A Campanha propõe reflexão sobre a amizade e a solidariedade como dimensão social que promove a paz universal
Por Cláudia Pereira | Articulação das Pastorais do Campo
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou nesta Quarta-Feira de Cinzas (14) oficialmente a Campanha da Fraternidade 2024 com o tema “Fraternidade e Amizade Social” e o lema “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8). A cerimônia de abertura foi realizada no Auditório Dom Helder Câmara, Brasília (DF), por Dom Ricardo Hoepers, secretário-geral da CNBB, com a presença do secretário-executivo de Campanhas da CNBB, padre Jean Poul Hansen, religiosas/os e leigos/as. Este ano, a Campanha celebra 60 anos de ações em âmbito nacional despertando a sociedade para temas sociais, mobilizando a sociedade e promovendo a Coleta Nacional da Solidariedade.
O tema e lema foram escolhidos pelo episcopado diante da realidade que a sociedade brasileira vivenciava no ano de 2022. “Naquele momento, a realidade do povo brasileiro era dividida, polarizada, onde cresce a indiferença, o ódio e a violência. Inspirados pelo Papa Francisco que na sua encíclica Fratelli Tutti nos apresentou o remédio para esse mundo, a Amizade Social, é desejo dos nossos bispos que essa campanha da fraternidade seja curadora das nossas relações, que nós aproveitemos deste remédio.” Afirmou o padre Jean Poul Hansen.
Em comunhão com a Carta Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, a Campanha deste ano sugere que as pessoas possam fazer um caminho quaresmal em três perspectivas: primeiro, incentivar as pessoas a verem as situações de inimizade que geram divisões, violência e destroem a dignidade dos filhos de Deus; segundo, impulsionar as pessoas a iluminar-se pelo Evangelho que as une como família e, terceiro, a agir conforme a proposta quaresmal, de uma conversão constante, promovendo o esforço para uma mudança pessoal e comunitária.
Lançamento da CF 2024 reuniu pessoas religiosas, leigas e representantes de projetos apoiados pela Campanha - Imagem: captura de tela
Durante a cerimônia foi apresentado um vídeo com a mensagem do Papa Francisco para a Campanha, que convida a todos/as para viver o momento de conversão. O pontífice reforçou que a CF 24 possa auxiliar as comunidades no processo da evangelização para superar a divisão, o ódio e a violência.
“Faço votos que a Campanha da Fraternidade uma vez mais auxilie as pessoas e comunidades desta querida nação, o seu processo de conversão ao evangelho de nosso senhor Jesus Cristo, superando toda a divisão, indiferença, ódio e violência confiando esses votos aos cuidados de nossa Senhora Aparecida e como penhor de abundantes graças celestes concedo de bom grado a todos os filhos/as da querida nação brasileira de modo especial a aqueles que se empenham pela fraternidade universal, a bênção apostólica e que continuem a rezar por mim“, diz um trecho da mensagem do Papa Francisco.
Dom Ricardo Hoepers declarou aberta a Campanha, fazendo memória aos 60 anos da existência da Campanha da Fraternidade que é uma ação evangelizadora da Igreja no Brasil. Ele lembrou dos bispos Dom Eugênio Sales e Dom Hélder Câmara, que contribuíram nos primeiros caminhos da campanha e o tema do ano de 1964 que foi: “lembre-se, você também é igreja”. Desde então a CF acontece todos os anos fortalecendo o período quaresmal com temas importantes para a sociedade.
“Precisamos alargar esta tenda, alargar esta mesa, os nossos corações. Que sejamos capazes de reagir com novo sonho de fraternidade, de amizade social que não se limite somente à palavra. É um tempo de revigorar a fé, com jejum, com a penitência e com a oração, mas é tempo de fortalecer a amizade, as nossas pastorais e fortalecer a nossa comunhão. Jamais poderemos cruzar os braços e nos omitir diante daqueles que sofrem as consequências do desprezo, do ódio, da injustiça, da ganância, do mercado e de todo tipo de maldade que gera morte e destruição”. Refletiu Dom Ricardo Hoepers na cerimônia de abertura.
60 anos da Campanha da Fraternidade
A Campanha da Fraternidade nasceu por iniciativa de Dom Eugênio de Araújo Sales, em Nísia Floresta, Arquidiocese de Natal, RN, como expressão da caridade e da solidariedade em favor da dignidade da pessoa humana, dos filhos e filhas de Deus. Assumida pelas Igrejas particulares da Igreja no Brasil, a Campanha da Fraternidade tornou-se expressão de comunhão, conversão e partilha.
A Campanha da Fraternidade possui três objetivos permanentes que são: despertar o espírito comunitário; educar para a vida em fraternidade e renovar a consciência da responsabilidade de todos pela ação da Igreja na evangelização, na promoção humana, em vista de uma sociedade justa e solidária.
Acesse o link para obter materiais informativos sobre a CF2024.
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
e Genésio da Silva dos Santos (Agente da CPT no município de Breves, região do Marajó)
Imagens: Genésio Silva / Equipe CPT Marajó
Em meio ao período de seca e focos de calor em grande parte da Amazônia no ano de 2023, diversas famílias agricultoras acompanhadas pela CPT na região do Marajó (PA) conseguiram resistir na preservação e recuperação da floresta degradada, ao mesmo tempo produzindo alimentos para consumo próprio e comercialização, tudo isto com a ajuda dos Sistemas Agroflorestais (SAF’s).
Os SAF’s são formas de cultivo que trabalham a convivência entre o plantio de árvores nativas e plantas comestíveis numa mesma área, ajudando também na saúde ecológica das lavouras. Ao longo do semestre passado, a CPT atuou na implantação de SAF’s em quatro comunidades acompanhadas nos municípios de Anajás (comunidades de Pedras e Gabriel), Portel (Acangatá) e Breves (Sr. Brabo).
Ao lado do plantio de árvores nativas da região, como açaizeiro, seringueira, castanheira e bacurizeiro, se fazem leiras de 3 em 3 metros, plantando vegetais de origem comestível como hortaliças, cheiro verde, couve, além de plantas de curto prazo de vida e resultado mais rápido de colheita, como melancia, maxixe e milho.
Para o jovem e agente da CPT Genésio da Silva dos Santos, o sistema traz vantagens que vão além dos fatores ambientais e econômicos para a comunidade: “Além da produtividade, o SAF é um importante ato de retomada de território, pois a partir do momento que você cultiva a terra, está apto a tomar posse e cuidar dela, uma vez que aqueles territórios já pertenciam às comunidades, porém estavam sendo tomados por grileiros e fazendeiros.”
“Nós trabalhamos de acordo com o que temos condições de fazer, não pelas moradoras e moradores, mas com eles. Então, damos o ‘pontapé inicial’, combinando um local para implementar e chamando a comunidade pra participar. A partir disto, os demais vão implementando e dando continuidade ao projeto. E tem dado muito certo, porque as comunidades estão vendo o projeto como um incentivo, mesmo de início com aquela surpresa pela novidade”, afirma Genésio.
O agricultor Dob, da comunidade Pedras, em Anajás, comemora as mudanças na forma de pensar e de cultivar a terra, que trouxeram um impacto positivo até na produtividade. Um exemplo foi o cultivo e a colheita do maxixe, que na forma de plantio convencional demorava 2 meses e 15 dias, e agora foi feita com 1 mês e 15 dias.
“O SAF surpreendeu a gente, porque é uma forma de a gente cultivar a terra cuidando dela, não destruindo, e assim tirou aquela forma velha de a gente plantar. Tem sido muito importante também para que a gente ensine para as futuras gerações, jovens, crianças e adolescentes, a importância de fazer esse trabalho, e de que dependemos muito da terra, das árvores, das águas.”
Dob ainda afirma que em 2023, o resultado só não foi melhor por causa do verão muito forte que atrasou a produção, mas agora as chuvas estão voltando. “A gente aqui abraçou a causa. Pretendemos ampliar muito mais esse projeto, tirar novos produtos, porque sem dúvidas, é algo que dá certo, tanto pra preservar a natureza quanto pra gerar uma renda familiar.”
Legenda: Resultados dos Sistemas Agroflorestais implantados na comunidade Pedras (Anajás/PA)
Já Valdivino, morador da comunidade Gabriel, também ficou animado com o SAF: “Gostei muito da proposta, e mesmo com as dificuldades, vou continuar com meu trabalho. No momento ainda não tenho produção, mas a minha esperança é grande. Meu limoeiro tá muito bonito. Em nome de Jesus, vai dar tudo certo.”
A agricultora Maria Aldenora Maia, conhecida na sua comunidade em Melgaço como Maria Maia, teve contato com a agroecologia na escola agrícola, onde realizou o sonho de se formar como técnica em agropecuária. “Antes a minha visão era aquela do agronegócio, mas descobri que a agroecologia e o SAF aprimoram o que a gente já conhecia e fazia, do cuidado com a terra. Não precisa ser uma área grande, não precisa ser longe de casa, é ocupar o espaço dos quintais com diversas culturas pra a nossa alimentação, para a criação de peixe, de frango, e pra gerar uma renda vendendo o excedente. É um ciclo que a gente alimenta os animais e eles alimentam a roça.”
A macaxeira (ou mandioca) é o que Maria chama de “carro-chefe” da produção em sua comunidade, acompanhada de milho, cana-de-açúcar, banana, gergelim, feijão, cará, tomate, pimenta-de-cheiro e outras hortaliças e frutíferas. “Também melhora o ambiente, porque as pessoas varriam, tocavam fogo e queimavam toda a parte orgânica do terreiro, principalmente debaixo das castanheiras, e o que a gente chamava de lixo, hoje a gente sabe que é adubo para as plantas no sistema.”
Hoje atuando como agente da CPT, Maria está à disposição dos jovens no acompanhamento das comunidades: “Eu vejo que a juventude é a menina dos nossos olhos. Nosso povo é extremamente extrativista e resistente às novidades de plantio, mas a juventude é quem acredita, é mais dinâmica, mais disposta, gosta de criar, gosta de novidade. Por isso estou otimista com o trabalho da juventude, contribuindo pra melhorar a segurança alimentar nas famílias e nas comunidades.”
Por CPT João Pessoa
Reprodução cana da Justiça Global no Youtube
O Estado brasileiro admitiu que violou direitos e garantias na condução do processo penal relativo ao homicídio do trabalhador rural Manoel Luiz da Silva, durante julgamento ocorrido nesta quinta-feira (8), na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica.
Durante as alegações finais, representado pela Advocacia Geral da União (AGU), o Estado brasileiro pediu desculpas aos familiares da vítima. "O Estado brasileiro reconheceu a violação às garantias judiciais e à proteção judicial da vítima e seus familiares, visto que, embora o caso tenha ocorrido em 1997, o julgamento final dos dois acusados pelo assassinato somente se deu em novembro de 2013, tempo incompatível com uma duração razoável do processo", afirmou.
O depoimento de Manoel Adelino, filho de Manoel Luiz, expôs o sofrimento vivido pela família desde a data do crime, ocorrido em 19 de maio de 1997, no município de São Miguel de Taipu (PB).
"Esse gesto de reconhecimento da responsabilidade e pedido de desculpas é importante para o mundo inteiro saber o quão o Estado brasileiro foi negligente desde a investigação até a tramitação judicial do caso de Manoel Luiz. Foram 16 anos de sofrimento para a família, que sequer teve um desfecho no qual o mandante e o executor do assassinato fossem devidamente identificados e punidos", pondera Tânia Maria de Souza, coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de João Pessoa, na Paraíba.
A sentença dos juízes da Corte, porém, ainda não tem uma data definida para ser divulgada. "Agora vamos aguardar a decisão da Corte, mas desde já esperamos que o Estado brasileiro tome providências no combate à violência no campo e implemente melhorias em toda a política de Reforma Agrária no país", afirma Tânia.
Em nota, a Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 e a Dignitatis, representantes das vítimas no caso, lamentam que a formalização do reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro "tenha ocorrido apenas diante de uma Corte Internacional, e que não tenha sido acompanhada de uma delimitação precisa sobre os efeitos e limites do reconhecimento".
O texto ainda acrescenta que "as organizações questionam a decisão do Estado brasileiro de reconhecer as violações apenas na audiência na Corte Interamericana, quando poderia tê-lo feito antes, impedindo que se abrisse um espaço de diálogo real com as vítimas e suas representantes quanto aos limites desse reconhecimento, bem como sobre as medidas de não repetição". Leia a nota, na íntegra.
Julgamento de Almir Muniz
Na manhã desta sexta-feira (9), a Corte Interamericana de Direitos Humanos julga o Estado brasileiro pela omissão e não responsabilização dos envolvidos no desaparecimento forçado do trabalhador rural Almir Muniz, ocorrido em 29 de junho de 2002.
Almir Muniz desapareceu após trafegar com seu trator em uma estrada que levava à Fazenda Tanques, no município de Itabaiana (PB). Ele era uma liderança na luta pela terra e fazia parte de um grupo de famílias que reivindicava a criação de um assentamento na região.
Arquivado em 2009, o caso sequer foi levado a julgamento e o corpo do trabalhador nunca foi encontrado. O trator utilizado por Almir foi encontrado quase uma semana depois, no estado de Pernambuco, em meio a um canavial e coberto de lama, dando claros indícios de tentativa de ocultação de provas.
Assim como no caso de Manoel Luiz, as organizações peticionárias da ação na Corte Interamericana de Direitos Humanos denunciam inúmeras falhas e omissões na investigação do desaparecimento de Almir Muniz. A ação é fruto de mobilização da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Justiça Global, Dignitatis e CAMT Advogados Associados, que defendem que o Brasil tome medidas efetivas no combate à violência no campo em todo o território nacional e repare de forma material e imaterial as famílias das vítimas.
Antes do desaparecimento da liderança, foram denunciadas por diversas vezes as violências sofridas pelas famílias das comunidades. Segundo relatos, havia agressões físicas e psicológicas por parte dos capangas da fazenda, que eram comandados pelo policial civil, Sérgio de Souza Azevedo.
Animais foram mortos, tiros eram constantemente disparados durante a madrugada para amedrontar as famílias, casas foram destruídas, crianças eram impedidas de ir à escola, entre tantas outras situações de intimidação. "As famílias saíam de casa toda noite para dormir na mata e voltavam de madrugada para os capangas não perceberem que estavam retornando. Isso era medo de serem agredidas, violentadas. Se formos escutar todas as histórias, é incalculável o drama que as famílias passaram", recorda João Muniz, primo de Almir e agente pastoral da CPT João Pessoa.
Segundo nota divulgada pela Justiça Global, "o julgamento do caso Almir Muniz pela Corte Interamericana será o primeiro caso do Brasil envolvendo o desaparecimento forçado de pessoas no contexto da luta pela reforma agrária e um dos primeiros sobre essa forma de violação de direitos humanos no período pós-88."
A coordenadora da CPT João Pessoa, Tânia Maria, ratifica que "não é normal existir um caso em que um trabalhador está desaparecido há mais de 20 anos e o Estado não se movimentar em nenhum momento para tentar trazer uma solução para a família e a sociedade como um todo".
Caso Manoel Luiz
Manoel Luiz da Silva foi assassinado no dia 19 de maio de 1997, em São Miguel de Taipu (PB). Ele foi baleado por capangas da Fazenda Engenho Itaipu, de propriedade de Alcides Vieira de Azevedo. Outros três trabalhadores que acompanhavam Manoel Luiz presenciaram o crime, mas não ficaram feridos.
Apesar da grande repercussão à época, foram identificadas diversas falhas e omissões durante a investigação policial. Em 2003, dois capangas foram levados a júri, mas acabaram sendo inocentados - o terceiro capanga, apontado como autor dos disparos, nunca foi encontrado. O fazendeiro sequer fora investigado, apesar das denúncias de violência contra ele.
O assassinato de Manoel Luiz impôs um dano irreparável à sua família. A esposa, Edileuza Adelino de Lima, faleceu em 2005 após sofrer de depressão e alcoolismo desde a morte do marido. O filho do casal, Manoel Adelino de Lima, que na época do assassinato tinha quatro anos, foi criado por parentes e não teve condições de concluir os estudos.
"Eu não tenho recordação do meu pai porque eu era muito pequeno quando ele morreu. Mas a perda dele impactou muito na minha vida, na vida da minha mãe. Eu precisei começar a trabalhar com nove anos de idade, por isso não tive a oportunidade adequada de estudar. E depois que minha mãe faleceu, eu fui criado por tia, tio, avó", relata Manoel Adelino, que, recentemente, retornou à região após viver seis anos em Santa Catarina.
Hoje com três filhas, Manoel Adelino espera que a morte do seu pai não seja em vão e que, de alguma forma, a justiça seja feita. "Eu espero que o Brasil cumpra com suas responsabilidades. Não só diante da morte do meu pai, mas de várias outras mortes que ocorreram injustamente. Eu carrego muita dor em pensar que uma pessoa que tirou a vida de outra nunca pagou pelo que fez", afirma.
Conquista da terra
O sangue de Manoel Luiz e Almir Muniz precisou ser derramado para que o direito a um pedaço de terra fosse garantido.
Desde 1998, a Fazenda Taipu, área então reivindicada pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais acampados na época, dá lugar ao assentamento Novo Taipu, em São Miguel do Taipu.
Em 2004, a Fazenda Tanques, no município de Itabaiana, foi desapropriada para fins de Reforma Agrária. O assentamento recebeu o nome de Almir Muniz
Em nome do Estado brasileiro, representantes da AGU pediram desculpas aos familiares da vítima durante audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos realizada nesta quinta-feira (08/02)
Por Assessoria Especial de Comunicação Social da AGU
A advogada da União Taiz Marrão, da Procuradoria Nacional de Assuntos Internacionais, durante a audiência da CIDH - Foto: Reprodução
O Estado Brasileiro reconheceu, nesta quinta-feira (08/02), durante julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que violou direitos e garantias na condução do processo penal relativo ao homicídio do trabalhador rural e integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Manoel Luiz da Silva. Por meio de representantes da Advocacia-Geral da União (AGU), o Estado pediu desculpas aos familiares da vítima durante audiência ocorrida na sede da Corte, em San José da Costa Rica.
Em 19 de maio de 1997, Manoel e outros trabalhadores acampados na fazenda “Amarelo”, no Estado da Paraíba, dirigiram-se a uma mercearia com o objetivo de comprar querosene. No entanto, ao retornarem ao acampamento utilizando um caminho que cortava a fazenda “Engenho Itaipu”, no município de São Miguel de Taipu (PB), os trabalhadores foram agredidos por empregados fortemente armados da propriedade, tendo sido deflagrado tiro de espingarda calibre 12 que vitimou fatalmente Manoel.
O Estado brasileiro reconheceu a violação às garantias judiciais e à proteção judicial da vítima e seus familiares, visto que, embora o caso tenha ocorrido em 1997, o julgamento final dos dois acusados pelo assassinato somente se deu em novembro de 2013, tempo incompatível com uma duração razoável do processo. A AGU também admitiu ter ocorrido desrespeito à integridade física, psíquica e moral dos familiares de Manoel, pois a falha no bom andamento da ação penal no Poder Judiciário resultou em grave sofrimento nos 16 anos de tramitação da demanda.
“Em razão disso, considerando-se a natureza jurídica própria de que se revestem as medidas de reparação por violações dos Estados ao Direito Internacional, o Estado brasileiro manifesta publicamente seu pedido de desculpas aos familiares do Sr. Manoel Luiz da Silva. O Estado brasileiro, assim, reafirma sua plena disposição em honrar os compromissos assumidos internacionalmente quanto à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, afirmou a representante da AGU, a advogada da União Taiz Marrão, da Procuradoria Nacional de Assuntos Internacionais.
Também integraram a delegação brasileira representantes da AGU, do Ministério das Relações Exteriores, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Em declaração oficial da República Federativa do Brasil, o Estado reconhece:
"No caso Da Silva e outros vs. Brasil, em curso atualmente na Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e as organizações não-governamentais Justiça Global, Dignitatis e Comissão Pastoral da Terra alegam que o Brasil violou direitos humanos internacionalmente protegidos diante da suposta falta de diligência na investigação e no processo penal relativos ao homicídio do trabalhador rural e integrante do Movimento dos Sem Terra (MST), o Sr. Manoel Luiz da Silva. [...] De fato, a perda de um ente querido, somada à espera alargada por uma resposta estatal, constitui inelutável violação da integridade psíquica e moral dos familiares do senhor Manoel Luiz da Silva. Em razão disso, considerando-se a natureza jurídica própria de que se revestem as medidas de reparação por violações dos Estados ao Direito Internacional, o Estado brasileiro manifesta publicamente seu pedido de desculpas aos familiares do senhor Manoel Luiz da Silva."
Por CPT João Pessoa
Imagens: Acervo da família e CPT Nordeste 2
O Estado brasileiro será julgado, nos dias 8 e 9 de fevereiro, em San José, na Costa Rica, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), pela omissão e não responsabilização dos envolvidos no assassinato e no desaparecimento dos trabalhadores rurais Manoel Luiz da Silva e Almir Muniz, ocorridos na Paraíba, em 1997 e 2002, respectivamente.
A ação é fruto de mobilização da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Justiça Global, Dignitatis e CAMT Advogados Associados. As peticionárias defendem que o Brasil tome medidas efetivas no combate à violência no campo em todo território nacional e repare de forma material e imaterial as famílias das vítimas.
"Nos dois casos, a gente espera que o Estado brasileiro reconheça que errou. Além disso, queremos que o governo implemente medidas de divulgação do reconhecimento da responsabilidade dele e das ações que estão sendo tomadas para conter esse tipo de violência que, sistematicamente, vem tombando trabalhadoras e trabalhadores camponeses na Paraíba e em todo o país", pontua Noaldo Meireles, assessor jurídico da CPT João Pessoa.
"Também pedimos a criação de um memorial nas comunidades em que os trabalhadores viviam para que todo mundo saiba o que aconteceu ali e que sirva como objeto de pesquisa para que essas histórias não sejam esquecidas", acrescenta o advogado.
O caso de Manoel Luiz foi enviado em 2003 e admitido em 2006 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos - em 2021, chegou à Corte. Já o caso de Almir Muniz chegou à Comissão em 2009, e foi submetido em 2016 à Corte.
Entenda os casos
Manoel Luiz da Silva foi assassinado no dia 19 de maio de 1997, em São Miguel de Taipu (PB). Ele foi baleado por capangas da Fazenda Engenho Itaipu, de propriedade de Alcides Vieira de Azevedo. Outros três trabalhadores que acompanhavam Manoel Luiz presenciaram o crime, mas não ficaram feridos.
Apesar da grande repercussão à época, foram identificadas diversas falhas e omissões durante a investigação policial. Em 2003, dois capangas foram levados a júri, mas acabaram sendo inocentados - o terceiro capanga, apontado como autor dos disparos, nunca foi encontrado. O fazendeiro sequer fora investigado, apesar das denúncias de violência contra ele.
O assassinato de Manoel Luiz impôs um dano irreparável à sua família. A esposa, Edileuza Adelino de Lima, faleceu em 2005 após sofrer de depressão e alcoolismo desde a morte do marido. O filho do casal, Manoel Adelino de Lima, que na época do assassinato tinha quatro anos, foi criado por parentes e não teve condições de concluir os estudos.
"Eu não tenho recordação do meu pai porque eu era muito pequeno quando ele morreu. Mas a perda dele impactou muito na minha vida, na vida da minha mãe. Eu precisei começar a trabalhar com nove anos de idade, por isso não tive a oportunidade adequada de estudar. E depois que minha mãe faleceu, eu fui criado por tia, tio, avó", relata Manoel Adelino, que, recentemente, retornou à região após viver seis anos em Santa Catarina.
Hoje com três filhas, Manoel Adelino espera que a morte do seu pai não seja em vão e que, de alguma forma, a justiça seja feita. "Eu espero que o Brasil cumpra com suas responsabilidades. Não só diante da morte do meu pai, mas de várias outras mortes que ocorreram injustamente. Eu carrego muita dor em pensar que uma pessoa que tirou a vida de outra nunca pagou pelo que fez", afirma.
Almir Muniz desapareceu em 29 de junho de 2002, após trafegar com seu trator em uma estrada que levava à Fazenda Tanques, no município de Itabaiana (PB). Ele era uma liderança na luta pela terra e fazia parte de um grupo de famílias que reivindicava a criação de um assentamento na região.
Arquivado em 2009, o caso sequer foi levado a julgamento e o corpo do trabalhador nunca foi encontrado. O trator utilizado por Almir foi encontrado quase uma semana depois, no estado de Pernambuco, em meio a um canavial e coberto de lama, dando claros indícios de tentativa de ocultação de provas.
Assim como no caso de Manoel Luiz, as organizações peticionárias da ação na Corte Interamericana de Direitos Humanos denunciam inúmeras falhas e omissões na investigação do desaparecimento de Almir Muniz. Antes do desaparecimento da liderança, foram denunciadas por diversas vezes as violências sofridas pelas famílias das comunidades. Segundo relatos, havia agressões físicas e psicológicas por parte dos capangas da fazenda, que eram comandados pelo policial civil, Sérgio de Souza Azevedo.
Animais foram mortos, tiros eram constantemente disparados durante a madrugada para amedrontar as famílias, casas foram destruídas, crianças eram impedidas de ir à escola entre tantas outras situações de intimidação. "As famílias saiam de casa toda noite para dormir na mata e voltavam de madrugada para os capangas não perceberem que estavam retornando. Isso era medo de serem agredidas, violentadas. Se formos escutar todas as histórias, é incalculável o drama que as famílias passaram", recorda João Muniz, primo de Almir e agente pastoral da CPT João Pessoa.
Segundo nota divulgada pela Justiça Global, "o julgamento do caso Almir Muniz pela Corte Interamericana será o primeiro caso do Brasil envolvendo o desaparecimento forçado de pessoas no contexto da luta pela reforma agrária e um dos primeiros sobre essa forma de violação de direitos humanos no período pós-88."
A coordenadora da CPT João Pessoa, Tânia Maria, ratifica que "não é normal existir um caso em que um trabalhador está desaparecido há mais de 20 anos e o Estado não se movimentar em nenhum momento para tentar trazer uma solução para a família e a sociedade como um todo".
Conquista da terra
O sangue de Manoel Luiz e Almir Muniz precisou ser derramado para que o direito a um pedaço de terra fosse garantido.
Desde 1998, a Fazenda Taipu, área então reivindicada pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais acampados na época, dá lugar ao assentamento Novo Taipu, em São Miguel do Taipu.
Em 2004, a Fazenda Tanques, no município de Itabaiana, foi desapropriada para fins de Reforma Agrária. O assentamento recebeu o nome de Almir Muniz.
Serviço:
- 08 de fevereiro, às 12h (horário de Brasília) - Audiência do caso Manoel Luiz
- 09 de fevereiro, às 12h (horário de Brasília) - Audiência do caso Almir Muniz
Os julgamentos serão transmitidos, ao vivo, pelo canal de YouTube da Justiça Global (https://www.youtube.com/@justicaglobal)
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional) e equipe CPT Marajó/PA
Legenda: Uma das famílias de moradores teve sua casa derrubada pela segunda vez / Foto: Comunidade local
Moradoras e moradores da comunidade tradicional Kaloal, localizada na ilha Caviana, zona rural do município de Chaves (PA), denunciam que vêm tendo sua permanência de quase cem anos na terra e território ameaçada, através dos ataques de um fazendeiro que chegou à comunidade. Desde que se estabeleceu no território, ele vem jogando veneno sobre a comunidade, alegando a “limpeza de pasto”, além fazer escavações e cercas com máquinas pesadas, tomando todo o perímetro ocupado pela comunidade para suas atividades coletivas.
A notícia mais recente é da semana passada, no dia 30 de janeiro, quando a família de um dos moradores teve sua casa derrubada pela segunda vez, deixando a comunidade amedrontada, e o morador temendo pela sua vida e de sua família. O crime é fruto de ameaças feitas dias antes, pela insistência do fazendeiro em comprar as propriedades e expandir sua exploração pelo território.
Em 25 de janeiro, duas pessoas que se dizem policiais lotados em Afuá, junto com um homem que se diz encarregado da fazenda (que é, na verdade, a terra da comunidade), chegaram armados na casa do trabalhador, que ele fez depois de ter tido a primeira derrubada, humilharam e ameaçaram a família, exigindo que ele saísse da casa, ou, nas palavras deles, “iriam fazer desgraça por lá”.
Diante das ameaças, a família fez denúncias e registrou boletim de ocorrência na delegacia local, além de abrir um procedimento perante o Ministério Público Estadual (MPE). Segundo a comunidade e o que consta no boletim de ocorrência, um dos suspeitos de praticar a violência é o fazendeiro Rosiris Gianini Moreira Farias, que inclusive responde a processos em outros estados, como o Amapá, sobre o qual falamos em reportagem anterior.
Histórico de conflitos
Tudo começou há cerca de 20 anos, quando um fazendeiro local comprou a posse de um morador, e com o passar do tempo começou a cercar a terra e a impedir os moradores de acessarem os locais de pesca e roça. A comunidade então acionou as autoridades locais, e foi feito um acordo no qual o fazendeiro se comprometeu de não mais cercar, nem impedir o acesso aos locais citados. Há dois anos, o ciclo de violações iniciou novamente, com a chegada deste empresário e fazendeiro.
“A comunidade ainda convive com a presença constante de jagunços armados, vigiando a sua movimentação. Também há drones sobrevoando e por mais de uma vez vieram policiais, inclusive usando a lancha da PM/PA de Afuá, sem ordem judicial. Entraram nas casas do povo e ameaçando com armas em punho. O senhor Jorge e a sua esposa têm sido os mais visados. Esta família inclusive foi atingida por uma baforada de veneno sobre os seus corpos, quando andavam de rabeta no rio. Registros de filmagem mostram os jagunços do fazendeiro passando de avião, soltando veneno em cima deles”, afirmam os moradores. Os danos dos agrotóxicos já fizeram diversas pessoas da comunidade adoecerem e serem socorridas para a cidade de Macapá/AP, a capital mais próxima da região.
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