Entidades requerem que o Instituto de Terras, INTERPI, negue pedido de legalização de terras griladas no Sul do Piauí
Por Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Território da comunidade Barra da Lagoa. Foto: Mariella Paulino/RSJDH
Após tomarem conhecimento da existência de processos administrativos para "reconhecer o domínio" e "fornecer declaração de conformidade" dos limites de propriedades para supostas fazendas que se encontram em territórios de comunidades tradicionais, entidades requerem que Instituto de Terras do Piauí (Interpi) não atenda ao pedido de legalização de títulos fraudados.
Em 22 de fevereiro, o Interpi recebeu notificação do requerimento, assinado pelas seguintes organizações: Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado, Comissão Pastoral da Terra, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e Associação dos/as Advogados/as dos Trabalhadores/as Rurais.
As organizações fundamentam o pedido nas leis estaduais que proíbem o reconhecimento de fazendas adquiridas por meio de fraudes, como é o caso dos imóveis suspeitos "Fazenda Figueira Gaúcha" e "Fazenda Por do Sol".
Estas áreas se localizam dentro do território da comunidade tradicional Brejo das Meninas, e os desmatamentos causados por grileiros impactam também as comunidades de Chupé e Barra da Lagoa.
Recentemente foram constatados desmatamentos na área dos imóveis grilados, localizados na Chapada Fortaleza, no município de Santa Filomena, Sul do Piauí.
As entidades também protocolaram o documento no Ministério Público Estadual e na Promotoria Regional Agrária, para que estes órgãos tomem as devidas providências para garantir o direito das comunidades em continuar nos territórios onde vivem há diversas gerações.
Leia a íntegra da notificação aqui.
O coletivo de autocuidado da CPT se propõe a contribuir com formatos de relações sociais a partir do cuidado com o corpo e mente para fortalecer as relações e a militância de seus agentes
Terê Menezes | CPT Piauí
Fotos: Lina Cunha
Quem cuida de quem cuida? Essa é a pergunta que vem sendo respondida nos últimos anos pelo grupo de autocuidado e cuidado coletivo da CPT. Contribuindo, pensado e se articulando na construção interna de ambientes, relações e corpos saudáveis, o grupo trabalha para fortalecer a autonomia das pessoas, dos grupos acompanhados e da missão de ser presença fraterna, profética e solidária junto aos povos do campo.
Para isso, durante os dias 21 a 24 de fevereiro, no espaço Amanduart em Brasília-DF, ocorreu mais um encontro de autocuidado e cuidado coletivo para agentes de diferentes regionais e voluntários da CPT. O Encontro foi assessorado por Mariano Pedroza, Formador Internacional da Técnica de Redução de Estresse (TRE), técnica desenvolvida por David Berceli e que se propõe a ser uma ferramenta de autocuidado.
Uma vez aprendida a técnica, a pessoa pode utilizá-la para promover a saúde e a qualidade de vida, assim como para lidar com situações de estresse. Mariano trouxe elementos de pesquisa sobre os benefícios da prática e da inclusão da técnica no rol das Práticas Integrativas de Saúde (PIC’s) pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que amplia a credibilidade da técnica nos grupos adotados.
Autocuidado e cuidado coletivo é cuidar também do institucional. Diversas são as situações de estresse vivenciadas pelos agentes da CPT quando, constantemente, se vêem em cenários de conflitos no campo. Esse cotidiano impacta as pessoas envolvidas nos territórios, as pessoas ameaçadas, suas famílias e os agentes que acompanham tais situações de conflitos. Nesse contexto de estresse, o dia a dia do trabalho da CPT se torna tenso e as relações de trabalho também podem sofrer desgastes em diversos níveis.
Durante o encontro, o grupo vivenciou, além das práticas de TRE, outras técnicas de autocuidado e cuidado coletivo, todas são bem vindas nesse processo de promoção da saúde. Algumas já praticadas pelos agentes do coletivo de autocuidado ou por outros agentes e comunidades são: Reiki, massoterapia, ventosas, reflexologia podal, auriculoterapia, aromaterapia, benzimento, passe, pajelança, oração/espiritualidade, banho de ervas, emplastos, fitoterapia, bibliodrama, teatro do oprimido, chás, escalda pés, relação com a natureza, entre outras práticas.
Unir o conhecimento de cuidado coletivo tradicional, acrescentando outras práticas integrativas de saúde, fortalece e enriquece o rol de aprendizados, ampliando possibilidades para agentes e comunidades atendidas.
Histórico da formação de Autocuidado e Cuidado Coletivo
Em 2016, pensando no impacto que seus agentes sofrem enquanto defensores de direitos humanos envolvidos no contexto direto ou indireto de conflitos no campo, ou mesmo incluídos nos grupos de ameaçados por conta desses conflitos, a CPT deu início à primeira turma de formação em autocuidado e cuidado coletivo. Em seguida, em 2018, uma segunda turma se inicia, ambas com o estudo da Técnica de Redução de Estresse.
Observou-se, dentro da Pastoral, o adoecimento de seus agentes, diante disso, foi proposta como linha de ação estratégica, o incentivo ao autocuidado e cuidado coletivo. Entendendo que tais pessoas envolvidas nos acompanhamentos aos conflitos, devem/precisam estar bem para poder cuidar dos outros, das comunidades, dos povos ameaçados, etc. Esse “estar bem” significa maior concentração, respostas mais exatas e eficientes aos diferentes contextos de conflitos, fortalecimento da militância e continuidade da missão da CPT.
Durante o processo de formação, e depois dele, já foram identificados diversos benefícios individuais nos grupos em que foram aplicados a prática. Parte do propósito dessas formações está descrito no texto produzido pela segunda turma e publicado no jornal Pastoral da Terra, edição 255, página 15, com o título: “Autocuidado é existir para resistir”. Você pode acessar o texto clicando aqui.
Imagem: Divulgação
Projeto contou com o apoio do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Marabá/PA
Do blog Furo na Geografia (Rogério Almeida)
“Neste acampamento tem
Produção de alimento
E uma escola que ensina
A arte do movimento,
Para enfrentar o governo
Pra produzir seu sustento.
Enfrentando o latifúndio
Pra conquistar nossa terra
Numa luta desigual
Parece até uma guerra
Tem morrido no conflito
Trabalhadores sem-terra.”
(Trecho do cordel “As pelejas territoriais em Carajás – A Saga Do Bicho Homem Contra Com O Capital”)
O trecho do poema acima faz parte do livro “A Destruição da Amazônia pela besta fera do capital e outros cordéis”, do dirigente sindical e ambientalista Francisco Valter Pinheiro Gomes, o Ceará do Pará. O livro será lançado em dois momentos no mês de março.
O primeiro lançamento será na próxima sexta-feira (01) às 09 h, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), em Marabá/PA, e o segundo em Santarém/PA, no dia 07, no espaço cultural Quintal Sapucaia, a partir das 19 h, como parte do evento coletivo denominado de “Puxirum de Ideias”, que contará com lançamentos de obras de professores/as da Ufopa.
A obra reúne quatro livretos de cordel produzidos pelo escritor desde os anos iniciais da década de 2000. Além do que já citamos (“As pelejas territoriais em Carajás”) e o que dá nome ao título do livro (“A Destruição da Amazônia pela besta fera do capital”), ainda constam os cordéis “O Dragão da Mineração em Carajás” e “Acampamento de camponeses em Marabá de 2001 – a peleja construída e contada pelo trabalhador rural.”
No conjunto da obra, Ceará registra as formas de r-existência dos seus iguais, a exemplo do cordel que recupera a ação direta dos camponeses no início da década de 2000. Os grandes acampamentos de Marabá, como a ação ficou reconhecida, aglutinava perto de 20 mil pessoas na frente da sede do INCRA. O ato demonstra a enorme capacidade de organização do conjunto dos movimentos sociais ligados à luta pela terra, em plena conjuntura do avanço de políticas neoliberais.
As políticas públicas desenvolvimentistas impostas para a Amazônia também inquietam o cordelista. Nele, Ceará alumeia os sujeitos das pelejas das disputas pela terra, trata das violências, dos crimes contra os camponeses e camponesas e responsabiliza o Estado autoritário pelo avanço do capital sobre a fronteira.
Para além da pecuária, em outra obra, o migrante e sindicalista trata do poder da mineradora Vale, na região sudeste do estado, onde Ceará reside e r-existe. Por conta da hipertrofia do poder da mineradora, ela é considerada uma empresa maior que o estado do Pará. A mineradora expropria, proíbe acesso à terra, à floresta e ao rio. Vigia e processa os que ousam denunciar os seus abusos.
O livro conta com prefácio, apresentação, os dois artigos produzidos no projeto de extensão da UFOPA “Luta pela Terra na Amazônia”, uma entrevista com o autor e os respectivos cordéis. Presença marcante na cultura popular, os cordéis de Ceará do Pará alertam a todos de que a mão que lavra a terra, afronta as cercas do latifúndio e de terras griladas, também se indispõe com as palavras, antes, monopólio de poucos.
Para a impressão da obra, o projeto contou com o apoio da Cese (Coordenadoria Ecumênica de Serviço) e a Cafod, uma agência internacional de desenvolvimento ligada à Igreja Católica. O projeto de extensão “Luta pela Terra na Amazônia” é coordenado pelo prof. Rogério Almeida, do curso de Gestão Pública, com a contribuição das extensionistas Glenda Flávia Guimarães Cunha, Luana Vitória de Sousa Brito, Bianca Emanuelle Bezerra da Silva e Yasmin de Souza Corrêa.
Para a produção do livro, o projeto estabeleceu diálogo com o escritor, educadores da Faculdade de Educação do Campo da Unifesspa, em particular com o professor Haroldo de Souza, com o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Marabá.
Na jornada, os professores e pesquisadores Airton Pereira (Uepa) e Fabíola Pinheiro doutoranda da Unir (Universidade Federal de Rondônia) colaboraram em debates sobre as disputas territoriais no sudeste paraense e sobre escrita científica. O artista Rildo Brasil, de Marabá, assina a capa e outras ilustrações do livro, assim como Thulla Christina.
O autor – Ceara do Pará nasceu Francisco Valter Pinheiro Gomes, em Quixadá, Ceará, na década de 1960, mas aportou em terras paraoaras entre os anos 1980-1990, em contexto marcado pela agenda neoliberal e recrudescimento da luta pela terra, quando sucedeu os massacres de Corumbiara (RO) em 1995 e Eldorado dos Carajás (PA), em 1996. Ceará acompanhou os grandes acampamentos de camponeses em Marabá, neste período, fato que deu origem ao seu primeiro livreto de cordel.
Foi militante do Sindicato dos Trabalhadores e da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Pará (Fetagri). Atualmente é dirigente do MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores) e estudante do Curso de Educação do Campo, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Campus Marabá.
Da Coordenação da CPT Regional São Paulo
A coordenação estadual da COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT) DO REGIONAL SUL 1 DA CNBB, reunida nos dias 16, 17 e 18 de Fevereiro de 2024, na sede da Escola Nacional Paulo Freire, nesta capital paulista, junto com os Coordenadores Regionais, vem à público, através desta nota expor nossas posições com relação aos seguintes temas:
SOLIDARIEDADE AO POVO PALESTINO
Não podemos fechar os olhos, não podemos nos calar!
11 mil crianças e 20 mil mulheres já foram assassinadas pelo Estado de Israel. Cerca de 1,1 milhão de crianças palestinas que vivem na Faixa de Gaza podem morrer de fome ou por doenças, caso não recebam ajuda humanitária.
Não confundimos o povo judeu com o governo de extrema direita de Netanyahu. A existência do Estado de Israel tem a mesma legitimidade de existir que o Estado da Palestina. O que a humanidade se insurge é contra o genocídio do povo palestino, causado pelos sionistas numa atitude racista e colonialista.
A CPT/SP SUL 1 acredita na liberdade, na democracia e na dignidade da vida humana.
Tudo que impede que estas três condições existam, nos impele a rejeitar e denunciar. Razões pelas quais, clamamos ao Senhor da vida que proteja os inocentes que estão sendo aprisionados num território de 45 quilômetros quadrados, população somada equivalente às populações das cidades de Sorocaba, São José dos Campos, São José do Rio Preto e Ourinhos juntas.
Comparativamente, é como obrigar toda a população de Sorocaba, São José dos Campos, São José do Rio Preto e Ourinhos, que se desloquem a um território do tamanho da regional São Mateus, que fica na Zona Leste de São Paulo, compreendendo os bairros de São Mateus, Iguatemi e Parque São Rafael e depois, obriguem esta mesma população a se deslocar para a metade deste mesmo território. É exatamente isso que está acontecendo em Gaza neste momento por ordem do exército de Israel.
Para além das bombas jogadas por aviões de guerra, das rajadas indiscriminadas de metralhadoras manuseadas por soldados israelenses e dos tanques de guerra que atiram a esmo na população civil palestina, este deslocamento sob ameaça de bombardeios, não oferece ajuda humanitária, não permite que medicamentos cheguem aos feridos e não tem água potável para esta população, deixando-as em um campo de concentração a céu aberto, cercados por todos os lados pelo exército de Israel, sem comida, sem acesso à hospitais, sem estradas e sem possibilidade de serem socorridas.
Não existe outra tipificação no Direito Internacional que não seja a de um genocídio com a complacência do governo norte americano e a ação direta do líder extremista da direita israelense, Benjamim Netanyahu.
Somamos a nossa voz a todos e todas que lutam pela liberdade do povo palestino!
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, SUL 1, São Paulo, 23/02/2024.
Setor de Comunicação da CPT NE2 e equipe da CPT Agreste/PE
Imagens: Plácido Junior/CPT PE
Nos dias 24 e 25 de fevereiro, a cidade de Caetés recebeu o primeiro encontro da Escola dos Ventos, um espaço de formação e articulação de comunidades do agreste de Pernambuco que sofrem com os impactos das usinas eólicas. Cerca de 40 pessoas participaram do encontro, entre camponeses, camponesas e quilombolas de sete comunidades da região, agentes pastorais da CPT e pesquisadores/as acadêmicos/as.
Durante o encontro, os/as participantes discutiram sobre a formação social e do campesinato no agreste pernambucano, a transição energética, a instalação de usinas eólicas na região e os impactos e danos causados aos territórios camponeses, à saúde da população e ao meio ambiente. O momento também foi marcado por muita mística, cultura camponesa, troca de experiências e testemunhos sobre a realidade vivida.
A partilha das dificuldades, das dores e das violações de direitos vivenciadas pelas comunidades contribuiu para animar a resistência coletiva frente aos projetos de energia que ameaçam seus territórios, seus modos de vida e sua relação com a natureza. Conforme destaca João do Vale, agente da CPT, “durante as discussões, as famílias demonstraram estar num processo de conscientização cada vez mais forte e compreendendo que a organização e a articulação são o caminho para enfrentar os seus problemas”. Mariana Vidal, integrante da assessoria jurídica da CPT também ressalta que “para além da função de formação, o encontro teve o caráter fundamental de pensar estratégias de reparação dos direitos violados e de como evitar que novas violações ocorram, já que reuniu tanto comunidades atingidas quanto comunidades ameaçadas por empreendimentos eólicos ainda não instalados”.
Participaram da atividade as comunidades de Sobradinho, Lagoinha, Sítio Barroca, Sítio Tanque Novo, Sítio Pau Ferro, Sítio Serrote Preto, Sítio Pontais e os quilombos Atoleiro e Cascavel. Ao final do encontro, uma agenda de atividades foi proposta para estreitar a “aliança entre as comunidades na defesa da vida e de seus territórios”, conforme destacou Eurenice da Silva, agente da CPT.
Escola dos Ventos - O objetivo da Escola dos Ventos é ser um espaço baseado no saber popular, onde as comunidades possam refletir coletivamente sobre seus problemas e traçar estratégias de defesa de seus territórios e de reivindicação de direitos. A iniciativa é uma proposta da Fiocruz, da Universidade de Pernambuco (UPE) e da CPT. A Escola pretende realizar outros encontros ao longo do ano, buscando ampliar o debate e a mobilização contra os impactos e males causados pelo modelo centralizador e concentrador de geração de energia renovável e buscando saídas comunitárias para uma transição energética justa e que respeite verdadeiramente o meio ambiente e as populações do campo.
Responsável por aquecer e manter aceso o fogo da alma de cada Kaiowá, agora a Casa de Reza resta deitada, em cenário parecido com o de um campo de batalha que atingiu diretamente o coração do povo e do território
Por Cimi Regional Mato Grosso do Sul
Queima da Casa de Reza Guarani e Kaiowá da retomada Kunumi Verá, no município de Caarapó (MS). Foto: Aty Guasu
O que queima quando se queima uma Casa de Reza?
A cena em si já é de fazer chorar toda e qualquer pessoa dotada de mínima sensibilidade.
Casas-Seres de proporções tão majestosas e de importância física e espiritual únicas, ardendo em chamas, por vezes em plena luz do dia.
Vão despencando seus pedaços sagrados, em meio a estalos e labaredas. É a própria simbologia de um povo repleto de espiritualidade, que perece e resiste a um processo de desterramento e genocídio.
Em minutos tudo vira cinza: os muitos dias de trabalho. Sol, sal, suor. O empenho dos trabalhadores indígenas – quase todos arquitetos e artistas anônimos, edificadores do imensurável.
É um golpe fatal a algo que, apesar de tão grande e imponente, denota maior paz do que poder.
Os ecos dos sorrisos e risos, ofertados por todos, das crianças aos anciões, que dentro e no entorno destas ” geradoras de Bem Viver” por dias festejaram, rezaram, conectaram-se aos Xirus – ponto que liga a terra aos encantados. Se ouvirmos com atenção, estes ecos misticamente permanecem audíveis junto ao que não é mais.
O fogo consome rápido as palhas e capins que foram gentilmente trançados e meticulosamente dispostos para unificar morada e natureza em uma grande casa comum.
Desaba a métrica precisa, desenhada por sabedoria não escrita, expressa em cada linha, caibro, pilar. É um golpe fatal a algo que, apesar de tão grande e imponente, denota maior paz do que poder.
O fogo parece ter pressa de tombar a nível do solo estas “catedrais” originárias. Tombam como tombam as árvores, como tomba tudo que contrasta com os campos desertos e agressivos do agronegócio, invasor voraz dos territórios – que geralmente são avistados no horizonte por detrás das próprias Casa de Reza, lembrando os Kaiowá permanentemente de seu cerco, calvário e realidade.
Mas a maior dor repousa no fato de que se queimam as palavras. Ao invés de queimarem gentilmente nas rodas de fogo, nas noites de festa, ardem e jazem em chamas hostis. Se vão com o incêndio todas as palavras que foram cantadas e rezadas ao som eterno e ancestral dos Mbaraka e dos Takuapy.
Já não educa mais a maior das professoras-escolas, já que as Oga Pissy – como os Guarani e Kaiowá as chamam – são espaços fundamentais de educação, transmissão da cultura e ensinamentos.
Já não fala mais a Casa contadora de histórias. E que histórias! Tão antigas e intrigantes como o Mundo. As rezas-canto, libertadoras e mágicas, repousavam por décadas (ou tempo imemorial) em cada centímetro cúbico desta morada de espíritos e encantados. Por vezes, são estas Casas o único alento capaz de dar a um povo tão machucado o mais íntimo sentimento de proteção.
Tudo isso – e tão mais que talvez nunca saibamos o quanto – perde-se com as chamas.
Responsável por aquecer e manter aceso o fogo da alma de cada Kaiowá, agora resta deitada, em cenário parecido com o de um campo de batalha que atingiu diretamente o coração do povo e do território.
“Já não fala mais a Casa contadora de histórias”
A casa de reza queimada havia sido construída pela comunidade de Kunumi para abrigar uma grande assembleia – Aty Guasu – que teve como motivação os 40 anos do assassinato de Marçal de Souza Tupa’í. Foto: Aty Guasu
No caminho de Tupa’í , mais uma vez levantaremos
No dia 22 de fevereiro de 2024, ainda antes do sol deixar de iluminar o dia, uma grande Oga Pissy (casa de reza) circular sucumbiu em chamas no território retomado de Kunumi Verá, em Caarapó, Mato Grosso do Sul. Mais uma a se somar a pelo menos outras 16 destruídas nos últimos quatro anos.
Em meio às lágrimas, um desabafo: “Violaram novamente o sonho de Marçal, mas no caminho de Tupa’í mais uma vez levantaremos”. Com essa frase, Simão Kaiowá – responsável pela construção da Casa – limpou o rosto e pouco a pouco foi afastando as dores, recompondo a postura de luta.
A casa havia sido construída pela comunidade de Kunumi em setembro de 2023 para abrigar uma grande assembleia – Aty Guasu – que teve como motivação os 40 anos do assassinato de Marçal de Souza Tupa’í, mártir e bandeira eterna na marcha dos povos Guarani e Kaiowá na luta por direitos em especial de reconquista de seus territórios ancestrais.
Simão lembra da motivação: “Erguemos esta casa em memória de Marçal. Para que fosse como o corpo dele, o sonho dele. Erguemos em um território que bebeu em 2016 – no Massacre de Caarapó – o sangue de Clodiodi e feriu tantos de nós. Erguemos para os jovens crescerem no nosso caminho, aprendendo a nossa reza, o nosso modo de ser e para que vivam os caminhos do nosso povo. Assim sonhou Marçal, assim continuamos sonhando. Marçal falou com o Papa nos anos 80, e em 2023 o Papa Francisco mandou uma carta ao nosso povo, reconhecendo que a dor e o genocídio denunciado por Marçal ainda nos castiga hoje – é só ver a casa queimando para ver que isso é verdade. Essa casa era para ser abrigo de nossos rezadores e sede de nossos encontros da Aty Guasu.”
“Assim sonhou Marçal, assim continuamos sonhando”
Cardeal Leonardo Steiner, presidente do Cimi, fez a entrega simbólica da carta do Papa Francisco aos Guarani e Kaiowá durante a Aty Guasu, em Caarapó (MS). Foto: Tiago Miotto/Cimi
A mão humana que ateou o fogo é de alguém cujo rosto e identidade provavelmente seguirão desconhecidos – seja ele indígena ou “Karai”. Mas a mão desumana que tem puxado gatilhos, violentado corpos e causado morte e destruição em meio ao povo Guarani e Kaiowá, seja nos tempos de Marçal ou nos dias atuais, possui um rosto inconfundível. O rosto rude e com ares de maldade do agronegócio.
Trator voraz que a tudo derruba, manifestação visceral do Capital no campo, o agronegócio e seus males associados tem causado contra os povos Guarani e Kaiowá uma verdadeira devastação – com níveis de genocídio. Os números de agressões contra indígenas e seu patrimônio cultural e espiritual, bem como a seus territórios e contra a natureza, seguem aumentando vertiginosamente. Violências que têm sido assistidas de camarote, ocorrido sem pudor e aos olhos de todos e que, há pelo menos uma década, contam ora com conivência, ora com participação dos Governos e do Estado.
Sem conseguir tudo o que almejavam através dos ataques paramilitares e com o avanço de instrumentos de lei no Congresso, ou até mesmo sem ter êxito na validação da tese do marco temporal, líderes do agronegócio, ministros e parlamentares ligados a temática agrária promoveram forte incentivo aos processos de arrendamento e parcerias. No Mato Grosso do Sul, em especial em relação ao povo Kaiowá, estas práticas estabeleceram-se como um problema generalizado com o fortalecimento da Bancada do Boi no Congresso, em especial pós 2014.
Os incêndios ocorreram de forma sistemática e criminosa em pelo menos 10 territórios Guarani e Kaiowá
Na maioria dos casos, o ataque é direto. Grande parte das Casas de Reza no estado são queimadas e/ou destruídas pelos representantes expressos do agro. Fazendeiros, sindicalistas rurais (patronais) ou jagunços atacam as Casas com claro intuito geopolítico de enfraquecer o povo em sua luta territorial. Há séculos são estes os espaços responsáveis pelo fortalecimento da cultura e do modo de vida dos Guarani e Kaiowá. As Oga Pissy também estão ligadas diretamente às boas práticas do território, como as festas, as roças e a expansão geográfica tradicional, que acaba por se chocar com o latifúndio e com a monocultura gerenciados por aqueles que seguem, a despeito do reconhecimento de muitas terras indígenas, avançando com a invasão e o esbulho.
Tornando o cenário muito mais complexo, existem ainda casos onde os ataques a este patrimônio espiritual acontecem a partir dos efeitos do agronegócio no interior das aldeias, sem que seus agentes precisem de envolvimento primário. É sensível a percepção do aumento de casos de violência vinculadas às práticas de arrendamento, por exemplo. Dependentes do recurso dos arrendatários, os indígenas envolvidos acabam tornando-se uma espécie de para-choque do agro em âmbito local, ameaçando e perseguindo lideranças – em especial rezadores, que se opõem às más práticas e lutam pelo processo de demarcação e autonomia em moldes originários.
Outra dimensão complexa do problema são as igrejas neopentecostais. Estas instituições há muito estão instaladas dentro das aldeias, em especial nas reservas criadas pelo já extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), mas é na última década – e não à toa coincidente com o fortalecimento do agronegócio no congresso – que parte delas e de seus pastores aderiram a posturas muito mais agressivas e intolerantes. Seus principais alvos: os Nhanderu e Nhandecy, rezadores e rezadoras, guardiões das Casas de Reza.
O abraço entre as práticas de interiorização do Capital (arrendamento) e a teologia da prosperidade (altamente intolerante) produzem, em especial contra os líderes espirituais Guarani e Kaiowá, mecanismos perigosos em uma realidade em que estes podem sofrer violência e vir a serem assassinados a qualquer momento, por quase qualquer motivação.
Entre janeiro de 2020 e fevereiro de 2024 pelo menos 16 grandes Casas de Reza foram incendiadas. Os incêndios ocorreram de forma sistemática e criminosa em pelo menos 10 territórios Guarani e Kaiowá. Neste mesmo período, a vida de muitas rezadoras e rezadores foram ceifadas, alguns em condições e circunstâncias bárbaras. O cenário indica alerta para o Etnocídio e para a perseguição expressa à espiritualidade e à cultura destes povos.
No mais profundo dos sentidos, os Guarani e Kaiowá sentem dor pela morte da própria Casa de Reza
Para os Guarani e Kaiowá são muitas as dores destes crimes. No sentido patrimonial, em alguns casos se perderam junto com as Casas artefatos seculares do povo. Instrumentos musicais, Mbarakas sagrados, Kurusus, apykas. Itens mágicos protegidos por rezadores e guardiões ao longo do tempo, que protegiam os destinos e garantiam a harmonia do mundo.
No sentido educacional, o desamparo das crianças e jovens que são assolados em muitos casos pelo fantasma do suicídio – entre os Guarani e Kaiowá o problema supera largamente o índice nacional. A Casa de Reza, diferente de outros templos, para além da dimensão que compreendemos como religiosa possui o caráter mais intimo e profundo das práticas educacionais e de transmissão de conhecimento de todo o povo.
No mais profundo dos sentidos, os Guarani e Kaiowá sentem dor pela morte da própria Casa de Reza. As Oga Pissy não são objetos e estão longe de serem inanimados. A Casa tem vida e junto à ela habitam e umbilicalicam-se inúmeras entidades e encantados fundamentais para a manutenção da Vida e da paz no território. Sem estes espaços, os Jara (protetores) vão embora. Problemas, doenças, catástrofes e infortúnios são os novos vizinhos que erguem moradias no seu lugar.
Os filhos e filhas de Nhanderu prometem persistência teimosa e incondicional junto a seus territórios
Marçal, presente: memória dos 40 anos do assassinato de Marçal de Souza Tupã’i. Fotos: Tiago Miotto/Cimi
Frente a tamanha dor de um povo há muito castigado, a resposta dos Guarani e Kaiowá é inacreditável. Incansáveis, apesar dos danos irreparáveis, da intolerância e da perseguição, os filhos e filhas de Nhanderu prometem persistência teimosa e incondicional junto a seus territórios.
Em Kunumi Verá, assim como em cada aldeia atacada, planeja-se o reerguimento da Casa-Mãe. Em mutirão, com força e determinação, o Sagrado haverá de ver um novo sol. Luz que lhe aqueça e não machuque.
O Xiru continuará sendo pilar inequívoco de sustentação para a Terra sem Males. A Oga Pissy de Kunumi fará como fez Marçal, pois o banguela dos lábios de mel não conheceu a morte. Apesar da morte física, vive e seguirá vivendo na luta que não cessa. Seu nome vai sendo aprendido, proferido e rezado por inúmeros jovens, por toda uma nova geração. A cada ano, junto às Casas de Reza que resistirão ao lado dos rezadores, se postam novos yvyraijá (aprendizes). Eles farão a defesa destas moradas-mundo com seus Mbaraka e com seus próprios corpos. Irão reergue-las quantas vezes for necessário assim como o próprio povo Guarani e Kaiowá se reergue após cada massacre.
Neste caminho, de Marçal e do povo Guarani, de marcha, de sonho e de reza, não há fogo que impeça as Oga Pissy de iluminarem um caminho que já está escrito. É o sendeiro que leva um povo livre a uma terra livre e feliz.
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