“Ai daqueles que, deitados na cama, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos, e os roubam; querem uma casa, e a tomam. Assim oprimem ao homem e à sua família, ao proprietário e à sua herança” (Miquéias 2, 1-2)
A Comissão Pastoral da Terra - Bahia (CPT BA), vem por meio desta manifestar sua indignação contra a onda de violência e tentativa de massacre promovida por fazendeiros latifundiários no município de Potiraguá (BA). Numa ofensiva contra os povos indígenas Pataxó Hã – hã – hãe, a violência ceifou a vida de Maria de Fátima Muniz de Andrade, Nega Pataxó, e atentou contra a vida do Cacique Nailton Muniz e mais outros 12 indígenas, deixando-os gravemente feridos. Mais de 500 anos após a invasão portuguesa, a política escravagista e de extermínio dos povos originários continua. Nos solidarizamos com os povos indígenas e sua luta justa e sagrada pela retomada de seus territórios de origem.
A reserva Catarina Paraguaçu, onde foram relocados todos os povos indígenas do Baixo, extremo sul, e parte do sudoeste do estado da Bahia, foi demarcada desde início do século passado para que seus territórios fossem liberados para plantio do monocultivo do cacau. Mesmo com a reserva legalizada, fazendeiros invasores tentam destruir a nação Pataxó Hã Hã Hãe que, para assegurar seu território, conseguiram no governo de Dilma Rousseff a nulidade dos títulos, dada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) contra o estado da Bahia emissor nos anos 70. No entanto, muitas lideranças já foram dizimadas juntamente com outros membros da comunidade.
Numa região marcada pelo latifúndio na Bacia do Rio Pardo, o sangue derramado de Nega Pataxó clama por justiça exigindo do Estado que não seja omisso como tem sido diante de tantos casos de violências contra os povos e comunidades tradicionais quilombolas, fundo e fechos de pasto, pequenas e pequenos agricultores e povos indígenas. Por isso, é urgente, justo e necessário garantir aos povos tradicionais e povos originários a imediata demarcação de seus territórios.
No Brasil, conforme dados parciais apresentados pela Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc-CPT), no primeiro semestre de 2023 foram registrados 973 conflitos no campo, representando um aumento de 8% em relação ao mesmo período de 2022, quando foram registrados 900 conflitos. A Bahia tem figurado como um dos estados com maior incidência de número de conflitos e um dos mais violentos do Brasil, alcançando a 3ª posição do ranking.
Ao longo dos últimos 10 anos, foram 36 camponeses assassinados no estado, 41 tentativas de assassinatos, 117 ameaçadas com nenhum assassino ou mandante julgado e preso. Nesse mesmo período, foram registrados 111 casos de violência contra indígenas na Bahia, sendo 10 assassinatos. Os dados apontam um Estado omisso e conivente com o latifúndio sangrento e depredador.
Em uma região fortemente marcada na história pela presença indígena, cujos nomes das cidades da região reafirmam sua presença — a exemplo de Potiraguá, Itapetinga, Itambé —, onde historicamente habitavam diversos povos, as raízes históricas desses povos continuam fincadas ali, mesmo que ao longo do tempo várias tentativas de apagar essas marcas tenham sido feitas, essas terras são sagradas a eles pertencem e para eles voltarão.
Que Nega Pataxó e muitos e muitas que encantaram no sonho da terra partilhada, da justiça, do amor fraterno, possa nos impulsionar na luta em defesa da vida.
Legenda: Terceiro dia de atividade do 19º Acampamento Terra Livre (ATL) realizado entre os dias 24 e 28 de abril de 2023. Foto: Verônica Holanda/Cimi
POR ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI
Em carta, a comunidade lamenta a morte e o ferimento de indígenas Pataxó Hã Hã Hãe, alvo de um ataque armado, e cobra demarcação dos territórios indígenas
Em repúdio ao ataque sofrido, no último domingo (21), pelo povo Pataxó Hã Hã Hãe, o povo Akroá Gamella, do território Taquaritiwa, no Maranhão, publica carta manifestando sua dor e revolta com a situação de violência vivida pela comunidade do território tradicional Caramuru-Catarina Paraguassu, localizada no município de Potiraguá, no Sudoeste da Bahia.
Naquela tarde, cerca 200 fazendeiros, mobilizados pelo movimento Invasão Zero atacaram com armas de fogo a retomada do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe sobre o pretexto de realizar uma reintegração de posse nunca expedida judicialmente. O ataque resultou no assassinato de Maria Fátima Muniz de Andrade Pataxó Hã-Hã-Hãe, conhecida como Nega Pataxó, e no ferimento do cacique Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe e outros três indígenas.
Na carta, o povo Akroá Gamella reverencia a memória de Nega Pataxó e cobra providências do Estado quanto a demarcação das terras indígenas. “Exigimos do Estado brasileiro o cumprimento do dever constitucional de demarcar e proteger nossos territórios e que sejam punidos os organizadores e suas organizações criminosas desse ataque covarde que continua fazendo do Brasil o lugar mais perigoso para quem defende os direitos da natureza”, bradam em carta.
Leia a carta na íntegra:
Carta ao povo Pataxó Hã Hã Hãe
O povo Akroá Gamella, do território Taquaritiuá, no Maranhão, neste momento de silêncio tecido de dor e revolta por causa da violência extrema que recai sobre nossos corpos e territórios, manifesta sua solidariedade aos parentes e parentas Pataxó Hã Hã Hãe que lutam pela defesa de nossos territórios e pelo direito de Bem Conviver.
No último domingo (21) fomos surpreendidos com a notícia do ataque aos parentes Pataxó Hã Hã Hãe organizado pelo movimento que se autointitula “Invasão Zero” e pelas Polícias Militar e Civil do estado da Bahia. O ataque resultou no assassinato da pajé Nega Pataxó e no ferimento grave de outros parentes e parentas. A tentativa de homicídio contra o cacique Nailton Pataxó Hã Hã Hãe pretendeu ser um ato contra os direitos indígenas esculpidos na Constituição Federal de 1988, da qual o cacique Nailton foi articulador e artesão. Silenciá-lo de forma brutal e covarde se insere no rol do genocídio praticado pelo Estado brasileiro e pelas elites que o dominam.
Nega Pataxó, o teu sangue derramado por mãos assassinas dos latifundiários haverá de ser honrado em todas as lutas que ainda haveremos de fazer. Teu nome será bandeira que hastearemos em todos as árvores, animais, rios, nascentes, em nossos territórios ainda cercados, mas cuidado e acariciado dentro nós onde nunca chegarão os ladrões e assassinos.
Exigimos do Estado brasileiro o cumprimento do dever constitucional de demarcar e proteger nossos territórios e que sejam punidos os organizadores e suas organizações criminosas desse ataque covarde que continua fazendo do Brasil o lugar mais perigoso para quem defende os direitos da natureza.
Aos parentes Pataxó Hã Hã Hãe a nossa irrestrita solidariedade neste momento de dor.
Por Campanha nacional permanente “De Olho aberto para não virar escravo” - CPT
Foto: Bom Jesus da Lapa, Campanha da CPT contra trabalho escravo - arquivo CPT Nacional
Os resultados do combate ao trabalho escravo em 2023 confirmam a tendência registrada nos dois anos anteriores: a retomada de números expressivos de fiscalização e de resgate, uma situação que, equivocadamente, alguns comentadores têm interpretado como a ressurgência de uma prática criminosa após 7 anos de “acalmia” (é sempre bom lembrar que número não é realidade: somente a parte do iceberg que a vigilância da sociedade e as investigações do poder público conseguem trazer para a superfície visível).
A mobilização da categoria dos Auditores fiscais do trabalho iniciada neste mês de janeiro está aqui para manifestar o desdém com o qual esses combatentes da primeira linha têm sido tratados pelos últimos governos, chegando ao extremo de faltar mais de 40% do efetivo teoricamente aprovado para ir a campo, sem falar do abandono na área de equipamentos e meios de trabalho.
Nossa primeira saudação é para eles e para elas, nesta Semana Nacional dedicada à memória de heróis que tombaram neste combate, em Unaí em 28 de janeiro de 2004. Contra toda esperança, às vezes tirando leite de pedra, conseguiram mostrar para a sociedade que o trabalho escravo nunca parou. Pelo contrário, continuou grassando à sombra das políticas de abandono e precarização que presidiram ao destino do país.
Números que questionam
Vejamos alguns dados. Pela quantidade de pessoas resgatadas, os 5 estados que em 2023 mais ‘escravizaram’ — Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Piauí (nessa ordem) — formam um quinteto surpreendente. Isso porque nele não estão estados habituados a frequentar essa classificação inglória como o Pará, Maranhão, Mato Grosso do Sul ou Bahia, estados nos quais, durante décadas, o trabalho escravo tem sido prática recorrente.
Outra curiosidade: estemesmo quinteto ‘2023’ já vem liderando desde 2021, mediante ínfima diferença na ordem dos fatores (com Minas alternando com Goiás na 1ª posição). Nele estão representadastodas as grandes regiões do Brasil: Sudeste, Centro Oeste, Sul, Nordeste... Todas? Falta aquela que, na ótica da história do trabalho escravo contemporâneo, “deveria” ser a principal: a região por onde iniciou grande parte da luta moderna contra essa prática: a região Norte (e a Amazônia como um todo).
Foto: João Ripper
Situações contrastadas
Nos últimos 3 anos, a metade dos resgates se concentrou em apenas 2 estados: Minas e Goiás, ficando os outros 3 estados do quinteto com 20% dos resgatados. Em todos eles, o trabalho escravo é concentrado em atividades realizadas no campo e ligadas ao agronegócio — com destaques para o peso do ramo do café e para o “retorno” do setor canavieiro:
- A disseminação da prática é grande em Minas, menor em Goiás: é alto o número anual de casos identificados no estado mineiro (70 ou mais), comparado ao de Goiás (15 a 20). Se no ano passado 80% dos 739 resgatados de Goiás foram retirados de 4 canaviais e 2 lavouras, em Minas, a maioria dos resgates ocorreu em 2 setores: café (27 ocorrências) e carvoarias (12). Mesma situação em 2022, com a diferença de que, naquele ano, Minas resgatou 367 pessoas em 5 canaviais. Outro indício da disseminação do trabalho escravo em Minas: a prática foi flagrada em nada menos que 58 municípios em 2023 e 57 em 2022 (em Goiás: 18 municípios em 2023, 14 em 2022).
- Em São Paulo: 27 dos 40 flagrantes de 2023 ocorreram fora do campo, mas metade dos resgatados foram encontrados no campo (196 deles em 6 canaviais).
- No Rio Grande do Sul:9 em cada 10 resgatados foram retirados de apenas 3 estabelecimentos, e virou manchete nacional o caso das vinícolas de Bento Gonçalves (Garibaldi, Saltão & Aurora), com seus 210 resgatados, quase todos negros, trazidos da Bahia por um gato “pejotizado” por nome “Fênix”. Em 2022, o trabalho rural havia também representado 10 dos 12 casos ali encontrados, com destaque na maçã onde é costumeira a contratação de trabalhadores indígenas trazidos de Mato Grosso do Sul.
- No Piauí, o panorama é distinto: fora algumas lavouras de soja, o trabalho escravo é flagrado na extração de palha de carnaúba e em pedreiras, na atividade de britamento.
No resto do país, em 10 estados a média ficou na faixa de 80 pessoas resgatadas: MA (107), PR (101), BA (94), MS (88), ES (77), AL (74), PA (74): esses mesmos estados têm ocupado posição semelhante ao longo dos últimos 3 anos (exceção: AL). Por fim, outros 11 estados, cada um com uma média de 30 resgatados (PB, SC, CE, TO, RR, RJ, PE, RO, MT, AM, DF). Apenas 4 estados não tiveram resgate (AC, AP, RN, SE).
2023: número recorde
O total de fiscalizações e de resgates realizados em 2023 supera qualquer número observado desde 2010. O ano de 2023, por si só, representa o dobro da média registrada entre 2010 e 2022. Mesmo assim fica essa dúvida: quantas pessoas nesta condição não foram resgatadas? Quantas situações semelhantes deixaram de ser denunciadas ou investigadas?
E mais essa pergunta: por que mistério a região Norte e a Amazônia teriam escapado da “nova onda” de trabalho escravono país?
A média anual de resgates na Amazônia — 2.000 pessoas por ano no período 2003-2012 — caiu abaixo de 500 resgatados anualmente a partir de 2013, ficando na média de 300 por ano entre 2013 e 2018, e 235 de lá para cá (em 2023: 285). Paralelamente, verificamos que a média de fiscalizações de trabalho escravo na Amazônia, que era de 150 por ano entre 2003 e 2015, de lá para cá, caiu abaixo de 100, com exceção em 2017 (114) e 2021 (140).
Foto: João Ripper
As dificuldades de acesso, mas, sobretudo, a desarticulação e os retrocessos nas políticas de controle ambiental, reforma agrária e fiscalização dos territórios, devem ser relacionados a esse recuo. Difícil é acreditar que a situação hoje visível na Amazônia seja reflexo da realidade: ela mais traduz um déficit crucial de fiscalização e coordenação das ações, e remete a problemas criados por anos de sub investimento em contratação e infraestrutura.
Neste contexto, o anúncio, feito em junho de 2023, de um concurso visando repor 900 vagas na carreira da Auditoria Fiscal do Trabalho, soa como um alívio, porém não garante que serão providos os cargos tão necessários nas regiões hoje entre as mais deficitárias, se for considerada não apenas a população ativa existente, mas também a extensão do território a ser fiscalizado e suas dificuldades próprias. Hoje, na Amazônia, estão lotados em torno de 200 AFTs, menos que em São Paulo (292), Minas Gerais (223) ou Rio de Janeiro (216); o Norte tem 137 Auditores: menos que o Rio Grande do Sul (145).
Trabalho escravo doméstico
Um destaque importante nos últimos anos é a frequência de flagrantes no trabalho escravo doméstico (96 casos desde 2021). Uma atividade emblemática, essencialmente feminina, não exclusiva do ambiente urbano: entre as 41 pessoas resgatadas de serviços domésticos em 2023, 11 laboravam em residências rurais. O quinteto de estados liderando neste ramo tão emblemático da cultura escravagista é quase o mesmo já citado, só trocando Piauí por Bahia: SP (11), RS (7), BA (6), MG (5), GO (2, sendo equiparado com RJ e PE).
Emblemático, o trabalho escravo doméstico pode ser assim considerado não só pela tradicionalidade desta prática em um país que tem 5,8 milhões de pessoas empregadas em serviços domésticos (92% são mulheres e 65% delas, negras), mas também pela força e recorrência das narrativas de naturalização apresentadas pelos próprios empregadores, encampadas por setores da mídia ou mesmo ratificadas por membros eminentes da magistratura, como ocorreu no caso recente — escandaloso — da empregada Sonia, mulher negra, com deficiência auditivaprofunda, mantidaanalfabeta, sucessivamente resgatada e ‘retornada’ ao lar dos seus patrões catarinenses, auto referidos como “pais afetivos” de uma senhora relegada por quase 40 anos no quartinho da casa grande. Quantas outras ‘Sonia’ precisarão aguardar uma vida para sair desta condição? Quem falhou?
A cor da servidão
Nas características recorrentes das pessoas tratadas em condição análoga à de escravo está a cor: no registro oficial do Seguro-Desemprego onde, a partir de 2003, todo resgatado tem o nome inserido, apuramos que, entre as 8.309 pessoas incluídas entre 2016 e 2022,6.813 se autodeclararam como pardas (65,2%) ou como pretas (16,8%): 4 em cada 5.
Foto: Reprodução do documentário "Servidão"
Éequivocado imaginar que cenas como as expostas no filme Pureza, de Renato Barbieri, ou relatadas no documentário Servidão, do mesmo diretor — lançado nesta semana no Brasil — remetam a outras épocas, nas quais imperavam violência, brutalidade e humilhação, nas mãos de feitores e gatos extrapolando ou “fugindo” do controle de seus contratantes. Casos recentes ilustram a repetição ou aatualização de padrões de atuação que, poucas décadas atrás, eram a apanagem dos mais violentos recantos da Amazônia: aliciamento em regiões remotas de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, utilização de formas ilícitas de intermediação de mão-de-obra, mecanismos de endividamento compulsório, sujeição a jornadas exaustivas e a condições degradantes, humilhação, pistolagem e até tortura.
Política de Estado, empenho de todos
A política de erradicação do trabalho escravo é uma política de Estado, construída a duras custas a partir de 1995. Ela sobreviveu aos inúmeros ataques contra ela empreendidos, seja para acabar com o conceito moderno (Art. 149 CPB) que rege a identificação do crime, seja para abalar a firme articulação interinstitucional que caracteriza sua execução ou inibir a autonomia de sua implementação, seja para tirar a eficácia da temida “Lista suja” ou ainda para facilitar práticas que inviabilizem a responsabilização dos autores diretos do crime ou seus cúmplices de facto (é o caso da terceirização desenfreada, hoje legitimada com a anuência de altos magistrados). Ou mesmo, por último, para propor fiscalizações com aviso prévio!
Mesmo assim, avanços foram possíveis: hoje um Fluxo Nacional de Atendimento às vítimas do trabalho escravo orienta as ações coordenadas do poder público, do sistema de justiça e da sociedade; hoje Comissões estaduais de erradicação do trabalho escravo (Coetrae’s) e Comissão Nacional (Conatrae) exercem seu papel de vigilância e monitoramento; hoje autores de crimes até então cobertos por suposta imprescritibilidade respondem por seus atos; hoje pessoas em risco de trabalho escravo ou egressas desta condição (ainda bem poucas!) encontram iniciativas que poderão abrir outro ciclo em sua vida: o de uma vida digna (nesta parte, a CPT traz uma contribuição original com seu programa Raice - Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão).
Ao fazer memória de Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, Auditores Fiscais do Trabalho, e de Ailton Pereira de Oliveira, seu motorista, tombados em Unaí, renovamos nosso compromisso com a causa da erradicação do trabalho escravo e chamamos a sociedade a redobrar vigilância, mobilizando-se em torno desta bandeira: “De olho aberto para ninguém virar escravo!”.
No próximo dia 26 de janeiro, completam-se três anos do assassinato de Fernando Araújo dos Santos, trabalhador rural. São três anos sem Fernando. Três anos de dor e saudade. Neste ano, também fazemos memória a tantas outras lutadoras e lutadores vítimas da violência no campo.
Na noite do dia 26 de janeiro de 2021, Fernando foi assassinado nos fundos de sua residência enquanto arrumava seus pertences para se mudar do local. Ele residia na Fazenda Santa Lúcia, mesma área onde havia presenciado a execução covarde, cruel e sem nenhuma chance de defesa de 10 trabalhadores (nove homens e uma mulher), por policiais civis e militares do Estado do Pará. Este episódio ficou conhecido como Massacre de Pau D’arco, ocorrido em 24 de maio de 2017.
Em seus depoimentos, narrava de forma detalhada a execução de seus companheiros e seu namorado pelos policiais. Além de sobrevivente, Fernando tornou-se uma das principais testemunhas do ocorrido naquele dia.
Em 20 de setembro de 2020, Fernando foi vítima de uma tentativa de assassinato, tornando-se, assim, duas vezes sobrevivente. Passados onze meses de sua morte, as investigações foram encerradas, tendo sido identificado pela Polícia Civil apenas o executor do crime, Oziel Ferreira dos Santos, denunciado pelo Ministério Público em dezembro de 2021.
Ocorre que, mesmo identificando o autor do assassinato, a investigação não foi capaz de constatar a existência de mandantes e os motivos. O inquérito, além de não apresentar as respostas esperadas, desconsiderou o fato de Fernando ser um sobrevivente e testemunha de uma chacina, a tentativa de homicídio que ele havia sofrido a poucos meses e os seus relatos de ameaça.
A requerimento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), um novo procedimento para tentar sanar estas dúvidas foi reaberto pela polícia civil do Estado do Pará em 2022, a pedido do Ministério Público Estadual, mas ainda não foi concluído.
No ano seguinte ao assassinato de Fernando, em 29 de abril de 2022, mais um mártir da terra foi feito pela violência no campo. Edvaldo Pereira Rocha era líder quilombola da comunidade de Jacarezinho, na zona rural de São João do Soter, no Maranhão. Ele lutava pela titulação do território, contra a exploração ilegal de madeira no quilombo e contra a expansão da soja no Matopiba, fronteira agrícola nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Alvo de ameaças proferidas por latifundiários, foi covardemente assassinado a tiros.
Dias após o assassinato, um suspeito foi preso, mas foi solto pouco tempo depois. O inquérito que apurava a morte de Edvaldo foi concluído e enviado para apreciação da Justiça. Com isso, a quase dois anos do crime, nenhum executor ou mandante foi responsabilizado. A comunidade de Jacarezinho vive sob o medo e a angústia em razão das ameaças que se intensificaram após a morte de Edvaldo.
A violência continua sendo uma chaga no campo brasileiro. Em 2022, o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da CPT, registrou um total de 1596 ocorrências de conflitos por terra. O Maranhão foi o segundo estado brasileiro com maior número de ocorrências (179), ficando atrás apenas da Bahia, com 184 ocorrências.
Estes são os dois estados com o maior número de assassinato de lideranças quilombolas registrados pela CPT. Dos 50 homicídios identificados pela Pastoral entre 2005 a 2023, 20 aconteceram no Maranhão, e 16 na Bahia.
No ano passado, mais um caso de violência extrema chocou o Brasil, ocorrido justamente no Estado da Bahia. No dia 17 de agosto de 2023, a líder quilombola e ialorixá Bernadete Pacífico foi executada a tiros no Quilombo de Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, sendo considerado por pesquisadores um dos principais crimes políticos da história recente do país.
A ialorixá atuava na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e passou a fazer parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) após o assassinato do filho, conhecido como Binho do Quilombo, em 2017, também alvejado por vários tiros, dentro do território. O caso ainda é investigado pela Polícia Federal e, mais de seis anos depois, a morte de seu filho segue impune.
Segundo a Conaq, lideranças das comunidades quilombolas e terreiros de Simões Filho são ameaçadas permanentemente por grupos ligados à especulação imobiliária, interessados em ocupar os territórios, provocando o medo e intimidando as famílias.
Três meses após a execução, a investigação realizada pela Polícia Civil apontou o tráfico de drogas na região como principal responsável pelo crime, oferecendo denúncia contra cinco suspeitos. A família e a comunidade de Pitanga dos Palmares, porém, rejeitam a linha de investigação, reafirmando o histórico de conflitos e a atuação de Mãe Bernadete em defesa do território quilombola.
Os casos aqui apresentados pela Campanha Nacional Contra a Violência no Campo possuem muitas características em comum, sendo a impunidade a principal delas. Diante da frágil resposta apresentada pelo Estado, com investigações precárias, morosas e, muitas vezes, parciais, estes e centenas de outros crimes no campo seguem impunes.
Foi no ano em que mataram Fernando que iniciou-se a mobilização para a criação da Campanha Contra a Violência no Campo, um instrumento de organização popular e denuncia frente ao contexto de agravamento dos conflitos.
Caminhando para o segundo ano da Campanha, hoje fazemos memória à luta de três mártires da violência no campo, ao mesmo tempo em que exigimos do Estado brasileiro a adoção de ações contundentes direcionadas à proteção dos territórios e das vidas humanas ameaçadas.
Mãe Bernadete Pacífico, PRESENTE!
Edvaldo Pereira, PRESENTE!
Fernando dos Santos, PRESENTE!
A Campanha Contra a Violência no Campo realizará atividade virtual, na sexta-feira (26), às 15h, com transmissão ao vivo pelo canal do youtube da Comissão Pastoral da Terra, para o lançamento do cartaz oficial da campanha, que presta uma homenagem às lutadoras e lutadores martirizados pela violência no campo, ao mesmo tempo em que denuncia o agravamento dos conflitos e a impunidade à esses crimes. A atividade fará memória à vida e luta Fernando dos Santos, Edvaldo Pereira e Mãe Bernadete Pacífico, mártires da violência no campo, a partir de testemunhos e reflexões acerca dos conflitos por terra no Brasil.
Por Equipe CPT Regional Pará Foto: Sérgio Carvalho
Em 2024, fazemos memória aos 20 anos da revoltante “Chacina de Unaí”, que no dia 28 de janeiro de 2004, vitimou os auditores-fiscais do Trabalho, Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e o motorista do Ministério do Trabalho e do Emprego, Ailton Pereira de Oliveira. O grupo sofreu uma emboscada e foi assassinado por pistoleiros enquanto verificava denúncias de exploração de trabalhadores na zona rural do município de Unaí (MG).
Em memória às vítimas e pelo combate ao Trabalho Escravo, a Comissão Pastoral da Terra Regional Pará (CPT-PA), a Rede de Ação Integrada de Combate a Escravidão (RAICE) Itupiranga, parceiros e apoiadores realizarão ações preventivas nos municípios de Marabá e Itupiranga (região Sudeste do estado), durante a Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
Confira a programação:
24/01 - 09h - Ação preventiva contra o trabalho escravo na Rodoviária do Km 06, em Marabá, com a distribuição de materiais preventivos, exposição fotográfica e exibição do filme “Pureza”, a partir das 9h. Este foi um dos cenários onde foi gravado o filme
25/01 - 15h30 às 17h30 - Participação no Lançamento da Campanha “Sou Livre da Escravidão”, promovida pela Fundação Pan-Americana para o Desenvolvimento (PADF), com apoio do Departamento de Estado dos Estados Unidos, por meio do Escritório de Monitoramento e Combate ao Tráfico de Pessoas. A atividade será no Auditório do Hotel Golden Ville, em Marabá-PA
26/01 - 16h30 - Caminhada preventiva contra a escravidão, com exposição fotográfica e entrega de materiais preventivos, com concentração na Lagoa Geovana, em Itupiranga-PA.
Escravizar uma pessoa é crime
Segundo dados sistematizados pela Campanha nacional da CPT de combate ao trabalho escravo (“De olho aberto para não virar escravo”), mais de 3.400 pessoas foram encontradas em situação de trabalho escravo em 2023 no Brasil. O estado do Pará de 1995 a 2023, já resgatou da escravidão 13.773 trabalhadores em situação análoga à escravidão, em atividades tais como a pecuária, desmatamento, lavouras, mineração, extrativismo e carvoarias.
O Artigo 149 do Código Penal Brasileiro define 4 características alternativas para identificar este crime: sujeitar alguém a trabalho forçado, ou a jornada exaustiva, ou a condições degradantes de trabalho, ou impedir sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador.
Sabendo de alguma situação desse tipo, é fundamental assumir nossa parte: denunciar.
As denúncias podem ser feitas pelo sistema Ipé, na Detrae – Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo (no link: ipe.sit.trabalho.gov.br), no Ministério Público do Trabalho de sua região, ou ainda através do disque 100, ou diretamente na CPT mais próxima de você.
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional), com informações da CPT Regional Rondônia
Imagens: Acervo da comunidade
Indígenas do povo Puruborá, situados no município de Seringueiras (RO), que já sofrem ameaças centenárias por lutar pelo seu território, agora denunciam a pulverização aérea de agrotóxicos derivada de uma produção de soja vizinha à comunidade, e que têm atingido as águas do igarapé e do rio Manoel Correia.
Lideranças afirmam que, desde os anos de 2022 e 2023, grandes empresas de soja do sul do Brasil vêm arrendando e mecanizando as terras para plantio e pulverização com agrotóxicos. Desde o início de 2024 e nas duas semanas seguintes de janeiro, a situação se agravou com a pulverização aérea por aviões agrícolas. Com a volta do período chuvoso na região, o cenário é triste com os peixes mortos, de tamanhos e espécies das mais variadas, algo nunca visto pela comunidade durante as chuvas.
Estas catástrofes estão associadas a outros impactos ambientais, como o desmatamento, o plantio de pastagens, a criação de bovinocultura e a pavimentação da BR 429. É uma contaminação que atinge a água, a terra e o ar, tornando a produção, o consumo e a sobrevivência do povo incompatíveis com a vida humana.
Com 75% de sua área de agricultura plantada com apenas 3 culturas – soja, milho e cana-de-açúcar (dados de 2015) –, o Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos no mundo, uma vez que o monocultivo agride a natureza e só funciona com uso dos venenos.
Além dos impactos ao meio ambiente, a Campanha Nacional contra os Agrotóxicos chama a atenção para os danos causados à saúde humana, tanto através dos efeitos agudos – intoxicações na pele, insuficiência respiratória, vômitos, desmaios, alergias, dores de cabeça e muitos outros –, como nos sintomas crônicos, a longo prazo, que podem causar alterações no fígado, rins, hormônios, e até doença de Parkinson e câncer.
Confira abaixo o texto da denúncia:
Denúncia do Povo Puruborá
Associação Indígena Maxajã
Aldeia Aperoí, 19 de janeiro de 2024
Seringueiras-RO
Nós, indígenas do povo Puruborá, vimos por meio desse documento denunciar e pedir providências acerca da pulverização aérea de agrotóxicos que está acontecendo no território reivindicado pelo povo Puruborá.
No segundo semestre do ano de 2023, Indígenas Puruborá, moradores da Aldeia Aperoi que está localizada no km 32 da BR 429, Seringueiras-RO, denunciaram a produção de soja com pulverização de agrotóxicos ao lado da Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental Yawara Puruborá e da farinheira da Associação Indígena Maxajã e roça comunitária. A Aldeia Aperoi é local sagrado do povo PURUBORÁ, devido ser o último local onde morou a matriarca Emília, sobrevivente do contato que tiveram com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na década de 1920 a 1940.
Histórico
A Comunidade Indígena Puruborá é uma etnia pertencente à família linguística Tupi. De acordo com a Revista Pré-UNIVESP (2013), possui aproximadamente 300 representantes que se encontram distribuídos nos municípios de Seringueiras, Guajará-Mirim, Ariquemes, São Miguel do Guaporé, Porto Velho, Ji-Paraná, São Francisco e Costa Marques, todos em Rondônia. O primeiro contato oficial dos Puruborá ocorreu em 1912, realizado pelo Marechal Cândido Rondon. Posteriormente, ele demarcou uma reserva indígena entre os municípios de São Francisco do Guaporé e Seringueiras-RO, no ano de 1919. Entretanto, o CIMI-RO (05/04/2013) destacou que, apesar de a terra ter sido demarcada, os Puruborá sofreram diversos tipos de pressões, pois no interior de suas terras foram instalados postos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que impediram as suas manifestações culturais e, em seu entorno, viviam sob a pressão dos seringalistas e sofriam com as inúmeras doenças, como sarampo, beribéri e gripe.
O historiador José Joaci Barboza, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), relatou que, diante da grande mortandade dos Puruborá, o SPI costumava oferecer índias órfãs como mulheres para seringueiros, iniciando um intenso processo de mestiçagem. Segundo a pesquisadora Ana Galucio (2005), em fins da década de 1940, os Puruborá estavam em quantidade bem reduzida e o grupo se dispersou em busca de trabalho e melhores condições de vida, restando somente uma família Puruborá no local. Nesta época, de acordo com a Revista Pré-Univest (19/04/2013), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) considerou a etnia Puruborá oficialmente extinta.
Em fins da década de 1980, o linguista Denny Moore, pesquisador do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG), encontrou três anciãos que ainda dominavam a língua Puruborá e iniciou um trabalho de documentação linguística. Este trabalho foi motivado pelo fato de a língua Puruborá estar sob risco de extinção, pois, com o processo de expulsão, dispersão e a consequente mestiçagem, os Puruborá tiveram muitas dificuldades de encontrar interlocutores1.
Essas terras griladas da União nos anos 1980 a 1990 são reivindicadas pelos indígenas nos anos 2000, depois do ressurgimento da etnia que era considerada extinta pela Funai. Nos últimos 4 anos, está acontecendo uma descaracterização da área reivindicada pela Etnia Puruborá. As grandes áreas de fazenda que estão localizadas nas linhas 7 pontes, LH 22c e travessão, LH 08 e travessão, LH 12 do lado do município de São Francisco. Estão desmatando com tratores e semeando capim na maior parte delas, não utilizando o uso do fogo para fugir de eventual fiscalização, enganar radares que capturam ondas de calores. Mas tem aumentado o crescente uso de agrotóxicos para matar os brotos que vêm após a retirada da vegetação nativa. Após um a dois anos de uso de pastagem que muitos tocos e raízes de árvores já estão podres e morto por agrotóxicos, o terreno é arrendado para plantio de soja por grupos e empresas de grandes produtores de soja que estão vindo do sul do Brasil para região do vale do Guaporé.
O desmatamento em terras próximas do Rio Manuel Correia e Caio Espindola já tem provocado secas intensas na região devido a drenagem da água das lavouras, e cada vez é mais preocupante devido ao solo ser arenoso e causar grandes assoreamento nas proximidades dos rios, levando resíduos de adubos químicos e agrotóxicos para leito do rio.
Nesse último verão amazônico, entre os meses de agosto e novembro de 2023, o Rio Manuel Correia que passa por dentro da pequena área de terra que está aldeia Aperoi sofreu uma seca intensa, onde que morreu muitos peixes, algo nunca registrado pelo povo originário da região, que por analisar os fatos, avalia que o desmatamento associado ao assoreamento com resíduos de adubos químicos e agrotóxicos levaram a mortalidade de peixes no leito do rio. O Rio é uma das principais fontes de alimentos dos indígenas e populações tradicionais da região a dezenas de anos.
As mudanças climáticas estão sendo visíveis a nível global, com catástrofes em vários países do mundo, e na Amazônia não é diferente, quando falamos sobre recursos hídricos (água), com secas intensas e mortalidade de animais aquáticos que vivem nos rios e igapós da região. A contribuição humana derivada do agronegócio exploratório dos recursos naturais tem sido o grande responsável pela degradação ambiental no bioma amazônico.
O Povo Puruborá vem observando que no ano de 2022/23 iniciou as grandes empresas de soja arrendando e mecanizando as terras para plantio no inverno Amazônico, que inicia em outubro e novembro, com início das chuvas. Já em dezembro, com a soja em médio porte de crescimento, ocorre a pulverização de agrotóxicos, mas esse ano de 2024 a pulverização está sendo aérea (com aviões agrícolas) no plantio e durante o início do mês de janeiro de 2024 as atividades se intensificaram por duas semanas seguintes. Nesse período também tem chovido na região e durante uma caminhada no rio Manoel Correia, deparamos com cenas tristes dos nossos peixes mortos, peixes maiores, menores e de espécies diferentes.
Nunca registramos mortandades de peixes no nosso rio no período chuvoso, essa foi a primeira vez. Nós associamos essas catástrofes aos impactos ambientais que o nosso território tem sofrido como: o desmatamento, plantio de pastagens, criação de bovinocultura, a pavimentação da BR 429, por fim o plantio de soja com grande índice de agrotóxicos. Os peixes estão morrendo e nós acreditamos que nossa saúde está sendo afetada. Logo, com todo esse veneno que vem sendo despejado, nós não conseguiremos produzir mais nada nessa terra, nem para nosso próprio consumo. Por esses motivos, solicitamos aos órgãos que tomem as devidas providências. O território Puruborá está sendo novamente violado, e os direitos do povo Puruborá também.