As ações integram a programação da 3ª Semana de Resistência Camponesa, realizada entre os dias 28 de agosto e 1º de setembro de 2023, em Cuiabá (MT)
Ocupação da Justiça Federal - Cuiabá - MT / Foto: Coletivo de Comunicação da 3ª Semana
No início da manhã desta segunda-feira, 28, cerca de 350 camponesas e camponeses vindos de todas as regiões do estado de Mato Grosso ocuparam, simultaneamente, as sedes da Justiça Federal e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), situados no Centro Político Administrativo (CPA) de Cuiabá.
Na sede do Judiciário federal, o objetivo da ação é denunciar a paralisação da Política Pública de Reforma Agrária por meio de decisões em mandados de segurança do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), referentes à áreas pertencentes à União. A Gleba Mestre I, situada no município de Jaciara (MT), e a Fazenda Cinco Estrelas, em Novo Mundo (MT), são reféns de decisões liminares em dois mandados de segurança, o que impede o assentamento das famílias acampadas há mais de 15 anos,
No Incra, as famílias reivindicam a retomada das terras públicas da União no estado de Mato Grosso e a destinação delas para a Política Pública de Reforma Agrária; a disponibilização de recursos para garantir a estrutura dos assentamentos no estado; a viabilização de estrutura física da Superintendência Regional do Incra e o fortalecimento do Programa de Educação da Reforma Agrária (Pronera).
Outro caso que as famílias camponesas cobram do Incra é o indeferimento dos pedidos de regularização fundiária das áreas griladas nas glebas Gama, no município de Nova Guarita (MT), e Nhandú, em Mundo Novo (MT).
Ocupação Incra MT (Foto: Júlia Barbosa/CPT Nacional)
Terceira edição
A 3ª Semana da Resistência Camponesa tem como objetivo chamar a atenção da sociedade e das autoridades para a importância e a necessidade urgente de reforma agrária em Mato Grosso, além de denunciar casos de grilagem de terras públicas e de judicialização dos processos das famílias camponesas.
A organização da 3ª Semana é da Comissão Pastoral da Terra (CPT-MT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST-MT), entidades diretamente ligadas à pauta da reforma agrária no estado. A iniciativa conta com o apoio do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) e da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE).
> Confira os detalhes da programação
> Acesse aqui imagens da ocupação e demais materiais de comunicação
Pautas de reivindicação da 3ª Semana de Resistência Camponesa para a Justiça Federal, TR1 e Superior Tribunal de Justiça (STJ):
TRF1:
TRF1 - Julgamento dos Mandados de Segurança:
Julgamento das Apelações:
TRF1: Julgamento das Apelações:
TRF1: Julgamento do Mandado de Segurança nº. 1012830-44.2022.4.01.0000 – TRF1 - Relatora Des. Maria do Carmo;
STJ: Julgamento do Pedido de Suspensão de Segurança – processo nº. 0048030-09.2023.3.00.0000 – Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura;
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Mais informações:
Elvis Marques (assessoria de comunicação) 62 99113-8277; Kamila Picalho (Comissão Pastoral da Terra) 66 99662-2764; Devanir de Araújo (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) 65 99932-0803.
Acompanhe todas as informações e atualizações sobre a 3ª Semana de Resistência Camponesa nas redes sociais da @cptnacional, @formadmt e @movimentosemterra.
Por Rosiane Chicuta (CPT Rondônia),
com edição de Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Imagens: CPT Rondônia
Realizado por uma rede de diversos povos indígenas, quilombolas e extrativistas, o IV Encontro dos Povos e Comunidades Tradicionais de Rondônia movimentou a Comunidade Quilombola do Forte, município de Costa Marques, de 19 a 21 de agosto, com o tema: Território e Educação: o Grito de todos os Povos.
O encontro foi um verdadeiro chamado, um grito das comunidades tradicionais para se colocarem na frente da luta, pelo reconhecimento de seus direitos, pela denúncia das violações e injustiças, e pela cobrança da enorme dívida do poder público com estas populações.
O grito desses povos e comunidades tradicionais ecoou no Vale do Guaporé, pedindo por atenções básicas, de saúde, de educação, de ação social. Na mística de abertura do encontro, teve visitação a locais históricos do Forte, como a fornalha, onde um número incontável de negros e indígenas escravizados padeceu na construção. A reflexão sobre todo esse passado foi um momento de intensa emoção: pensar em nossos irmãos e irmãs, negros escravizados, indígenas escravizados que tanto sofreram para poder ter monumentos e construções que trazem status para aqueles que invadiram essas terras, essa nação.
Foi também um momento de intensa reflexão sobre o que os povos comunidades tradicionais podem fazer, enquanto pessoas preocupadas com o espaço onde vivem; enquanto seres humanos que buscam o Bem Viver, que é algo visto como não inatingível de forma nenhuma, portanto, algo que podemos alcançar na prática. É a partilha de tudo aquilo que Deus e a natureza nos oferecem, e que nós, seres humanos, povos tradicionais temos como sagrado, destacamos que o bem viver de verdade só acontece quando trabalhamos de forma coletiva, nós temos o básico para que a vida flua da melhor maneira possível.
Os povos e comunidades tradicionais de Rondônia gritam e continuarão gritando para serem vistos, porque conforme a fala da indígena Camila Puruborá: “Rondônia não é terra do agro, Rondônia não é território da monocultura, Rondônia é Terra dos povos e comunidades tradicionais, Rondônia é terra, território dos povos e comunidades tradicionais. Somos mais de 56 povos indígenas e 09 Comunidades Quilombolas, além das comunidades ribeirinhas extrativistas, que são espalhados por esse estado inteiro.”
Nós precisamos fazer ecoar esse grito de preocupação com o meio ambiente, de preocupação com os recursos hídricos, de preocupação com futuro que é agora. E gostaria também de relembrar a fala do José Amaral, indígena Cujubim, de dizer: “Quem pensa que os nossos governantes estão aí para serem bajulados, estão enganados. Nós somos os patrões deles, nós é que os colocamos onde eles então, nós precisamos cobrar e cobrar mesmo, porque eles têm obrigação de atender, eles não estão fazendo favor. E nós, enquanto moradores da região do Vale do Guaporé, vamos continuar fazendo ecoar a nossa voz, demonstrando a nossa preocupação com as ações do presente, lembrando as falhas do passado e traçando a partir de agora um futuro melhor. Um futuro onde as ações sejam de fato voltada para o Bem Viver dos povos e comunidades tradicionais.”
No segundo dia do Encontro, teve noite cultural. O rasqueado, dança tradicional quilombola, envolveu os participantes.
Assim, está sendo tecida uma rede de resistência e luta desde o ano de 2017, quando se iniciou o primeiro encontro na Comunidade Quilombola de Jesus. A rede se estendeu, realizando o segundo encontro na comunidade Quilombola de Santa Fé – Costa Marques, e o terceiro Encontro na Aldeia Aperoi – Seringueiras já sendo ampliado a todo estado de Rondônia. Estamos no quarto encontro da Rede dos Povos e Comunidades Tradicionais, realizada às Margens do Rio Guaporé., sendo três dias de diálogo e articulações visando garantir os direitos básicos ao acesso a seus territórios. Destacamos a questão das regularizações das áreas dos povos remanescentes, pois em Rondônia, dentre as 09 comunidades quilombolas, apenas 02 foram regularizadas.
E Encontro teve continuidade com debates e trabalhos em grupos: Rodas de conversas, trabalhando temas de interesse dos povos, sendo: Território e educação, saúde, mulheres, juventude e estratégias de fortalecimento da Rede.
Como marco histórico da rede dos povos, o Encontro foi finalizado com uma audiência pública, convocada pela dep. Estadual Cláudia de Jesus (PT), tendo participação de diversos órgãos públicos, que ouviram o grito dos povos na busca de solucionar os problemas que ameaçam e desamparam os povos.
Em carta, a Rede dos Povos do Estado de Rondônia denunciou e exigiu a URGENTE demarcação dos territórios dos parentes indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, camponeses que ainda não tiveram este direito humano básico garantido. Também cobrou que tenham respeito aos territórios já demarcados, com garantia de segurança e integridades destes espaços sagrados de bem viver. A Rede responde ao intento de criar uma articulação ao estilo da Teia dos Povos do Maranhão e da Teia da Bahia, para unir forças entre indígenas, quilombolas, seringueiros e ribeirinhos do estado de Rondônia.
A obra denuncia a realidade cruel da escravidão em fazendas da Amazônia, acompanhando a trajetória de Pureza, a mãe brasileira que se tornou símbolo no combate ao Trabalho Escravo
Por Júlia Barbosa | Comunicação CPT Nacional
Fotos: Reprodução
Na noite de ontem (24), a atriz Dira Paes recebeu o Prêmio de "melhor atriz" por sua atuação como a protagonista do filme "Pureza", no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2023. A obra, produzida por Marcus Ligocki e dirigida por Renato Barbieri, denuncia a crueldade da escravidão em fazendas da Amazônia e é baseada na história de Pureza Lopes Loyola, uma mulher maranhense que, na busca incansável pelo filho desaparecido, se tornou símbolo da luta contra o trabalho escravo. Na época, a CPT auxiliou dona Pureza em sua luta.
"Pureza quebrou muitas barreiras, ela foi muito longe. Ela percorreu muito esse Brasil, foi para lugares aonde ninguém vai, aonde as pessoas não são tratadas como gente", afirmou a atriz durante seu emocionado discurso de agradecimento. Com a nova premiação, o filme já acumula 31 prêmios em 20 países.
Em 15 de junho deste ano, a própria Pureza Lopes recebeu, em Washington, EUA, o prêmio “Heróis no Combate ao Tráfico de Pessoas”, por sua trajetória implacável no combate ao trabalho escravo no Brasil, e se tornou a primeira brasileira a receber o prêmio desde sua criação, em 2004.
O reconhecimento da obra é de extrema importância devido à sua temática tragicamente atual: o trabalho escravo. De acordo com o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da Comissão Pastoral da Terra, só no último ano, 2.516 pessoas foram resgatadas em condições de trabalho análogo à escravidão. Dessas, 2.218 (88%) foram encontradas no campo.
Em 2023, a CPT comemora os 26 anos de sua Campanha Permanente 'De Olho Aberto para Não Virar Escravo', proposta de mobilização contra o trabalho escravo, incentivando a vigilância, construindo ações integradas, apoiando a organização comunitária e a atuação em rede, reivindicando políticas públicas, não apenas para mitigar o problema, mas para identificar e erradicar as raízes do sistema escravocrata moderno, criando alternativas sustentáveis de vida digna.
Por Comunicação CPT Juazeiro/BA
No final da manhã da última quinta-feira (24), as comunidades da região de Angico dos Dias e Açu, em Campo Alegre de Lourdes (BA), ficaram indignadas com a ousadia de uma tentativa de grilagem em seu território tradicional. Ao realizar uma visita rotineira pela área de fundo de pasto, um grupo de integrantes da Associação local encontrou cerca de 15 homens trabalhando em uma construção, na colocação de postes de energia e em tratores, além da abertura de estradas e desmatamento da vegetação nativa.
Ao se aproximarem da obra e questionarem o que estava acontecendo no território das comunidades, os moradores locais identificaram José Dias Soares Neto, conhecido como Zé do Salvo, que disse ser o chefe da referida obra, representando uma empresa chamada Agropecuária Beretta. Desde 2014, as comunidades têm denunciado o Zé do Salvo pelo seu envolvimento nos processos de tentativas de grilagem de terras e ameaças às lideranças comunitárias.
Os integrantes da Associação de Fundo de Pasto de Angico dos Dias e Açu foram surpreendidos também pela presença de cinco policiais militares do estado do Piauí, que queriam garantir a continuidade da obra irregular. Os policiais tentaram intimidar os trabalhadores rurais, ameaçando prendê-los. A postura dos servidores públicos só mudou após os moradores questionarem o que policiais do Piauí estavam fazendo no estado baiano e depois de muito insistir que eles é que eram os verdadeiros donos daquele território.
As comunidades de Angico dos Dias, Açu e do entorno ocupam tradicionalmente esse território há mais de 150 anos. As famílias vivem da criação de animais e da agricultura. Há quase 20 anos, a população vem sofrendo com os danos socioambientais provocados pela mineradora Galvani, que extrai fosfato no meio do território, e com diversas tentativas de grilagens de terras, que se intensificaram na última década.
Ao fundo, postes já instalados. Perfuração para colocação de postes.
Em relação ao episódio da última quinta (24), representantes da Associação de Fundo de Pasto registraram um boletim de ocorrência na Delegacia de Campo Alegre de Lourdes e pretendem acionar o Poder Judiciário para repelir o ato de turbação. Os materiais de construção continuam indevidamente na área das comunidades e o grileiro afirma que não vai parar a obra.
Fotos: Associação de Fundo de Pasto de Angico dos Dias e Açu
Por Dom José Ionilton, Bispo da Prelazia de Itacoatiara (AM) e atual Presidente Nacional da CPT
Artigo publicado originalmente no site cnbb.org.br
A Igreja Católica, em sua história de compromisso nos diversos territórios do Brasil, está se esforçando para acompanhar as comunidades ameaçadas ou vítimas de conflitos socioambientais. Merecem destaque, entre outros, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Conselho Pastoral de Pescadores (CPP), religiosos/as, cristãos leigos/as, paróquias e dioceses empenhados em defesa da vida ao lado das comunidades mais atingidas.
A CPT publica a cada ano o Caderno dos Conflitos no Campo. Em 2022, houve um crescimento elevado da violência contra as pessoas. Foram 553 ocorrências, que vitimaram 1.065 pessoas, 50% a mais do que o registrado em 2021. Isso resultou em 47 assassinatos por conflitos no campo. Os indígenas foram os alvos mais frequentes. Em 2022, 38% das pessoas assassinadas eram indígenas, seguidos por trabalhadores/as sem terra, com 19%, e também por ambientalistas, assentados e trabalhadores assalariados, com 7% cada grupo.
Frente a esta expansão da violência, um dos primeiros frutos concretos do Sínodo para a Amazônia (que é hoje a região mais atacada e disputada) foi a Campanha “A vida por um fio”, rede de entidades inspirada pela Igreja e ampliada a outros organismos e movimentos, voltada à autoproteção de lideranças e comunidades ameaçadas.
A violência no campo e contra a natureza só pode ser superada se houver transparência e acesso à informação sobre os grandes projetos que querem se impor nos territórios. Também precisa de participação pública, acesso à justiça sobre os assuntos ambientais e segurança para os defensores/as dos biomas e dos povos. Todos estes elementos são a base do Acordo de Escazú, o primeiro tratado ambiental de América Latina e Caribe, adotado internacionalmente na cidade de Escazú, Costa Rica, em 2018. O Brasil assinou o Acordo em setembro de 2018, mas até hoje não o ratificou, tornando-o vigente no País. Estamos muito atrasados, já que 18 dos 25 signatários já o ratificaram.
A ratificação do Acordo, que agora depende de uma aprovação do Congresso Nacional, é um passo importante para garantir políticas públicas de Estado, e não de governo, em defesa dos direitos socioambientais. Com o Acordo, se fortalece a participação social, o empoderamento da sociedade civil pelo acesso à informação, a segurança dos defensores/as ambientais.
“A gente não quer mais falar pelas nossas cicatrizes”, comentam as lideranças negras que reivindicam seus direitos. “Quando uma quilombola tomba, a gente se levanta”, declaravam as companheiras de Mãe Bernardete em visita a Brasília com ela, uma semana antes que esta liderança do quilombo Pitanga dos Palmares (BA) fosse assassinada em sua casa.
Por tudo isso, a Igreja apoia com força a ratificação do Acordo de Escazú e se empenha, junto a Movimento homônimo, para que o iter na Câmara seja rápido e eficaz: o grito da natureza e das comunidades ameaçadas o impõe! Naturalmente, só a ratificação não é suficiente: há muito para construir na legislação e nas decisões do poder executivo e judiciário, em defesa dos mais frágeis e da Mãe Terra. Além disso, precisará traduzir o Acordo num Plano Regional que garanta efetiva segurança a quem cuida dos biomas.
Papa Francisco, na encíclica Laudato Si’, já nos indica que o caminho para a proteção da vida nos territórios deve passar pelo protagonismo dos povos que os habitam:
“Para os povos indígenas, a terra não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores.
Em várias partes do mundo, estes povos são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura”.
“Os povos indígenas, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida”. (LS 146).
Há sinais de esperança e sementes que estão germinando, no continente latino-americano. No dia 20 de agosto, no Ecuador, dois referendos aprovaram o sim à vida nos territórios, para além do extrativismo predatório. Foi dito não à mineração na região do Chocó Andino e sim para deixar o petróleo de um setor do Parque do Yasuní debaixo do solo. O povo do Equador compreende que não há futuro se a prioridade continuar sendo o saque da natureza e das pessoas. Precisará ver se seus representantes políticos conseguirão traduzir este anseio em decisões concretas.
Também o Acordo de Escazú representa uma semente de esperança, que precisamos acompanhar e apoiar com decisão. Deus abençoe e acompanhe este processo!
Por Pe. Flávio Lazzarin, agente da CPT Maranhão
Foto: Andressa Zumpano
Recentemente, o bispo de Brejo, no Maranhão, Don Valdeci Mendes, me dizia sobre uma conversa com dona Elena, da comunidade de Baixão dos Rochas, em São Benedito do Rio Preto (MA). Na madrugada do dia 19 de março de 2023, dona Elena, com 65 anos de idade, junto com o esposo doente, o filho e o netinho de 6 anos, foram sequestrados, a noite toda, por jagunços das empresas Bomar Agricultura e Terpa Construções, que invadiram o povoado. Eram quinze criminosos, fortemente armados.
A comunidade tradicional é composta de 25 famílias, lavradoras e extrativistas, que vivem neste território, de cerca de seiscentos hectares, há mais de oitenta anos. Quando ela conseguiu voltar ao Baixão, viu as casas incendiadas, as três casas de farinha destruídas, o saque dos paióis de que levaram farinha e arroz, galinhas roubadas e cachorros matados, árvores frutíferas derrubadas.
Dona Elena, comentando o acontecido, falou para dom Valdeci que logo reconheceu, comovido, o sopro da profecia: “Eu não entrei no conflito, o conflito entrou em mim”. Essa contundente afirmação chegou para mim como a revelação de algo que, até o momento, ainda não tinha entendido verdadeiramente. E, com certeza, não entendi o suficiente até agora.
Obviamente, nunca consideramos os conflitos de terra como se fossem um duelo entre contendentes situados no mesmo patamar e sempre soubemos que envolvem violentos agressores e vítimas inermes. Dona Elena, porém, diz algo para mim que parece novo, mas que descubro ser antigo quanto a conquista e a colonização material e espiritual da Abya Ayala.
Ela diz, com extrema simplicidade, uma verdade sempre ignorada e pisada pelos europeus: indígenas e camponeses não querem o conflito e não sabem o que é o conflito, até quando o capitalismo o cria e o exporta até eles. É algo que é apresentado e disfarçado como dialético, mas, de fato, é sempre unilateral imposição violenta da constitutiva violência do sistema colonialista.
Conflito é heterônimo do capital. Sempre foi assim e também quando as vítimas, em níveis diversos de enfrentamento, reagem à agressão com uma tentativa de violência proporcional, o conflito continua propriedade e responsabilidade de quem o inventou.
Não estou conversando sobre conflituosidade no sentido geral, mas de conflitos de terra, ou melhor, de territórios, que são vividos e lidos pelos povos indígenas, quilombolas e comunidades camponesas tradicionais em termos cosmológicos: para estes povos e comunidades, o ser humano está numa relação de intimidade e reciprocidade com todos os seres vivos, com ancestrais e encantarias, com a terra e a natureza do território em que reproduzem a vida. É esta vida, esta postura existencial, esta espiritualidade, que é agredida pela violência do conflito exportado pelo capital.
Corpos e territórios estão profundamente interligados; por isso, quando dona Elena diz “o conflito entrou em mim”, nos diz mais uma verdade incontestável: a violação do território é inseparável da violação dos corpos. Profecia eminentemente feminina, porque as mulheres indígenas e camponesas, na contramão, também do patriarcado de matriz indígena e afrodescendente, dolorosamente, sabem muito bem o que é corporeidade violada.
O que acontece em Baixão dos Rochas é parte da cotidiana violência do sistema- mundo, que decretou que também o Maranhão é praticamente, com quase todo o seu território, “zona de sacrifício”, indispensável sacrifício, que, como em tantos outros territórios da Abya Ayala e do Planeta, garante os equilíbrios do mercado nas regiões privilegiadas. Em nome da sobrevivência do capitalismo e do bem-estar consumista de parte da humanidade, destroem-se biomas, ecossistemas, territorialidades originárias e tradicionais, comunidades e corporeidades. Agronegócio, pecuária, mineração, obras de infraestrutura e investimentos na produção de energia hidroelétrica, solar e eólica, estas últimas contrabandeadas como sustentáveis, estão matando a Vida. Hoje, porém, resulta inviável este sacrificialismo em função da reprodução do sistema, porque também a vida dos privilegiados, dos negacionistas, dos indiferentes, está ameaçada.
Como não é mais plausível, desde 1991, continuar pensando o conflito em termos de “luta de classes” e de confronto ideológico e bélico entre blocos contrapostos, o resultado da mudança de época é a violência anômica do capital e o estado de exceção.
Em suma, parece mesmo necessário ressignificar o conceito de conflito, a partir também das evidências da realidade. Fazendo um exemplo, talvez excessivamente radical, poderíamos atrevidamente dizer que os campos de concentração nazistas entrariam na lógica conflitual? Atualizando: se o código atual do capitalismo é o extermínio, o genocídio, ainda poderíamos falar em conflito?
Junto com dona Elena, nos é oferecida a possibilidade de ressignificar os conflitos de terra e deixar “o conflito entrar em nós”. Poderemos discernir junto com ela a lógica e a logística do extermínio, que todos se obstinam a definir como conflito, também e sobretudo quando o tratam no teatro do direito constituído, com atores que não querendo e não podendo renunciar a essa ficção, acabam naturalizando a violência contra os pobres e os pequeninhos.
Nos resta uma amorosa indignação, que pode inspirar solidariedade e aliança com as lutas sagradas, cada vez mais fragilizadas, dos atingidos e ameaçados. Sabendo que é só a partir delas e deles que é possível defender e garantir o futuro da Vida.
Esperança esta, que, porém, não se reduz às boas intenções, porque exige atitudes e métodos adequados para as táticas e as estratégias de enfrentamento. Lutar comporta sempre desafios de organização, articulação e mobilização. A luta dos verdadeiros lutadores, das verdadeiras lutadoras, é luta contra o medo, como dizia Margarida Alves: “eu tenho medo, mas não uso”. É também luta, difícil, mas extremamente necessária e urgente, contra as tendências individualistas e autoritárias que marcam a nossa identidade. É ficar atentos para não assumir acriticamente os falsos valores do inimigo, mas apostar em processos radicais de ecumenismo, sinodalidade e colegialidade. A luta é feita também de atenção permanente à realidade e por isso tem que manter vivas as capacidades críticas e estudar. Sempre. E é também lutar contra os capitães do mato e os traidores que quebram os laços de fraternidade e sempre prejudicam o enfrentamento.
Para defrontar-se com todos estes desafios, somos chamados necessariamente a aceitar a companhia de Jesus de Nazaré, dos Santos e Santas, dos Mártires, dos Encantados e Encantadas, Orixás e Ancestrais, acolhendo também quem não abraça uma fé explícita, mas luta como irmã e irmão verdadeiro.
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