Por Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH)
Legenda: Confronto entre a polícia e lideranças indígenas do povo Tembé no dia 07/08 em Tomé-Açu (PA) / Foto: APIB
O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) emitiu recomendação a órgãos do Poder Executivo federal, estadual e do Poder Judiciário, bem como a instituições financeiras públicas e privadas, para que adotem medidas de proteção, promoção e defesa dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, agricultores e agroextrativistas do estado do Pará.
O documento do CNDH menciona uma série de normativos e acordos nacionais, como a Constituição Federal e o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), e internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Aponta ainda conclusões baseadas na missão realizada pelo colegiado nacional a Acará e Tomé-Açu, no Pará, no dia 7 de agosto de 2023, região de intenso conflito entre comunidades e o grupo empresarial BBF (Brasil BioFuels), onde foram relatadas inúmeras denúncias de violações dos direitos humanos, com destaque paras as áreas da segurança pública e proteção a defensoras/es de direitos humanos e meio ambiente.
O conselho considera que as áreas de cultivo das empresas exploradoras do óleo de palma contribuem para a poluição e pulverização de agrotóxicos, estimulando ainda a construção de mineroduto que restringe atividades de pesca e agricultura de indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Para o CNDH, o caos fundiário existente no Pará ainda favorece a ação criminosa dos grileiros e as violações de direitos humanos e da natureza.
Dessa forma, o colegiado recomenda à Presidência da República que adote todas as providências necessárias para a ratificação do Acordo de Escazú (Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe). Já à Secretaria Geral da Presidência da República, o CNDH recomenda que constitua, imediatamente, gabinete de crise, em coordenação com o Governo do Pará, com participação do CNDH e de uma série de atores listados.
O conselho faz ainda recomendações a ministérios do Poder Executivo Federal, como o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania; da Justiça e Segurança Pública; do Planejamento e Orçamento; da Igualdade Racial; dos Povos Indígenas; do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar; e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Também são destinatários das recomendações órgãos da Justiça, como o Ministério Público do Trabalho; o Ministério Público do Estado do Pará; Tribunal de Justiça do Estado do Pará; e os Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público.
Ao Governo do Pará, o CNDH elenca uma série de recomendações, como a integração do gabinete de crise coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República; a realização imediata da troca das forças policiais que comandam a segurança em Tomé-Açu e Acará para resgatar o diálogo entre Polícia Militar, Polícia Civil e povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, agricultores e agroextrativistas do estado; e a capacitação contínua de profissionais das forças de segurança pública para o respeito aos direitos humanos; entre outras.
O CNDH recomenda ao grupo empresarial BBF - Brasil BioFuels que apresente, no prazo de 15 dias, plano de trabalho de conformação de sua conduta com os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, bem como à Resolução nº 5, de 12 de março de 2020, do CNDH, que dispõe sobre Diretrizes Nacionais para uma Política Pública sobre Direitos Humanos e Empresas. O grupo deve ainda criar em sua estrutura organizacional mecanismos de compliance socioambiental, indicando pessoa qualificada para mediação de conflitos com povos indígenas; cessar imediatamente o uso indiscriminado de armas letais por suas forças de segurança privada e que, diante dos casos de tentativa de homicídio verificadas recentemente, inclusive com a prisão de um de seus agentes de segurança, promova a troca imediata do seu gestor de segurança e da empresa de segurança privada contratada.
Por fim, o CNDH recomenda a bancos públicos e privados que instaurem processo administrativo de apuração de violações contratuais e suspendam todos os financiamentos ou empréstimos realizados ao grupo BBF em razão de provável violação dos Princípios do Equador, quanto às práticas socioambientais, e violação aos direitos humanos e territoriais os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, agricultores e agroextrativistas nos municípios do Acará e Tomé-Açu.
Leia a Recomendação CNDH nº 16/2023: https://www.gov.br/participamaisbrasil/recomendacao-cndh-n16-2023
Por Carlos Henrique Silva / Comunicação CPT Nacional, com informações da CPT Rondônia
Foto: Adilson Alves Machado / CPT-RO
Os danos da violência no campo não se restringem aos atos e ameaças, ou às frias estatísticas das vítimas fatais. Pessoas que sobrevivem após testemunharem ou serem vítimas de torturas (e isto inclui familiares, pessoas amigas e companheiras de luta), carregam consigo consequências psicológicas difíceis de superar, semelhantes às vivenciadas durante as guerras ou ditaduras.
Um exemplo desta situação acontece na região de Corumbiara (RO), cenário de um massacre ocorrido em 09 de agosto de 1995, quando 8 sem-terra, incluindo uma criança, foram mortos durante a madrugada, em uma investida de cerca de 300 pistoleiros e policiais contra um acampamento na ocupação da Fazenda Santa Elina, com bombas e tiroteio por cerca de quatro horas. No confronto, dois policiais morreram diante da reação dos trabalhadores, pegos de surpresa enquanto dormiam. Do lado dos sem-terra, além dos 8 mortos, foram 20 trabalhadores desaparecidos, 350 gravemente feridos e 200 presos.
Mesmo tendo se passado 28 anos do crime, a realidade mostra a necessidade de políticas públicas não apenas de reparação dos bens perdidos, mas também recuperação da dignidade e da humanidade das vítimas. Neste sentido, a CPT Rondônia, junto com outras organizações e sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais (STTRs) dos municípios de Vilhena, Chupinguaia e Corumbiara, estiveram presentes no último sábado (05) no Assentamento Zé Bentão, um dos que foram criados na área onde aconteceu o massacre.
O encontro, organizado pelo Conselho Regional de Psicologia Rondônia/Acre (CRP 24a Região), debateu o tema da Psicologia Social no campo, apresentando o lançamento das Referências Técnicas de Atuação do Psicólogo e Psicóloga em Questões Relativas à Terra. O momento também foi de escuta das principais necessidades de agricultores e agricultoras familiares em relação ao atendimento psicológico no campo. Independente da ocasião, a política de saúde mental é um grande lacuna e demanda das comunidades camponesas.
Órfãos, familiares e demais pessoas envolvidas ainda continuam muito abaladas, como é o caso de Genadir Ribeiro, conselheiro da CPT que vivenciou o massacre e continua em Corumbiara. Além de dois irmãos que vivenciaram o massacre, um irmão que era vereador na época, foi morto quatro meses depois, como desdobramento do caso, por dar apoio às vítimas.
De acordo com Anne Cleyanne, Técnica de Referência em Políticas Públicas do CRP24 e idealizadora do evento, o sentimento ainda é de injustiça: “Fizemos um trabalho de acolhimento, de ressignificação, e percebemos que dói para estas famílias ver o local onde aconteceu todo o fato estar abandonado, como se todos os que perderam a vida ali estivessem esquecidos.”
Como medida mais imediata, o Conselho articulou com a prefeitura a transformação do local em um memorial, com fundação prevista para o próximo dia 22 de agosto. Uma placa de homenagem, personalizada de acordo com a escolha dos moradores, também está sendo produzida para a ocasião.
Um fato que retrata esta situação é o assassinato do agricultor Odair Ferreira Dornelas, de 52 anos, ocorrido no dia 17 de junho em seu sítio, no Assentamento Zé Bentão. “Odair era um dos sobreviventes do massacre de Corumbiara, e mesmo com o crime a ser esclarecido não tendo ligação direta com conflitos no campo, parece ser consequência das sequelas psicológicas depois de ter sido torturado no massacre”, afirma Josep Iborra Plans, agente da CPT/RO e membro da Equipe de Articulação das CPTs da Amazônia.
As situações enfrentadas por Odair e outras pessoas torturadas nesse episódio são tão desumanas e catastróficas, que não é possível mencioná-las. Vizinhos e conhecidos informam a realidade de pessoas que se tornaram alcoólatras, de difícil convivência social, causadoras de confusões e ameaças contra desafetos na comunidade.
“As investigações caminham na confirmação da hipótese de que os que se sentiram ameaçados podem ter se adiantado a matar quem os ameaçava. Em todo caso, considerar a morte como consequência das torturas sofridas durante o massacre de Corumbiara em 1995 abre espaço a reconsiderar o registro como assassinato em consequência de conflito no campo”, reforça Josep.
Foto: Adilson Alves Machado / CPT-RO
O massacre e o julgamento – Além do relato já mencionado acima, a perícia apontou casos de execução entre os mortos e de espancamento entre os sobreviventes. Relatos apontam que mesmo após dominados, os acampados foram arrastados, pisoteados, enfileirados e chutados, além de receberem tiros na orelha e em várias partes do corpo. Até o final da década, foram intensas as mobilizações pelo julgamento e para que o massacre de Corumbiara não fosse esquecido. No julgamento acontecido em 2000, saíram condenados os posseiros Cícero Pereira Leite Neto (seis anos e dois meses de reclusão) e Claudemir Gilberto Ramos (oito anos e meio). Entre os PMs, foram sentenciados os soldados Airton Ramos de Morais, a 18 anos, e Daniel da Silva Furtado, a 16 anos, e o então capitão Vitório Régis Mena Mendes, a 19 anos e meio.
Conflitos que permanecem – O estado de Rondônia continua sendo marcado por conflitos, principalmente com as denúncias de grilagem e a radicalização de movimentos locais de luta por terra. Neste ano, já houve mais três mortes no acampamento da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) Thiago Campin dos Santos, localizado em Nova Mutum, distrito de Porto Velho, além de outra liderança da LCP assassinada no distrito de São Lourenço de Vilhena. Com isto, já somam 13 mortes de camponeses ou de seus aliados do acampamento, em retaliação pela morte de dois policiais em 2020. “A maioria destas mortes foram em supostos confrontos com a polícia, e nenhuma delas tem sido investigada ou punida”, destaca Josep Plans.
Aproximadamente 2000 camponeses caminham 40km por condições dignas para trabalhar e viver no campo
Por Lara Tapety | CPT Alagoas
Fotos: FNL, MST e CPT
Com o objetivo de pautar o avanço nas políticas públicas para a agricultura familiar camponesa, as organizações e movimentos sociais do campo de Alagoas estão realizando juntas a Marcha Estadual em Defesa da Democracia e da Reforma Agrária, que saiu de Messias nesta segunda-feira, 07, e segue para Maceió, capital alagoana. Aproximadamente 2000 camponesas e camponesas estão na caminhada de 40km.
A marcha tem paradas e um conjunto de atividades pelas cidades que passa, com intuito de dialogar com a população sobre a importância da agricultura familiar camponesa e a urgência da reforma agrária para o desenvolvimento do estado e do país, especialmente, para o combate à fome e para a geração de renda.
“É fundamental que a luta dos camponeses e camponesas seja abraçada também por quem vive nas pequenas e médias cidades. Queremos debater com a sociedade o papel da agricultura familiar e camponesa para o desenvolvimento do nosso estado e do nosso país”, apontou Carlos Lima, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
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A ação pretende, ainda, retomar agendas e negociações com os governos estadual e federal, na perspectiva de pautar o desenvolvimento dos assentamentos rurais, além do prosseguimento na negociação das áreas onde hoje famílias Sem Terra vivem acampadas.
De acordo com as organizações, existe uma grande dificuldade de escoar a produção de alimentos das comunidades, por exemplo, por falta de estradas e de apoio para a realização de feiras livres. Já em relação aos acampamentos, algumas áreas emblemáticas foram prometidas pelo governo estadual para fins de reforma agrária há muitos. Esse é o caso das terras da massa falida do grupo João Lyra, ocupadas há 14 anos. Mesmo após um acordo feito entre o Estado e a Justiça, em 2016, as famílias camponesas ainda aguardam um desfecho positivo do caso das usinas Guaxuma e Laginha.
“Teremos dias de caminhada atravessando parte do estado com nossas bandeiras, palavras de ordem e reivindicações na intenção de chegar em Maceió com a força coletiva dos camponeses e camponesas que cotidianamente se organizam nos mais diversos acampamentos e assentamentos pelo estado, produzindo alimentos saudáveis, construindo solidariedade e resistindo na defesa do desenvolvimento do nosso estado”, falou Débora Nunes, da coordenação nacional do MST.
A mobilização, que continua até amanhã, 08, é um iniciativa conjunta da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Frente Nacional de Luta (FNL), do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL), do Movimento de Luta pela Terra (MLT) e do Terra Livre.
Lideranças indígenas do povo Tembé são baleadas na manhã de hoje, 07/08, durante preparativos para recebimento da visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos, em Tomé-Açu/PA. Segundo relatos, três lideranças foram baleadas por seguranças privados da empresa Brasil Bio Fulls – BBF, sendo duas mulheres e um homem. Uma das vítimas afirma em áudio que pegou dois tiros, sendo um no ombro e outro na coxa.
Em razão de estar filmando a ação, Daiane Tembé foi o principal alvo, atingida no pescoço e no maxilar. Neste momento está sendo levada para Belém/PA por meio da UTI aérea. Todos os demais estão recebendo atendimento médico. Ainda há dois indígenas desaparecidos.
Este é mais um dos atentados cometidos contra o povo Tembé, que denuncia a violação de direitos humanos e a falta de consulta prévia, livre e informada no empreendimento de plantação de dendê da BBF. Durante a abertura dos Diálogos Amazônicos, na última sexta-feira, 04/08, Kauã Tembé, 19 anos, também foi baleado e o principal suspeito da ação é um segurança da empresa.
A cerca 200km de Belém/PA, sede do epicentro global de debates sobre mudanças climáticas e alternativas para a proteção de povos e comunidades tradicionais na Amazônia — e que nos dias 08 e 09 de agosto é palco da Cúpula da Amazônia, que reunirá os presidenciáveis e autoridades da Panamazônia —, Tome-Açú testemunhou, em menos de uma semana, atentados contra quatro lideranças indígenas, que foram alvejadas com tiros e sangram na luta pela defesa de seus territórios.
Então, nesse momento, fica o questionamento: quantos indígenas precisam ser baleados ou morrer para chamar a atenção dos órgãos públicos para a responsabilização dos culpados pelos atentados e para garantir a proteção das comunidades indígenas do Alto Acará.
Diante da gravidade da situação e destes recorrentes ataques, exigimos que sejam tomadas providências urgentes no sentido de investigar e apurar rigorosamente estes crimes, com a devida responsabilização dos culpados. Também, exigimos que o governo estadual e federal adote as providências para a solução do conflito territorial existente, garantindo e resguardando os direitos das comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. É necessária a intervenção da Polícia Federal.
Tomé Açu/PA, 07 de agosto de 2023.
Associação Indígena Tembé de Tomé-Açu – AITVA Associação Indígena Tembé de Tomé-Açu – AITTA Associação Indígena Turiwara do Braço Grande – AITBG Comissão Pastoral da Terra - CPT
Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos - SDDH Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra - MST Movimento dos Atingidos Por Barragens - MAB
Comissão de Direitos humanos da OAB/PA Coletivo de Direitos Humanos na Amazônia Maparajuba
Instituto Zé Claudio e Maria - IZM Comitê Dorothy
Rede Liberdade Instituto Dom Azcona
Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos
Cimi Regional norte 2
Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais – WRM
Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará – MALUNGU
Gesterra (Grupo de estudo sociedade, território e resistência na Amazônia)/Icsa/UFPA (Marcel Hazeu e Solange Gayoso)
A atividade reuniu agentes da CPT e assentados da reforma agrária de sete estados que integram o Cerrado
Por Júlia Barbosa | CPT Nacional
Foto: Júlia Barbosa | CPT Nacional
O I Encontro dos Assentados e Assentadas do Cerrado debateu pautas importantes relacionadas à Reforma Agrária, sobre suas potencialidades e desafios para garantia do direito pleno, não apenas para o acesso à terra, mas especialmente para a permanência na mesma. O encontro aconteceu no Centro Pastoral Dom Fernando, em Goiânia, nos dias 28 e 29 de julho, e reuniu cerca de 40 pessoas, entre agentes e assentados, de sete estados brasileiros que fazem parte do Cerrado: Goiás, Minas Gerais, Roraima, Maranhão, Piauí, Tocantins e Mato Grosso do Sul.
Uma rodada de apresentações iniciou o Encontro, debaixo de uma árvore mangueira, e deu sequência a uma mística que motivou o grupo a refletir palavras que representassem a luta pela terra, desde as ocupações e os acampamentos até os sonhados assentamentos da Reforma Agrária. No momento, os assentados e as assentadas expressaram palavras como resistência, união, partilha, rebeldia, sonho e vitória, mas também foram lembradas as dificuldades e as violências sofridas em todo esse processo.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
O Incra e a Reforma Agrária no Brasil
Após o momento de acolhida, teve início uma mesa de análise de conjuntura sobre o contexto da Reforma Agrária no Brasil atual, que contou com a presença de Marcelo Gosch, Perito Federal Agrário e Superintendente substituto do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA/GO). Gosch apresentou dados sobre a reforma agrária no país, ressaltando que o Brasil é um dos países que mais concentra terra do mundo, sendo o 5° país com maior concentração fundiária da América Latina, seguindo a medição pelo índice de Gini da distribuição da posse da terra.
Além disso, o Superintendente afirmou que a realidade ainda é atual no Brasil, que continua colocando o agronegócio como o maior beneficiário dos programas de incentivos federais, como o Plano Safra, que se mantém desigual em relação à agricultura familiar, que continua renegada. “Se não houver organização social para cobrar do Incra e do Governo Federal, as coisas não vão acontecer. Se as famílias conseguem acesso aos créditos, ao fomento e às políticas públicas, elas levantam a cabeça e a coisa segue, mas se isso não acontece, as pessoas vendem, vão embora, abandonam. Por isso, a organização social também é muito importante", considerou Gosch.
Dificuldades enfrentadas pelo Incra também foram apontadas por Gosch como um dos desafios a serem superados para a garantia dos direitos e viabilidade do trabalho da instituição junto às comunidades: "A gente precisa da estruturação do Incra para isso também, porque se não tiver estrutura, recurso e tudo mais, a gente não consegue fazer com que as políticas públicas cheguem até as comunidades. Não tem como a gente avançar sem a parceria das comunidades, dos movimentos e organizações sociais”, afirmou.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
Realidade dos assentamentos no Cerrado
Após uma fila do povo, em que os assentados e assentadas puderam fazer apontamentos e perguntas ao Superintendente Gosch, deu-se início a exposição dos dados de duas pesquisas. A primeira, com foco em Goiás e Mato Grosso do Sul, foi coordenada por agentes da CPT da Grande Região Centro Oeste. Já a segunda pesquisa apresentou um panorama geral sobre os 56 assentamentos acompanhados pela CPT no Cerrado, e contou com a contribuição de professores do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG) e da estagiária Melyssa Silva (IESA/Labotter).
A pesquisadora e agente da CPT Valéria Santos e o agente da CPT e agricultor familiar Gerailton Ferreira detalharam informações levantadas pelas pesquisas. De acordo com o levantamento, nas áreas de Cerrado, somam-se 2.984 assentamentos, totalizando quase 14 milhões de hectares de terras destinadas a cerca de 299.848 famílias. As pesquisas buscaram entender questões relacionadas à titulação dos assentamentos, dificuldades enfrentadas, produção e comercialização, acesso a políticas públicas e impactos da utilização de agrotóxicos.
Partindo dos resultados apresentados, bem como das considerações do perito agrário Gosch, os assentados e assentadas apontaram os desafios percebidos no dia a dia ds assentamentos rurais, além de suas perspectivas e inquietações. Entre as dificuldades mencionadas, a falta de políticas públicas, a ausência de fiscalização e o abandono governamental foram as com mais evidência. Em relação às expectativas, o grupo pautou o enfrentamento ao agronegócio, regularização dos acampamentos e retorno aos trabalhos de base.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
"A gente vê tanta gente que morreu procurando direito nosso e nós não podemos ir atrás também? A gente não pode só esperar alguém fazer algo pela gente, nós precisamos ir também. Não é do jeito que eles estão pensando, às vezes também não é do meu jeito, mas a gente junta e vamos chegar a um denominador comum e que a gente possa melhorar a comunidade”, afirmou Alice Álvares, assentada da reforma agrária no Assentamento Teijin, Mato Grosso do Sul.
Ao final do primeiro dia, uma mística apresentada pela agente da CPT Simone Oliveira ilustrou os desafios e as potencialidades da preservação do Cerrado, seguida de um momento de trocas de sementes, que foram trazidas pelos próprios agricultores e agricultoras diretamente de seus assentamentos.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
Perspectivas para a Reforma Agrária
O segundo dia do Encontro se pautou mais profundamente sobre as potencialidades, as perspectivas de lutas e as oportunidades para a reforma agrária no contexto do atual governo. Nesse sentido, o coordenador executivo nacional da CPT Carlos Lima ressaltou a luta pela conquista da terra: “A constituição brasileira era uma oportunidade de fazer reforma agrária e não foi feita. Nós não ganhamos terra, nós conquistamos terra. Muitos companheiros e companheiras tombaram nessa luta, então nós somos lutadores por terra”, destacou.
Em seguida, o agente da CPT no Mato Grosso do Sul Valdevino Santiago evidenciou a importância da união dos trabalhadores não só até a conquista da terra, mas também após o assentamento das famílias, para a continuidade das lutas: “Hoje, nós vamos falar de nós pra nós mesmos, para a gente sentir e refletir qual é o nosso papel enquanto trabalhadores assentados. Ontem, a gente falava que quando estávamos acampados a gente era mais unido, era mais fácil construir as coisas e depois que conquistamos o assentamento nos tornamos individualistas”, afirmou.
Valdevino também ressaltou a luta pelo bem viver no contexto da reforma agrária. Segundo ele, há dois projetos em conflito: o da terra para o bem viver e o da terra para negócios. “Existe a terra de viver e a terra de produção – Não é só ter a terra para produzir, mas a terra para viver bem, para viver em comunidade. A CPT reflete, sistematiza e reforça o que é para nós o bem viver. Então, nós temos que ter isso como argumento, bem viver pela qualidade de vida nos assentamentos”, enfatizou.
Foto: Júlia Barbosa | CPT Nacional
Na fila do povo, agentes, assentados e assentadas levantaram questões importantes para a reflexão coletiva, como a participação em espaços políticos estratégicos, o retorno ao trabalho de base e o fortalecimento de associações nos assentamentos. Nesse sentido, Valéria Santos pontuou sobre a necessidade de diálogos e entendimento concreto por parte dos trabalhadores e trabalhadoras a respeito de um projeto político popular, com participação nas discussões das políticas públicas para os assentamentos, não só nos micros-espaços.
Na dinâmica de grupos, os assentados e assentadas discutiram e apresentaram suas expectativas e demandas, que permearam pela defesa da Reforma Agrária Popular, na luta não só pela terra, mas por condições de vida digna, com garantia de saúde, educação, infraestrutura, lazer e políticas públicas aos assentamentos, com a criação de possibilidades para a permanência na terra.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
O Encontro se encerrou com cantos populares e abraços compartilhados, no esperançar da luta e na certeza da força política e mobilizadora do povo para conquista dos direitos plenos e do bem viver.
Fotos Júlia Barbosa | CPT Nacional
Sob o tema “Haverá Justiça e Reparação? ”, evento reuniu autoridades e representações da sociedade civil organizada, em busca de respostas para andamento do caso
Por Steffanie Schmidt, colaboradora da Ascom - Cimi Regional Norte I
Edição: Carlos Henrique Silva - Comunicação CPT Nacional
Foto: Steffanie Schmidt, colaboradora da Ascom - Cimi Regional Norte I
A mobilização da sociedade civil pela apuração do caso que ficou conhecido como Massacre do Rio Abacaxis, no Amazonas, trouxe para o debate público a cobrança sobre o andamento do procedimento de denúncia dos envolvidos, ante à constatação do inquérito da Policia Federal (PF) da existência de provas e indícios do envolvimento de agentes públicos de segurança no crime.
O evento organizado pelo laboratório Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia – espaço vinculado ao Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), aconteceu entre os dias 02 e 04 de agosto (quarta e sexta-feira), no auditório Rio Solimões, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS), com a memória do caso e atualização sobre o andamento dos procedimentos investigatórios.
Uma série de torturas, ameaças e violações aos direitos humanos foram cometidas por policiais militares entre os meses de agosto e setembro de 2020, sob o pretexto de combate ao tráfico de drogas e à quadrilha que supostamente aterrorizava a comunidade. No entanto, conforme relato da população e parentes das vítimas, a ação policial incluiu prisões ilegais, tortura, humilhações, ameaças, entre outras práticas que denotam a intenção de vingança pela proibição feita pelos comunitários ao ex-secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa, de adentrar a Terra Indígena (TI) Kwatá Laranjal para a prática de pesca esportiva.
Ele esteve no local no dia 24 de julho de 2020, a bordo da embarcação Arafat e alega ter sido atingido por um disparo, fato que nunca foi comprovado. Dois dias depois, quatro policiais militares à paisana, à bordo do mesmo, adentram o local, o que provocou confronto e dois policiais morreram, desencadeando a operação por parte do Governo do Amazonas.
A sucessão de acontecimentos que levou à execução de seis pessoas e deixou duas desaparecidas nas comunidades que vivem ao longo do rio Abacaxis e Mari-Mari, nos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba (distante 135 km de Manaus), em agosto de 2020, deixa clara a violação de direitos humanos cometida por agentes a serviço do Estado.
“Utilizar a estrutura pública para atender interesses pessoais é uma prática que percebemos na Amazônia em geral, seja na omissão ou em ações efetivas. Aliado a esse contexto, temos órgãos públicos federais sucateados e sem estrutura para cumprir sua missão. O caso da morte de Bruno e Dom, no Vale do Javari, demonstrou isso. A Comissão Pastoral da Terra lançou o relatório que apontou o aumento de conflitos no campo e, tudo isso, em um contexto de Amazônia que tem a maioria dos deputados a favor do garimpo. É um grande desafio somar forças para seguir denunciando”, afirmou o ex-deputado José Ricardo, que também participou da mesa de abertura. Na ocasião do mandato, integrou o trabalho de apuração do caso, no âmbito do coletivo.
No último dia 28 de abril, o ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas, coronel Louismar Bonates, e o coronel da Polícia Militar Airton Norte, foram indiciados pela Policia Federal. Ao todo, cerca de 130 policiais, entre civis e militares, suspeitos de participar das ações, são investigados. Antes disso, seis delegados chegaram a passar pelo caso, sem um resultado concreto.
“A PF fez o indiciamento de duas pessoas, ou seja, existem provas e indícios para acusar. O MPF se encontra em demora para apresentar a acusação e houve troca de procurador do caso. Que se possa levar isso adiante”, afirmou Paulo Barausse, padre jesuíta e membro do coletivo que participou das escutas junto à comunidade, na época do massacre.
Depois de três anos, o caso encontra-se na 2ª vara criminal da Justiça Federal à espera de denúncia. Na Procuradoria do 9ª ofício, responsável pela parte Criminal, Controle Externo da Atividade Policial, além de Custos Legis Tributário e Custos Legis Previdenciário, o caso está sem procurador responsável. Ainda não há denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF).
A falta de identificação e responsabilização dos envolvidos nos crimes tem sido um fator de influência na saúde coletiva vivenciada pelas comunidades.
O secretário nacional do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Dione Torquato, membro do coletivo, lembrou que conflitos já aconteciam na região desde 2014 e que a situação era de conhecimento do Governo do Estado. Já havia, inclusive, denúncia no âmbito do MPF.
“O Governo do Amazonas autorizou esse massacre; o próprio governador, e hoje temos sofrido as consequências da irresponsabilidade dele. Quantas autoridades, juízes e delegados já passaram por esse caso? Quem teve a coragem e competência para dizer que o Governo é culpado? Nós sabemos que ele é culpado”. Um misto de dor, indignação e esperança marcou o segundo dia do ciclo de debates sobre Massacre do Rio Abacaxis, que trouxe representantes das comunidades ribeirinhas e indígenas dos rios Mari-Mari e Abacaxis, de Nova Olinda do Norte, para relatar as violações que vêm sofrendo desde a chacina, ocorrida entre os dias 03 e 09 de agosto de 2020.
Mesmo sob ameaças e correndo risco de morte, as vítimas cobram justiça em relação aos envolvidos. No dia em que se completa três anos do massacre, tristeza, desabafo, choro e também coragem estiveram presentes nos relatos de quem vivencia as consequências de crimes como abuso de autoridade, coação, agressões verbais e física, tortura e descaso.
A perda da liberdade de circulação na região, além da invasão maciça de todo o tipo de exploração ilegal como madeireiros, garimpeiros, caçadores, pescadores e grileiros de terras, que foi intensificada após o massacre, foi unânime nas falas das sete pessoas que compuseram a mesa.
As vítimas relataram assistirem, desde 2021, a crescente invasão do território com embarcações carregando todo o tipo de riqueza da floresta, incluindo caça e pesca. “O rio ficou pior do que já era, ficou sendo saqueado sem que ninguém pudesse falar nada”, explicou a liderança. Eles cobram a construção de uma base de segurança da Polícia Federal no local, que chegou a ser prometida à época.
“Não estamos aqui para pedir indenização. Só queremos Justiça. Queremos que as pessoas que torturaram, que mataram, que estavam nesse movimento, sejam punidas. Perdemos nossas vidas, paz, liberdade e autonomia. Não matamos ninguém. Não roubamos ninguém. Não fizemos nada disso, mas estamos pagando”, afirmou uma liderança indígena do povo Maraguá.
“Nossos parentes pagaram por uma coisa que não tinham nada a ver. Foram mortos como se fossem um animal. Amanheceu o dia, e encontramos só o corpo, a cabeça estava toda estraçalhada. Na nossa área, do rio Mari-Mari tem uma placa, da demarcação, conseguimos com muita luta, há 20 anos. Agora estamos pedindo por socorro enquanto somos massacrados”, afirmou outra liderança indígena, do povo Munduruku.
“A lancha entrou no rio errado, eles alegam. Mas eles não estavam com um mapa ou um GPS? Do lado do governo parece que está tudo tranquilo. Às vezes dá vontade de desistir, mas peço ajuda de Deus e força pra lutar: se for para morrer, que eu morra vendo a justiça ser feita”, completou o indígena Munduruku.
Em meio a lágrimas e soluços, uma representante das vítimas silenciou o auditório, diante dos questionamentos: “Será que essas pessoas são dignas de usar essa farda? Será que elas têm esse direito? Esperávamos a chegada do nosso parente em casa e até hoje ele não apareceu. O que fizeram? Onde ele está? Também é um ser humano. Peço por Justiça, peço a Deus que me mostre onde ele está, o que aconteceu. Deus deu a vida e a liberdade a todos. Temos um advogado muito grande acima de nós, Deus. Uma hora vai sair a resposta”, relatou, emocionada. “Para nós, não é dinheiro não. Queria vê-lo de novo. É muito revoltante, triste o que aconteceu”, completou.
O evento organizado pelo laboratório Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia – espaço vinculado ao Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), iniciou nesta quarta-feira (2), no auditório Rio Solimões, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS).
Ao final, um jovem Maraguá, filho de liderança, pediu por oportunidades para os jovens da região que acabam sendo aliciados pelo tráfico de drogas e demais atividades criminosas. “Agora que a região passou a ser uma ‘novidade’, que ‘descobriram’ que existem pessoas, indígenas, venho pedir como um jovem: a gente quer é oportunidade. Como morador de lá, já passei por perdas para traficantes. O que tiverem de encontros, de oportunidades de aprendizados, nós queremos. Sinto esse prazer de lutar pelo meu povo, quero aproveitar para ter mais conhecimento”, afirmou.
As vítimas denunciaram ainda o clima de tensão e preconceito vivenciado na cidade por parte do poder público municipal que acaba contaminando a população local. Em Nova Olinda do Norte foi retirada a disciplina de língua indígena nas escolas.
O procurador da República no Amazonas, Fernando Merloto, responsável pelo 5º ofício do MPF, relacionado a populações indígenas e comunidades tradicionais, afirmou que os conflitos na região acontecem já há alguns anos e houve uma tentativa de mediar um ordenamento fundiário e pesqueiro na região, pelo MPF. “Temos aqui um procurador responsável agora para apurar os reflexos civis do massacre, paralelo ao acompanhamento criminal”, explicou.
O evento contou ainda com a participação da perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) Ana Valeska Duarte.
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