro Leão, durante reunião com os secretários Ualame Machado, da Secretaria de Segurança Pública e Jarbas Vasconcelos, da Secretaria de Direitos Humanos e Igualdade Racial, ambos do estado do Pará.
A reunião, que já havia sido agendada antes do agravamento do conflito agrário em Tomé-Açú, foi realizada no dia 08 de agosto e contou também com a presença de representantes de outros órgãos federais e estaduais, como parlamentares da Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA).
Uma das exigências feitas pelos representantes do CNDH durante a reunião, direcionada ao Secretário de Segurança Pública e ao Governador do estado, Hélder Barbalho, foi para que se determinem o afastamento imediato do Major Warner, responsável pela prisão ilegal do jovem Felipe no dia 07 de agosto.
Ao final das atividades em Belém, o CNDH emitiu a Recomendação 16, de 08 de agosto de 2023, referente à missão realizada na região do Acará, apontando como principal ação necessária e imediata, para por fim à situação de violência contra as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e extrativistas, a constituição de um gabinete de crise pela Secretaria Geral da Presidência da República, em coordenação com o Governo do Estado do Pará, participação do CNDH e órgãos do executivo, legislativo e judiciário, federal e estadual.
O papel desse gabinete de crise será tratar das questões urgentes como a segurança das comunidades ameaçadas, investigação dos crimes relacionados ao conflito e, de maneira especial, a resolução dos problemas fundiários relacionadas à área em disputa.
Belém, 10 de agosto de 2023.
Gustavo Serafim | Articulação Agro é Fogo
(Divulgação/Agro é Fogo)
O governo federal pode ter mudado, mas o agronegócio, que deu suporte ao bolsonarismo, continua o mesmo. Chega o período de estiagem e volta à tona uma ameaça que se intensificou sob a responsabilidade do ex-governo de Jair Bolsonaro e que deixou cicatrizes profundas: o uso criminoso do fogo como arma sistemática para expropriar territórios de trabalhadores e trabalhadoras do campo, de comunidades tradicionais e de povos originários.
Se hoje Bolsonaro está inelegível, o atual governo de Lula anuncia investimentos recordes no agronegócio: o novo Plano Safra veio junto a declarações do presidente de que o programa fará o agronegócio “perceber que não há nenhuma objeção a eles”. E complementou: “nunca tive problemas com o agronegócio. Governei oito anos e eles sabem tudo o que fizemos por eles”. O livre trânsito do setor no Estado e o apoio dado a ele de forma quase hegemônica significam a possibilidade de novas tragédias socioambientais. Como já apontado por pesquisadoras, pesquisadores e comunidades tradicionais no Dossiê Agro é Fogo, sem uma política governamental séria contra a predação socioambiental do agronegócio, não é possível conversar sobre democracia e direitos fundamentais para o campo e a cidade.
O ataque aos territórios continua, enquanto a política institucional tem se organizado para criminalizar a luta e impedir a garantia de direitos territoriais por meio da CPI do MST, de reformas ministeriais e da aprovação do Marco Temporal na Câmara dos Deputados. Episódios de terror se repetem: por exemplo, no acampamento Terra Prometida, em Theobroma (RO), que foi invadido por pistoleiros em maio de 2023, depois de já ter as casas incendiadas em 2022 durante uma tentativa de expulsão.
Se o uso do fogo como arma pelo agronegócio é uma prática histórica, no período em que Bolsonaro esteve no poder, de 2019 a 2022, ela ganhou um reforço: mais do que apenas sucatear órgãos importantes para os territórios e para a reforma agrária, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Estado os transformou em causadores e apoiadores diretos das violências cometidas pelos capitalistas do campo.
Para ajudar a compreender esse processo, este texto apresenta os dados de Conflitos no Campo [1] envolvendo o uso do fogo de 2019 até 2022, sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) por meio do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc – CPT) e analisados a partir das formulações da Articulação Agro é Fogo acerca da relação entre o agronegócio, as queimadas criminosas e os conflitos no campo.
Época de seca e o aval político que isenta o agronegócio
Foi em agosto do primeiro ano de Bolsonaro no poder que ocorreu o “Dia do Fogo”, quando diversos fazendeiros e grileiros, incentivados pelos discursos do presidente, atacaram de forma coordenada assentamentos e comunidades tradicionais, em especial o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Terra Nossa, em Novo Progresso (PA).
A Floresta Nacional do Jamanxim, em Novo Progresso, foi uma das áreas atingidas pelo ‘Dia do Fogo’, em 2019, quando o número de queimadas triplicou na região (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Esse marco não ocorreu neste mês à toa: entre 2019 e 2022, os meses de agosto totalizaram 152 ocorrências de conflitos envolvendo o fogo ou 26% de todas as violências registradas nesses quatro anos. Com algumas variações, o período entre julho e setembro é sempre o mais intenso, concentrando 64% dos conflitos envolvendo o fogo.
Os capitalistas do campo aproveitam a seca para incendiar os territórios quando o fogo se alastra mais facilmente. Assim, responsabilizam os próprios sujeitos das comunidades, ocultando as ações criminosas do agronegócio. O próprio Bolsonaro repetiu em discursos em 2020 – ano em que ocorreram as queimadas criminosas no Pantanal – que os culpados seriam indígenas, quilombolas e aliados, desresponsabilizando o agronegócio. Assim, é importante ficar alerta no período que agora se inicia e entender como o fogo é utilizado como arma.
Violências que afetam famílias
Entre 2019 e 2022, houve um crescimento de 90% no número de conflitos envolvendo o uso do fogo, com um total de 120.889 famílias [2] afetadas. Apesar de 2019 ser o ano em que a cobertura midiática foi maior, devido ao vazamento de conversas de fazendeiros planejando o Dia do Fogo, o ano com maior quantidade de famílias impactadas se deu em 2021, com 39.569 famílias afetadas pelas chamas. As queimadas criminosas chamaram muita atenção da população, mas o impacto na vida das comunidades ganhou pouca visibilidade.
A relação entre o uso do fogo e o aumento da intensidade das violências durante o governo Bolsonaro fica explícita quando verificamos que, dos 79 territórios em que houve assassinatos nos conflitos no campo, entre 2019 e 2022, 23 deles (29%) foram alvos de queimadas criminosas ou incêndios [3] em algum momento desse período.
Apesar do aumento contínuo no número de conflitos, o número de famílias atingidas manteve-se relativamente estável durante os quatro anos, com exceção do pico em 2021. Isso significa que pelo menos a mesma quantidade de famílias foi atacada por uma quantidade maior de incêndios ou queimadas criminosas causadas pelos capitalistas do campo. Ou seja, famílias de trabalhadores e trabalhadoras do campo, de comunidades tradicionais e de povos originários sofreram quase o dobro de violências: o conflito ficou pior e mais intenso.
Houve territórios que sequer tiveram trégua: pelo menos sete foram vítimas de conflitos envolvendo o fogo em todos os quatro anos de Governo Bolsonaro. Outras 17 comunidades enfrentaram 77 conflitos desse tipo, com pelo menos quatro ocorrências em cada uma. Estão aqui casos como o da Gleba Tauá (TO), em que grileiros utilizaram o fogo como arma pelo menos sete vezes, de forma associada a outras violências, como pistolagem, invasão e destruição de pertences.
Isso não significa que a situação é menos grave quando uma comunidade sofre apenas uma ocorrência de violência, pois as queimadas criminosas e os incêndios podem se alastrar por dias ou ter consequências que perduram, inclusive na saúde da população. Foi o que ocorreu na Terra Indígena Araribóia (MA), dos povos Guajajara, Awa Guajá e Awa livres, em 2015, onde os incêndios destruíram 45% da área, e na Terra Indígena Tadarimana (MT), do povo Bororo, em 2017, que teve 60% do território queimado. Ou quando pistoleiros invadiram os territórios e queimaram casas de uso coletivo, que são utilizadas por toda a comunidade e das quais a sua reprodução social depende, como na destruição de uma escola na Terra Indígena Xakriabá (MG), em 2021, e na queima de casas de farinha, com ameaças de morte e terror nas comunidades camponesas do Território Jaqueira (MA), em 2019, por empresas do agronegócio.
“A nossa floresta é tudo para nós, é nossa essência de vida. O ataque pra tirar a gente do nosso lugar é pra destruir nosso planeta, vai contra a vida. Eles querem acabar com o lugar da gente pra colocar capim e criar gado. A gente precisa reverter essa destruição no nosso lugar”, afirma um morador do Território Jaqueira que prefere não se identificar.
Queimada criminosa no Quilombo Cocalinho, Maranhão, 2020. (Foto: Leandro dos Santos)
Em todos esses casos, a reprodução da vida cotidiana desses sujeitos foi severamente prejudicada pelos incêndios, mesmo localizados em uma única ocorrência: ficaram sem seu espaço de produção coletiva, sem os locais de cuidado de suas crianças e sem a floresta, campos e savanas de que dependem seus modos de vida. A pressão pela sua expulsão tornou-se cada vez maior.
“Dentro de casa com a porta fechada, com os panos na porta, a gente se sentia sufocado, aquela falta de ar enorme. E esses aí duravam mais ou menos de quarenta minutos a uma hora até essa cinza passar. Aí de repente, abria, parava, a gente voltava a respirar um pouco melhor. Aí passou umas seis, sete vezes essa mesma situação: quando a gente menos esperava, saía um temporal e esse temporal vinha acompanhado disso, das cinzas. Tem muita gente aqui com problema respiratório, teve gente que desmaiou, eu mesma estou com problema, até hoje tenho uma coceira no corpo, outras pessoas também têm, não sei o que pode ser. E já a gente tem que fazer exames pra saber e teve gente que ficou ruim, várias pessoas desmaiaram devido à fumaça, à cinza”, conta, no artigo do Dossiê Agro é Fogo, dona Leonida Aires, da Comunidade Barra de São Lourenço (MS), sobre as queimadas criminosas no Pantanal.
Chuva de cinzas no Pantanal | Articulação Agro é Fogo
As diversas ocorrências indicam que os capitalistas do campo fazem uso do fogo como arma de diferentes maneiras. Em um primeiro caso, causam queimadas criminosas ou incêndios florestais nos limites dos territórios, retirando os vestígios de seus crimes. Em um segundo, não escondem seus jagunços e pistoleiros, e agem de forma ainda mais brutal, violenta e explícita, por meio de invasões, pistolagens, ameaças de expulsão e incêndios de roças, pertences, casas ou casas de reza. Em 52% dos casos de incêndios ou queimadas criminosas houve pelo menos mais uma outra violência registrada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Onde há uso criminoso do fogo, há um contexto ainda mais terrível de conflito.
Cerrado é o mais atingido
Entre os estados que mais tiveram famílias afetadas por incêndios no governo Bolsonaro, Mato Grosso se destaca com 33.717 famílias (28%), seguido de Pará, Acre, Mato Grosso do Sul e Roraima. Essa ordem se alterou ao longo desses quatro anos e esse pódio de horror também incluiu outras unidades da federação, como Tocantins, Maranhão, Acre e Bahia.
Entre os estados com mais ocorrências, o Mato Grosso continua o campeão, com 138 conflitos envolvendo o fogo, seguido de Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará e Tocantins. Juntos, eles somam mais da metade dos conflitos desse tipo.
Quando observamos a distribuição geográfica dos incêndios entre os conflitos, identificamos que nesse período essas violências predominaram no Cerrado, com 39% das ocorrências, seguido da Amazônia, com 28%. Todavia, se somarmos as áreas de Cerrado com suas zonas de transição, nelas estão quase 56% de todos os conflitos desse tipo.
O ano de 2022 merece destaque como o ano de maior concentração dessas violências no Cerrado e suas zonas de transição, com quase 64% dos conflitos envolvendo fogo. Essa incidência não é coincidência: é nessa região onde estão localizadas justamente algumas das principais fronteiras de expansão agrícola e, por conseguinte, de conflitos e de expropriação das comunidades de seus territórios.
Entre os grandes projetos administrativos de desenvolvimento, o MATOPIBA, que engloba o Maranhão, o Tocantins, o Piauí e a Bahia, localiza-se em áreas de Cerrado e transições. Os municípios que compõem essa região totalizam 24% de todos os conflitos por terra envolvendo fogo entre 2019 e 2022. O próprio Matopiba corresponde a 39% dessas violências no Cerrado.
Quem sofre e quem causa a violência?
Os sujeitos mais afetados pelos conflitos envolvendo fogo são os indígenas, com 39% das ocorrências, seguidos de posseiros e posseiras, assentados e assentadas, e sem-terras. Contudo, esse padrão não se manteve ao longo dos quatro anos de governo Bolsonaro. Em 2022, há um destaque importante para posseiros e posseiras como principais alvos de queimadas, em 30% dos conflitos. Boa parte desses casos se deve aos incêndios florestais que afetaram pelo menos 36 comunidades do Parque Estadual do Mirador, no Maranhão, onde as empresas que gerenciam a unidade de conservação fingem não existir sujeitos que tradicionalmente cuidam, protegem e trabalham naquele território.
Quando observamos os perpetradores dos conflitos, entre 2019 e 2022, 32% dos conflitos envolvendo fogo foram causados por fazendeiros, seguidos de grileiros (15%) e madeireiros (6%). Como, em muitos casos, as investigações não são levadas adiante, em 36% dos conflitos envolvendo o fogo não foi possível identificar os causadores.
Apesar disso, a totalidade dos dados permite compreender que as queimadas criminosas e os incêndios não são meros acidentes, como o discurso da mídia hegemônica tenta fazer parecer ao sugerir que bastaria tornar “sustentáveis” as queimadas, educando fazendeiros “bonzinhos” ou construindo brigadas privadas de combate às chamas. Simulam a ideia de que é necessário um esforço policlassista de combate ao fogo, como se os incêndios florestais ocorressem por um descuido comum de latifundiários e grandes empreendimentos, de um lado, e de comunidades tradicionais, indígenas e trabalhadores e trabalhadoras do campo, de outro.
No entanto, as classes distintas não são igualmente impactadas pelo fogo e se distinguem enquanto vítimas e causadoras. O que os dados da CPT alertam é que o uso criminoso do fogo é mais um dentre os tantos métodos pelos quais grileiros, fazendeiros, madeireiros e mineradoras tentam se apropriar dos territórios de vida – algo que a frieza dos dados de “focos de calor” quantificados em satélite não dá conta de nos mostrar.
Projeto de Desenvolvimento Sustentável – PDS Boa Esperança localizado no norte do Mato Grosso (2020). (Foto: Comissão Pastoral da Terra)
Ação e omissão do Estado na devastação socioambiental
Como aponta o Dossiê Agro é Fogo, o Estado tem grande parcela de responsabilidade quando se trata de devastação socioambiental. Apesar de os governos aparecerem apenas em sexto lugar entre os causadores, eles estão largamente presentes entre os apoiadores dos causadores dos conflitos, seja por meio de autorizações legais e administrativas, de inação, de discursos favoráveis ou de boicote ativo do Estado e dos órgãos ambientais, tão comuns ao governo Bolsonaro. Entre 2019 e 2022, o Estado apoiou 147 dessas violências, o que corresponde a 25% ou um quarto do total de conflitos.
Aqui são considerados atores diversos, como Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Fundação Nacional do Índio (Funai), Polícias Militares ou mesmo o próprio Governo Federal de forma direta. Nesse sentido, o principal apoio dado pelo Estado brasileiro foi aos fazendeiros, concentrando 67% dos casos, seguidos por grileiros, com 12%. A maioria dos apoios ocorreu em 2019 e 2020, nas queimadas criminosas atreladas ao Dia do Fogo, assim como nos incêndios no Pantanal e no Cerrado mato-grossenses.
Como exemplos deste suporte estão a escolta explícita de jagunços por Policiais Militares que queimaram pertences no Acampamento Marielle Franco (MA), durante uma ameaça de despejo solicitada pela Viena Siderúrgica; a falta de pessoal do Incra e do Ibama para fiscalizar e impedir a ação de grileiros em área de reserva ambiental do Assentamento 12 de Outubro (MT), até o envolvimento ativo da Funai em arrendamentos dentro da Terra Indígena Marãiwatsédé (MT), que incendiaram o território.
Como aponta o secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Luis Ventura Fernandez4, trata-se do Estado como agressor direto nos conflitos, mas também como retaguarda dos capitalistas do campo, conivente e regulador em favor da acumulação de terras e capital. Se essa situação sempre existiu, ela se acentuou como política de Estado no governo Bolsonaro, tomando a forma mais acabada nesses exemplos e em políticas como o Programa Titula Brasil, de titulação de lotes individuais em assentamentos, e o Projeto “Independência Indígena”, de avanço do agronegócio sobre terras indígenas, assim como na militarização e no desmonte de órgãos responsáveis pela reforma agrária, pela demarcação de territórios e pela proteção socioambiental.
Quando as queimadas criminosas atingem grandes proporções, logo as cenas de terror, vivenciadas pelas comunidades no campo, como as chuvas de cinzas sufocantes que atingiram a Comunidade Barra de São Lourenço (MS) no Pantanal em 2020, viram notícia na cidade, pois os céus são tomados por uma penumbra de fumaça que vem do Cerrado, do Pantanal ou da Amazônia. A política brasileira também sofre com uma penumbra que aterroriza e não foi derrubada com os ventos de um novo governo: o agronegócio.
Nos últimos anos, o agronegócio se apoderou ainda mais do Estado e continua tentando dobrá-lo a seu favor. Mais do que um simples corte de gastos em políticas socioambientais e de reforma agrária, e da flexibilização da legislação demarcatória, os órgãos de proteção socioambientais foram reformulados explicitamente para inviabilizar seus objetivos originais. Agora inelegível por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante o processo eleitoral, Bolsonaro se foi do poder, mas se o agro-hidro-minero-negócio, como projeto estatal, não for enfrentado, aquilo que o bolsonarismo representou tentará voltar. Enquanto o setor tiver apoio e poder, a estiagem continuará sendo aproveitada para queimar territórios inteiros, casas e roças de sustento das famílias em favor da acumulação de terras e de capital.
Gustavo Serafim é doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisador do Grupo de Pesquisa Democracia e Desigualdades (Demodê) e apoiador da Articulação Agro é Fogo. Pesquisa a relação entre Estado e movimentos sociais.
[1] Segundo o CEDOC – CPT, conflito consiste tanto nas violências causadas contra aqueles e aquelas que vivem do próprio trabalho no campo, bem como nas resistências desses sujeitos. Eles são divididos em três eixos principais, conflitos por Terra, Água e Trabalhista. Neste texto, focamos nas violências, em específico uma das 18 Violências Contra a Ocupação e a Posse registradas pela CPT no eixo Terra: os incêndios. Esses dados são distintos de outras bases de dados sobre incêndios disponíveis, como as do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), quem detectam focos de calor. Apesar de muito importantes, eles não nos permitem diferenciar o que são ataques armados às comunidades e trabalhadores (as) do campo em tentativas de expulsá-los de seus territórios daquilo que são o manejo tradicional do fogo, prática ancestral e agroecológica de plantio desses sujeitos. Tudo torna-se foco de calor, dificultando verificar a violência existente em torno dos incêndios criminosos.
[2] Segundo a metodologia do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno da Comissão Pastoral da Terra (CEDOC/CPT), vale destacar que, caso uma mesma comunidade sofra mais de um incêndio no ano, aquelas famílias são somadas quantas vezes essa violência específica ocorrer. Essa dado difere da quantidade de famílias envolvidas em conflitos, onde não há duplicação. Metodologicamente, isso é uma forma de dimensionar a intensidade das ocorrências de conflitos pelos tipos de violências que afetam os sujeitos do campo.
[3] Para diferenciar das queimadas naturais, comuns em especial no Cerrado, usamos os termos “incêndios” ou “incêndios florestais” para ressaltar o seu caráter criminoso. Optamos por “queimadas criminosas”, em especial quando se identifica o causador dos incêndios florestais. O termo “incêndio” é também usado para identificar as ocorrências de queima de pertences, roças, casas e outros elementos da vida comunitária, como escolas, casas de reza e de farinha.
Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil
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