COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

SÉRIE INSUSTENTÁVEIS *


A cerca de 2 quilômetros da mina Sossego, que extrai cobre na Serra de Carajás, os 1,5 mil moradores da Vila Bom Jesus vivem um cotidiano em que o chão treme e os copos trincam

 

Por Sílvia Lisboa (texto) e João Laet (fotos), Canaã dos Carajás/Pará | Sumaúma

As explosões na mina Sossego acontecem às segundas-feiras, por volta das duas da tarde, aterrorizando Maria de Lourdes da Silva

Às segundas-feiras, por volta das 2 da tarde, o som de um estampido ecoa. O chão treme, os copos trincam, as panelas caem da prateleira. Uma nuvem cinza ascende do chão e cobre as plantações, os animais e as cerca de 300 casas da Vila Bom Jesus, uma das cinco vilas rurais de Canaã dos Carajás, localizada a 21 quilômetros da entrada do município. Caminhonetes brancas somem no horizonte em direção à mina Sossego – de onde a Vale extrai cobre –, cuja barragem de rejeitos fica a apenas 2 quilômetros do povoado, a 397 metros do primeiro lote de assentamento e a míseros 115 metros do Rio Parauapebas.

As explosões semanais realizadas há 20 anos para abrir mais buracos de escavação na mina Sossego da Vale, em Canaã dos Carajás, também lascaram o piso de lajotas de dois cômodos da casa da pernambucana Maria de Lourdes da Silva, de 68 anos, que vive a 2 quilômetros da mina. As paredes da fachada têm rachaduras, o que fez com que as lajotas se desprendessem. Para a Vale, as explosões não provocam os estragos, como conta Maria. O problema, segundo a mineradora, é que a casa é velha. “Eles vêm aqui e dizem que não têm nada a ver com as explosões, que está tudo quebrando porque já tem muitos anos”, conta Maria.

O vilarejo abriga uma comunidade de trabalhadores rurais vindos na sua maioria do Nordeste em 1984. Suas principais ruas são asfaltadas. Tem escola, posto de saúde, lojas de comércio, um bar e uma igreja evangélica. Em 2014, um censo registrou 1,5 mil habitantes que retiram da terra seu sustento e abastecem a feira local, que funciona de segunda a domingo em um pavilhão construído pela prefeitura.

Apesar da infraestrutura e da proximidade, dona Maria e os 1,5 mil moradores da Bom Jesus não existem para a Vale. A vila rural não consta do Relatório de Impacto Ambiental (Rima) apresentado à época da aprovação do projeto, no início dos anos 2000. Não há nenhuma menção à comunidade e às roças entre os 21 indicadores de impacto socioambiental apontados no relatório. Conforme os moradores, a relação da empresa com a comunidade expressa esse desprezo. “Não era para estarmos correndo atrás dela. Era para ela estar preocupada com a gente”, diz José de Sousa Barroso, de 52 anos, mais conhecido como Tio Julio. A exploração minerária rendeu à Vale, só em 2021, 14 bilhões de reais (2,7 bilhões de dólares) pela venda de cobre.

Depois de muita reclamação dos moradores, conta Maria, funcionários da mineradora mediram os decibéis das explosões e a poeira que recobre as roças e os animais. “Naquele dia, a explosão foi bem fraquinha”, disse. “Por que será?”, ironiza. Sua nora, Francileide da Silva, de 40 anos, intervém: “Para mim, o pior são as sirenes. Todo dia 18 de cada mês eles tocam a sirene para simular um acidente. É para nos prepararmos para o rompimento da barragem de rejeitos”, explica. “Se romper, temos de correr para três pontos da vila. Não sei bem por que, talvez seja para morrer todos juntos.”

Há cinco anos, desde o rompimento da barragem de rejeitos de Brumadinho, em Minas Gerais, que matou 270 pessoas e espalhou lama tóxica por 300 quilômetros sobre rios e florestas, os moradores da Bom Jesus vivem em alerta. A sirene soa todo dia 18 do mês, mas Francileide diz escutá-la em sua cabeça todos os dias. “Quando tocar em outro dia, aí é pra valer. Como a gente vive com isso? Eu quero sair daqui. Não aguento mais meu filho enchendo folhas e folhas do postinho [referindo-se às fichas médicas] por causa dos problemas respiratórios das explosões, e eu com essa ansiedade”, desabafa.

O terreno onde Maria de Lourdes e Francileide vivem está na área de servidão da Vale. Isso quer dizer que suas casas estão tão próximas da mina Sossego que ficam dentro da zona que pode ser requerida pela Vale [área de servidão], a qualquer momento, para instalar a infraestrutura necessária à atividade de mineração. Além de ser ignorada pela empresa, a Bom Jesus pode ser a segunda vila rural a ser engolida pelo avanço da mineração da Vale sobre as terras de assentamento – a primeira foi Mozartinópolis (leia abaixo). Maria de Lourdes não sabia disso até 10 de janeiro, quando o advogado da Comissão Pastoral da Terra, José Batista Gonçalves Afonso, leu a lista dos agricultores cujos lotes estão dentro desse perímetro em uma reunião com a comunidade. “A Vale sempre disse que não tinha interesse nenhum na nossa área. Agora descubro que ela tem, sim. Não dá para acreditar em nada do que eles dizem”, lamenta. “Esses dias chegaram a dizer que a poluição das explosões não vai chegar aqui por causa da orientação do vento. Agora eles dominam o vento?”


José Batista Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra, se reúne com moradores da Vila Bom Jesus

A agricultora se referia ao Projeto Bacaba, uma extensão do Sossego para aumentar a extração de cobre que, se aprovado, tornará a vila uma ilha verde cercada por buracos cinzas. A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará informou que o pedido de licenciamento do Bacaba segue em análise. “Já estamos cercados. Não podemos mais pescar no rio [Parauapebas] porque os seguranças da Vale recolhem nosso barco, anzol, até os peixes”, diz Edson. “Mas também não dá mais pra comer os peixes por causa da contaminação.” Os moradores lamentam ainda não conseguirem mais criar galinhas porque os ovos goram [apodrecem por dentro].

Edson flagrou o Parauapebas, conhecido pelas águas caudalosas, ficar com uma coloração azul fosforescente e enviou a imagem ao Ministério Público. Um duto vindo da jazida deságua no Parauapebas próximo à entrada da Sossego pela vicinal. Há um ano, após notar retroescavadeiras no entorno da vila, ele registrou a construção de uma trincheira. “A Vale fez uma trincheira para separar o terreno dela do dos agricultores. Os animais caem e morrem”, conta Edson. A outra barreira é um dique para evitar que eventuais cheias do rio escoem para dentro da mina. “Sabe para onde vai parar essa água? Em cima das nossas roças.” Questionada sobre por que cavou uma trincheira e sobre a poluição das águas, a Vale não respondeu.

O inquérito do Ministério Público Federal (MPF), que investiga a compra de lotes de assentamento pela Vale, também realizará, em conjunto com o Ministério Público do Pará, uma perícia que ficará a cargo da Universidade Federal do Pará para avaliar os impactos socioambientais da mina Sossego na Bom Jesus. “Em 2009, eu pedi providências ao MPF por causa da proximidade com a mina. Catorze anos depois, o inquérito ainda não foi concluído”, diz Batista. “A população fica muito vulnerável, mas temos de insistir.”

A Vale negou haver impactos ambientais relevantes da Sossego na Bom Jesus. Em resposta a SUMAÚMA em janeiro, disse que “mantém os controles ambientais definidos no licenciamento ambiental e monitora a qualidade do ar e da água de suas operações”. Também afirmou que “todos esses controles e monitoramentos são acompanhados pela Semas/PA e foram objeto de vistoria do MP-PA em 2022, que concluiu que a Vale opera dentro dos padrões ambientais definidos por lei”.

Um mês após a visita da reportagem à Bom Jesus, porém, a Semas suspendeu a licença ambiental da Sossego e da Onça Puma (níquel). A SUMAÚMA, informou que a ordem ocorreu “por conta de inconformidade nos relatórios de informação ambiental anuais e no descumprimento de ações de mitigação de impactos decorrentes das atividades de mineração, resultando em conflitos com comunidades próximas à área de influência dos empreendimentos”. A Vale conseguiu retomar as operações nas minas após entrar com liminares na Vara Cível de Canaã dos Carajás e Ourilândia do Norte. Em 3 de abril, o Tribunal de Justiça do Pará derrubou a liminar que autorizava a retomada da Onça Puma e, em 15 de abril, a da Sossego, após analisar os recursos do governo do Pará. As duas minas estão, neste momento, paralisadas.

A exemplo da região do Cristalino (cobre) e do Planalto Serra Dourada (níquel), a Vale deu início à sua estratégia de desmobilizar a resistência na Bom Jesus. Negociou individualmente com dois agricultores e entrou na Justiça para pedir o lote de José Barroso, o Tio Julio. “Um rapaz da empresa esteve aqui fazendo um levantamento para avaliar meu terreno. Disse que voltaria depois com uma proposta. Mas não voltou. Só recebi uma intimação para comparecer na Justiça”, contou o agricultor, que mora na vila desde 1984.


Tio Julio, da Vila Bom Jesus, luta contra a Vale para permanecer no seu lote

Ao lado de vizinhos, Tio Julio organizou uma resistência para denunciar o descaso da Vale com a comunidade. Após ser visitado pelo funcionário da mineradora, dividiu seu lote com outros agricultores para ter mais força na hora da negociação. Não adiantou. Agora ele vai ter de negociar judicialmente a venda de 60% do seu lote de 48 hectares na vila, onde mora desde os 13 anos – a empresa argumenta que seu lote está na área de servidão minerária. A Vale pediu a parte do imóvel rural que fica próxima ao Parauapebas. Sem acesso ao rio, a agricultura fica inviabilizada.

“Eles nos vigiam, sabem que nos organizamos. A Vale odeia trabalhador organizado. Por isso entrou na Justiça contra mim, e a Justiça não me ouviu”, lamenta. Antes de a Vale chegar, a pequena vila rural era conhecida pela produção de hortaliças, criação de galinhas e laticínios. A Vale não respondeu por que entrou na Justiça para pedir as terras do agricultor sem usar a via da negociação prévia.

Tio Julio e os moradores da Bom Jesus com quem SUMAÚMA conversou querem ser remanejados para uma nova terra longe das minas. O início das negociações individuais, no entanto, enfraquece essa alternativa. A esperança agora é com a perícia independente do MPF, que pode atestar os impactos socioambientais há muito denunciados, e com a ação da Semas do Pará, que demonstrou haver inconformidade e descumprimento de parâmetros ambientais na operação da Sossego. Se comprovados os danos ambientais, que estão inviabilizando a agricultura e a pesca e piorando a saúde dos moradores, a Vale pode ser obrigada a transferir os moradores para um novo assentamento. “A gente vê nossa riqueza sair daqui todos os dias de caminhão, e nós ficamos só com as doenças e a destruição”, diz o agricultor Edson Ramos. A empresa, porém, não considera a hipótese de transferência.

Racha Placa: 50 famílias em pé contra a Vale

O impacto da mineração na Bom Jesus repete a destruição de outra vila rural, a Mozartinópolis, situada em uma das vicinais de acesso à S11D em Canaã. Formada por agricultores nordestinos que chegaram ao local entre os anos de 1970 e 1980, a vila era uma comunidade próspera até o início da implantação da mina, três décadas depois. Contava com energia elétrica, água encanada, escola, linhas de ônibus para o município e até um posto da Adepará, a Agência de Defesa Agropecuária do Pará.

Com o início das instalações da S11D, a comunidade começou a ser visitada por funcionários terceirizados da mineradora. Primeiro, colocaram placas proibindo a caça e a pesca no local, o que foi considerado uma afronta, já que se tratava de uma comunidade baseada no extrativismo. Os moradores, então, afastavam as placas, que voltavam ao lugar anterior no dia seguinte. A disputa se estendeu por semanas, até um dos moradores dar uma machadada no aviso indesejado. Ali nascia a Racha Placa, o nome da vila que venceria a queda de braço com uma das maiores mineradoras do mundo.

Seguindo a cartilha da desmobilização social, a Vale fez primeiro um censo das famílias da Racha Placa com a promessa de transferi-las para outra terra. Ao fazer isso, alertava os moradores de que não podiam fazer melhorias nas casas ou expandir as roças porque não seriam indenizados por nada além do previsto. A recomendação soou como uma ameaça, e a promessa virou lenda. Dois anos após o censo, sem notícia sobre a transferência, a Vale partiu para a segunda etapa: as negociações individuais. Convenceu o pastor local, que arrebanhou metade dos fiéis. “Queriam nos tirar a todo custo de lá, propuseram até nos dar uma casa em Canaã. Mas somos agricultores. Queríamos terra para plantar. Não arredamos o pé”, conta Marcos Vinicios Santos, de 38 anos, que chegou à vila vindo da Bahia aos 7 anos com os pais e seis irmãos.

Os que restaram iniciaram protestos. Interromperam por cinco vezes o ramal da Ferro Carajás, onde a ferrovia faz a curva em formato de pera. A Vale aceitou negociar com os assentados, por intermédio de Batista, e com o Incra. Em 2015, após quase 20 anos de disputa e quatro anos após o acerto final, cerca de 50 famílias foram transferidas para o Assentamento União Américo Santana, nas proximidades da Vila Ouro Verde, a 45 quilômetros de Canaã dos Carajás. Os agricultores foram instalados em lotes de 5 alqueires, com casa de dois quartos, curral e poço artesiano – o provimento de água à comunidade entrou como uma contrapartida no licenciamento operacional da S11D. Do Racha Placa, restou apenas o cemitério. A Vale permite o ingresso dos ex-moradores apenas no Dia dos Finados.

Bacia de rejeitos da mina Sossego causa preocupação aos moradores da Vila Bom Jesus

*A série Insustentáveis é uma parceria do Transnational Law Institute, do King’s College de Londres, com SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo

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