SÉRIE INSUSTENTÁVEIS *
Com omissão do Incra, mineradora multinacional brasileira, que há alguns anos comprou terras da União de forma irregular, pressiona agricultores e atua para desmobilizar movimentos sociais. Tudo para ampliar exploração minerária no sudeste do Pará
Por Sílvia Lisboa (texto)* e João Laet (fotos), Canaã dos Carajás/Pará – 2 Maio 2024 | Sumaúma
“Você sabe que isso tudo vai ser destruído?”, informa o agricultor Valdecir Moreira Leite**, de 62 anos, olhando para as colinas cobertas de floresta da porção sudeste da Serra de Carajás, no Pará. A mata imponente se ergue sobre o pomar de Valdecir, onde as árvores frutíferas formam uma cobertura tão espessa que impedem a entrada de sol e o crescimento de vegetação terrestre, expondo o solo avermelhado e úmido. A água verte do cume em uma caixa-d’água de 500 litros que transborda por não dar conta de controlar a vazão. O som embaralha os sentidos: mesmo num dia ensolarado escuta-se chuva. A água gelada e cristalina abastece a casa de Valdecir e de sua mulher e percorre mangueiras fixadas no chão que irrigam o pomar, apinhado de Bananeiras, Mangueiras e Buritizeiros. “Vai tudo virar um imenso buraco, e as serras, uma pilha de rejeitos”, completa em tom resignado o ex-sanfoneiro paranaense de cabelos ondulados grisalhos sob um chapéu de boiadeiro, que aterrou no Pará nos anos 1980. Essa foi a primeira das muitas vezes que Valdecir, integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), repetiria a mesma frase durante a visita às roças de grãos e hortaliças entremeadas na floresta.
Valdecir e Inêz de Sousa, sua companheira de 51 anos, vivem com mais 131 famílias na iminência de serem despejados das terras públicas que a Vale – mineradora multinacional brasileira e maior produtora mundial de minério de ferro do planeta – afirma ter comprado entre 2008 e 2011 para implantar o Projeto Cristalino para exploração de cobre e ouro. Hoje ele se encontra em fase de análise de documentação para licenciamento ambiental, segundo a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas). Se for aprovada, a mina a céu aberto vai desmatar quase mil hectares de floresta conservada, segundo uma nota técnica do Ministério Público do Pará com base no estudo e no relatório de impacto ambiental feito pela mineradora. Meio milhão de árvores tombarão. Pelo menos três cavernas, cuja riqueza arqueológica ainda não foi estudada, serão destruídas para dar lugar a uma cava de onde serão extraídos 16 milhões de toneladas anuais de cobre – e o dobro de rejeitos. Sedimentos que Valdecir antevê no lugar dos cerros por onde verte a água límpida que irriga os pomares e as roças dos mais de cem agricultores.
Desde 2015, grupos de trabalhadores rurais e de ex-assentados da reforma agrária de Canaã dos Carajás travam na Justiça uma disputa desigual com uma das maiores mineradoras do mundo pelo direito à terra. As áreas foram ocupadas por eles em uma reação à expansão minerária e territorial da Vale ocorrida nas últimas duas décadas sobre terras públicas na Serra dos Carajás. Avanço considerado irregular em alguns casos, já que a principal estratégia da mineradora foi comprar terras de assentados da reforma agrária, o que não é permitido por lei – um assentado é considerado um usuário da terra e não pode vender seus lotes a terceiros por um período de dez anos após ter a posse definitiva, o que pode demorar décadas.
Se a Vale conseguir aprovar o projeto de arrancar 16 milhões de toneladas de cobre e ouro da terra a cada ano, a floresta onde vive o agricultor Valdecir Moreira Leite será destruída
Uma análise exclusiva de SUMAÚMA feita na base do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro público obrigatório para todas as propriedades do campo, confirma a cobiça da Vale. A mineradora registrou, em 7 CNPJs ativos no Pará, 182 imóveis rurais que somam 62 mil hectares, território quase equivalente à área urbanizada da cidade do Rio de Janeiro. Dos 182 imóveis que a empresa alega serem seus – o CAR é uma ferramenta autodeclaratória –, 46 aparecem sobrepostos a outros imóveis e dez estão sobre áreas de assentamentos, unidades de conservação ou Terras Indígenas, o que é irregular.
Os imóveis sobrepostos a áreas públicas somam 17,2 mil hectares. A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará, responsável pelo sistema, informa que apura o caso. Os dez registros com sobreposições a assentamentos e outras áreas públicas constam no sistema: seis estão classificados como pendentes; dois, suspensos; um cancelado; um ativo. Caso seja constatado que as informações declaradas são falsas, enganosas ou omissas, diz a Semas, os registros serão cancelados. Os dados do CAR foram apurados em dezembro de 2023.
Segundo um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) feito com base em dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e em processos judiciais, a Vale teria arrematado 58,4 mil hectares de terras na região de Carajás entre os anos 2000 e 2011. Pelo menos 41% (24 mil hectares) são terras públicas da União e de assentamentos pertencentes ao Incra. Entre elas, estão os lotes ocupados e reivindicados hoje por Valdecir e outras 131 famílias na área onde a Vale quer extrair cobre e pelas 447 famílias do Planalto Serra Dourada, onde a mineradora pretendia explorar níquel. As três áreas atualmente ocupadas por trabalhadores rurais, que somam 6.395 hectares, pertenciam a antigos assentamentos.
Em 2008, agricultores assentados em Ourilândia do Norte, também na região da Serra dos Carajás, denunciaram ao Incra que foram pressionados pela mineradora para vender seus lotes, conforme o relatório obtido pela Folha de S. Paulo. À época, a própria Vale reconheceu a compra irregular e firmou um acordo com o Incra. Adquiriu novas terras e entregou-as à União para reassentar as famílias. Mas a sanha por terras públicas não cessou desde a denúncia. Uma reportagem do jornal El País, que registrou o início da resistência dos sem-terra em Canaã, entrevistou assentados que venderam terras à mineradora antes de 2016. Eles disseram que a empresa perguntava se os agricultores tinham o título da terra, mas, “se não tinham, compravam também”.
A Vale obtém lucros bilionários a partir de seus três projetos de grande porte em Canaã dos Carajás: Sossego (cobre), Onça Puma (níquel) e S11D, a maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo. Em 2022, seis anos após a abertura da S11D, registrou 95,9 bilhões de reais (18,6 bilhões de dólares) de lucro, o terceiro maior resultado da história da Bolsa de Valores brasileira, atrás apenas dos ganhos da Petrobras e da própria Vale no ano anterior. No ano passado, o lucro recuou 53,6%, ficando em 39,9 bilhões de reais (7,7 bilhões de dólares), “em função dos menores preços médios realizados e o impacto de perdas cambiais”, segundo a empresa.
Enquanto contabilizava lucros bilionários, a Vale seguiu com as ações de desocupação contra os agricultores de Canaã que tiram seu sustento de pequenas roças entremeadas na floresta e vivem, em sua maioria, em casas de madeira. Em mais de oito anos, com muita luta e suor, eles ergueram acampamentos organizados e produtivos que hoje abastecem com frutas, grãos, verduras e laticínios moradores de Canaã dos Carajás. Lutaram por luz elétrica, construíram escolas, oficina, armazém e centro comunitário para reuniões coletivas – a gestão é compartilhada por quatro ou cinco lideranças em cada um deles. No Planalto Serra Dourada, o acampamento com casas de lona deu lugar a um pequeno vilarejo com construções de alvenaria – a maioria dos agricultores já tem casas e galpões de tijolos como se vivessem ali desde muito tempo. “Ficamos só alguns meses na lona. Erguemos tudo juntos”, orgulha-se Carlenes Pereira Silva, de 53 anos, a liderança feminina do Serra Dourada.
Liderança do acampamento Planalto Serra Dourada, Carlenes Pereira luta contra a ameaça da Vale de expulsar 447 famílias de agricultores
Após a ocupação das famílias, a Vale entrou com mais de 60 pedidos de reintegração de posse para expulsá-las das áreas. Mas, ao entrar com as ações, a mineradora não apresentou à Justiça os títulos definitivos das áreas que alega serem suas. No caso das fazendas Boa Esperança e Vale do Carajás, onde planeja instalar o Projeto Cristalino, retirando Valdecir e seus colegas de suas casas, a Vale apresentou uma escritura e uma promessa de compra e venda das áreas, respectivamente, não os títulos definitivos. No caso do Planalto Serra Dourada, onde estão outras 447 famílias, a Vale teria “doado” a terra, que era de posse da União, à prefeitura de Canaã, mas mesmo assim mantém as ações que pedem a expulsão dos agricultores. A falta de títulos das áreas é um indício de que a gigante da mineração pode ter comprado fazendas públicas irregularmente e sem anuência do Incra.
“Mesmo sem apresentar os títulos das terras, uma exigência da lei brasileira, a Vara de Canaã deu liminares favoráveis à Vale em primeira instância”, critica José Batista Gonçalves Afonso, advogado da CPT, que assumiu a defesa dos trabalhadores rurais. “Denunciei essa apropriação ilegal de terras ao Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e ao Ministério Público em 2009, mas até agora nem o órgão fundiário, que poderia resolver a questão ao regularizar os lotes ou exigir uma contrapartida da Vale, nem o MPF [Ministério Público Federal] tomaram medidas efetivas para proteger os agricultores.” SUMAÚMA entrou em contato com a Comarca de Canaã e de Curionópolis, mas os juízes que deferiram as liminares a favor da Vale não estão mais lotados nas varas. Em contato com as comarcas onde estão lotados, a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Pará informou que os juízes só se manifestam nos autos.
O MPF tem um inquérito aberto sobre o caso e vem desde 2020 cobrando uma posição do Incra, sem sucesso. Em julho de 2022 houve um segundo pedido para o Incra realizar um levantamento fundiário das terras em disputa, que estabeleceria o que a Vale poderia, de fato, ter comprado de forma irregular. O Ministério Público Federal deu prazo de quatro meses para a resposta. Vinte e dois meses e uma mudança de governo depois, ainda não houve retorno do órgão federal, também responsável por assentamentos da reforma agrária. “Queremos nos reunir com o Incra, mas estudamos entrar judicialmente contra o órgão para exigir que essa vistoria seja feita”, disse o procurador Rafael Martins da Silva a SUMAÚMA. “Também estamos avaliando fazer esse levantamento por conta própria.”
A Superintendência Regional do Incra no sudeste do Pará confirmou à reportagem que a Vale pleiteia terras de assentamentos da União. “A dimensão da estrutura fundiária que envolve a exploração minerária da Vale S/A acaba por atingir áreas da União em várias formas de domínio, principalmente em áreas de projetos de assentamentos”, informou o instituto, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). O órgão alegou não ter estrutura atualmente para fazer o levantamento sobre a situação fundiária de cada lote em disputa. Disse, porém, que iniciaria em março um diagnóstico da situação, por intermédio de um convênio com a prefeitura de Canaã dos Carajás. Até o fechamento desta reportagem, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária não havia respondido se começou ou não a fazer o levantamento.
SUMAÚMA questionou a Vale sobre os problemas apresentados nos levantamentos da Comissão Pastoral da Terra e na base do Cadastro Ambiental Rural, o CAR. A empresa não respondeu sobre a compra irregular de terras nem a respeito da sobreposição sobre terras públicas de imóveis rurais que declarou serem seus. Limitou-se a dizer que “os processos de negociação, aquisições de terras, reintegração de posse e/ou de instituição de servidão minerária realizados pela empresa ocorrem conforme previsto em legislação e buscando solução justa e com respeito aos direitos constituídos”. A mineradora disse também que “mantém relacionamento permanente com o Incra, para nivelar sobre os assuntos fundiários, bem como, mantém diálogo constante com movimentos sociais e comunidades próximas às suas operações e projetos”.
A Vale disse ainda que “acredita na agricultura familiar como potencial vocação no estado” e “tem atuado para impulsionar essa e outras atividades econômicas, para além da mineração”.
Sua ofensiva fundiária, no entanto, engoliu a agricultura familiar de Carajás. Em uma tese na qual se debruçou sobre a atuação da mineradora na região, Bruno Malheiro, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, mostra que as lavouras de arroz, feijão, abacaxi, coco, pimenta-do-reino, cacau, café e maracujá praticamente desapareceram entre 2000 e 2015 em Canaã.
A mineração desenha uma geografia econômica e política que vai além das áreas de exploração, segundo Malheiro. Ao implantar uma mina, a Vale imobiliza largas áreas, que serão transformadas em estradas, em prolongamentos da estrada de ferro ou em zonas de exportação. Malheiro e Fernando Michelotti mostram, no livro Quatro Décadas do Projeto Grande Carajás (2021), um mapa da região em que as propriedades da Vale, seus títulos, áreas de interesse e de servidão minerárias aparecem sobrepostos a diversos assentamentos.
“A dinâmica de exploração mineral empreendida por essa empresa na atualidade na região de Carajás pode ser vista como uma espécie de continuidade de uma guerra, não mais entre potências, mas de uma guerra às condições materiais de vida de diversos povos, grupos e comunidades atravessadas pela mineração e todo seu metabolismo social”, escrevem os pesquisadores.
Em abril, a mina Sossego, em Canaã dos Carajás, foi paralisada pela Justiça a pedido da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade por ‘inconformidades nos relatórios ambientais’
A terra prometida
A ocupação de agricultores sem-terra na região de Carajás começou nos anos 1980, incentivada pela ditadura empresarial-militar (1964-1985) como parte da ideologia supostamente nacionalista dos militares brasileiros de “integrar para não entregar [a estrangeiros]” a Amazônia.
Na época, a Vale já minerava a região, que ficara mundialmente famosa pelo então maior garimpo da América Latina, o de Serra Pelada. Explorado por milhares de garimpeiros ilegais, Serra Pelada ficou conhecido pelas imagens assustadoras de um formigueiro humano. Foi nesse mesmo período que a mineradora começou a rasgar a floresta com a expansão da Estrada de Ferro Carajás (EFC). Com 972 quilômetros de extensão, a ferrovia hoje atravessa 27 municípios, 28 unidades de conservação e cem comunidades de agricultores, Quilombolas e Indígenas, para escoar toneladas de minérios desde o sudeste do Pará até o terminal Ponta da Madeira, adjacente ao Porto do Itaqui, no Maranhão – e dali principalmente para a China.
Da reforma agrária à maior mina a céu aberto no mundo
A expansão minerária da Vale na região de Carajás avança sobre assentamentos no sudeste do Pará e inaugura novo capítulo do conflito fundiário
1982
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ainda sob a ditadura empresarial-militar, cria três enormes projetos de assentamento na região, os PAs Carajás I, II e III, para fomentar a migração incentivada pelo setor minerário. Eles cercam áreas de mineração da então Companhia Vale do Rio Doce
1983
O garimpo Serra Pelada, explorado por garimpeiros autônomos, atinge seu pico de atividade e se torna mundialmente conhecido com imagens de um ‘formigueiro humano’ (desativado em 1992)
1990
Os planos de reforma agrária se ampliam com a abertura democrática. Mas a maioria dos assentamentos acaba não sendo regularizada, causando insegurança e conflitos por terra
1996
A região se torna palco do Massacre de Eldorado dos Carajás (a 124 quilômetros de Canaã dos Carajás), onde 19 sem-terra são assassinados pela Polícia Militar, com repercussão internacional
1997
A Companhia Vale do Rio Doce é privatizada
2003
Aproveitando-se da omissão do Incra, a Vale começa a comprar terras de agricultores assentados para expandir seus projetos minerários. Ela teria arrematado lotes dentro dos Projetos de Assentamento Tucumã e Campos Altos, em Ourilândia do Norte, e em Carajás II e III, em Canaã dos Carajás e Curionópolis, o que só é permitido por lei depois de 10 anos da posse definitiva
2009
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) denuncia a Vale por compra de terras irregulares da União (24 mil hectares). O Ministério Público Federal (MPF) abre inquérito para investigar a apropriação de terras públicas pela mineradora, ainda sem conclusão
2012
A Vale obtém licença prévia para explorar a mina S11D, à época considerada o maior projeto da história da mineração
2015
Percebendo a lenta dissolução dos assentamentos, quatro grupos de sem-terra ocupam as áreas públicas que a Vale alega serem dela em Canaã dos Carajás e Curionópolis. Inicia-se uma disputa judicial que se estende até hoje
2016
A mina S11D é inaugurada e abre uma nova era de lucros estratosféricos para a Vale
2017
Reconhecendo a compra irregular de terras de assentamento, a Vale inicia negociação com o Incra para comprar novos lotes e reassentar as famílias, com participação da Comissão Pastoral da Terra
2019
O governo Bolsonaro aparelha o Incra e suspende a reforma agrária. A Vale para de negociar terras com o órgão e muda de estratégia: passa a desmobilizar os movimentos sociais da região e segue ameaçando os agricultores com ações de reintegração de posse
2020
O Ministério Público Federal (MPF) pede ao Incra para realizar levantamento sobre os lotes e terrenos em disputa – o órgão fundiário não atende à solicitação
2022
O MPF dá prazo de quatro meses para o Incra fazer o levantamento – sem sucesso
2024
Em janeiro, o Incra confirma a SUMAÚMA que “a dimensão da estrutura fundiária que envolve a exploração minerária da Vale acaba por atingir áreas da União em várias formas de domínio, principalmente em áreas de projetos de assentamentos” e diz que iniciaria, em março deste ano, o levantamento detalhado das terras em disputa
De olho nos potenciais ganhos bilionários de sua estatal, a ditadura traçou um plano de ocupação para favorecer a então Companhia Vale do Rio Doce (como se chamava a mineradora antes de 2009). Decidiu criar assentamentos para substituir os posseiros e latifundiários que haviam chegado por lá anos antes, incentivados pela mesma ditadura que agora os queria longe. Aos olhos dos militares, os assentamentos garantiriam um maior controle do Estado sobre as terras, que permaneceriam em posse da União
A ideologia da ditadura militar para a Amazônia, responsável por abusos e chacinas de Indígenas, desmatamento massivo, contaminação de rios e conflitos agrários não resolvidos até hoje, apostou então na criação de três enormes projetos de assentamento em 1982, os PAs Carajás I, II e III. Eles ocupavam 75 mil hectares, área maior que a área urbanizada da cidade do Rio de Janeiro, a segunda maior do país. De tão grandes, contavam com núcleos administrativos, os chamados centros de desenvolvimento regional (Cedere). A região ficou conhecida como “terra prometida” para os sem-terra, e os centros de desenvolvimento deram origem, em 1982, ao município de Canaã dos Carajás, batizado com a referência bíblica.
Para resolver os problemas específicos do sul e sudeste do Pará, já nessa época uma região violenta por causa da disputa por terras, a ditadura criou ainda, em 1980, um braço do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, com poder de polícia: o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat). Ligado à secretaria do Conselho de Segurança Nacional, o órgão atuou na regularização fundiária para atenuar os conflitos e proteger as atividades de mineração, adquirindo terras de posseiros, que foram repassadas à União para fins de reforma agrária.
Os assentamentos sofreram resistência dos latifundiários e diversos agricultores foram ameaçados ou expulsos. A partir de 1985, com a redemocratização do país, o Incra começou a enfrentar o poder dos grandes proprietários rurais, agora organizados em torno da União Democrática Ruralista (UDR), espécie de milícia criada em resposta ao surgimento do MST. Os projetos de assentamento da região de Carajás, junto de muitos outros, caíram num limbo administrativo e jurídico pela demora em serem implantados ao mesmo tempo que seguiam atraindo novos agricultores. A maioria jamais foi totalmente regularizada, o que continuou alimentando a tensão. Em 1996, a região de Carajás foi palco de uma das maiores chacinas das últimas décadas: 19 sem-terra foram brutalmente assassinados pela Polícia Militar em um episódio de repercussão internacional conhecido como o Massacre de Eldorado dos Carajás. O crime ocorreu na curva S da Rodovia PA-150, a 124 quilômetros de Canaã.
Caixões dos 19 sem-terra assassinados por PMs, no dia 17 de abril de 1996, em Eldorado dos Carajás. Foto: Jorge Araújo/Folhapress
No ano seguinte, a Companhia Vale do Rio Doce foi privatizada no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB -1995-1998), num processo marcado por denúncias de direcionamento e subavaliação da estatal. Entregue ao mercado, a mineradora iniciou uma agressiva expansão e decidiu avançar sobre o estado do Pará conforme as jazidas de Minas Gerais começavam a dar sinais de esgotamento.
Em 2012, a Vale obteve a licença prévia para explorar a S11D, parte dela situada dentro da Floresta Nacional de Carajás, criada em 1998, ano seguinte à privatização da empresa. A mina foi considerada, na época, o maior projeto da história da mineração e também o maior investimento privado no Brasil na década. Inaugurada em 2016, abriu uma nova era de lucros estratosféricos para a mineradora.
Canaã dos Carajás vive desde então uma explosão demográfica: é o município que mais cresce e o de segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) per capita do Brasil: 894.806,28 de reais (173,4 mil dólares) – a média brasileira é de 42,2 mil reais (8,2 mil dólares). O número de habitantes saltou de 26,7 mil em 2010 para 77 mil em 2022, um aumento de 189%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Grande parte do dinheiro arrecadado com os royalties da mineração (Compensação Financeira pela Exploração Mineral) é usada para custear a máquina pública e asfaltar estradas de acesso às minas. A arrecadação da atividade minerária respondeu em 2019 por 66,3% da receita total da cidade, segundo levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), e foram baixos os investimentos sociais: apenas 0,32% em gestão ambiental, 0,44% em cultura, 1,8% em assistência social e 4,61% em saneamento básico. O estudo conclui que a cidade não está buscando superar a dependência da atividade minerária – e a mina S11D pode estar exaurida em 2060.
Apesar de estar em meio a uma área de floresta, Canaã é uma cidade árida e com poucas árvores. O município se expandiu a partir de uma grande avenida, que agora conta com uma ciclovia e dezenas de lojas de roupas, celulares, móveis, supermercados e postos de gasolina. Por suas asfaltadas ruas, passam pessoas com uniforme de terceirizadas que prestam serviços para a Vale e caminhonetes brancas. Os moradores elogiam os hospitais e tudo parece organizado para o padrão de uma cidade média no meio da Amazônia. A esterilidade urbana, no entanto, destoa da imponente floresta que a rodeia e da riqueza cultural dos acampamentos rurais. Aí estão os contrastes: enquanto há um alto percentual de saneamento básico em Canaã, nas zonas rurais visitadas por SUMAÚMA o que há são fossas.
‘Vaca de dinheiro’
O apetite da Vale, hoje com controle pulverizado no mercado, é resultado de uma política agressiva de expansão e corte de gastos. Pesquisadores apontam esse ímpeto como causa por trás dos desastres de Mariana, em 2015 (em consórcio com o grupo anglo-australiano BHP), e de Brumadinho, em 2019. No total, 289 pessoas morreram nos dois desastres ambientais e um mar de lama tóxica contaminou rios e o solo de Minas Gerais, expandindo-se para além dos limites do estado, nos dois dos maiores crimes ecológicos da história do Brasil.
“Hoje, a Vale é considerada uma cash cow [vaca de dinheiro], ou seja, empresa voltada para gerar dividendos a acionistas”, disse o doutor em sociologia e pesquisador do King’s College de Londres Thiago Aguiar, autor do livro O Solo Movediço da Mineração (Boitempo, 2022). O fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, o Previ, é seu maior acionista, ao lado da mineradora japonesa Mitsui e do fundo de investimentos BlackRock. O trio, no entanto, soma apenas 21% da empresa. O restante está nas mãos de inúmeros investidores na Bolsa. Bolsonaro reduziu a participação da União no comando da Vale, mas a companhia foi beneficiada com volumosas isenções fiscais, que somaram 19,2 bilhões de reais (3,7 bilhões de dólares) apenas em 2021, segundo uma apuração da Fiquem Sabendo, organização especializada no acesso a informações públicas. “A gente nem sabe quem são os donos da Vale” é uma frase repetida pelos agricultores de Canaã, acostumados à velada atuação da companhia. Em Carajás, a exploração minerária fica escondida atrás das serras – só o que se vê é a intensa movimentação de caminhões e máquinas, em estradas recentemente asfaltadas.
Toda essa fome por lucros teve impactos em Carajás. A Vale expandiu seu domínio geográfico comprando irregularmente quatro áreas para implementar dois projetos: o Níquel Vermelho (hoje abandonado) e o Cristalino, de cobre e ouro. Junto à expansão da mina Sossego, em operação desde 2004, o Cristalino faz parte de uma estratégia de aumentar a produção de metais básicos na região de Canaã dos Carajás para abastecer a indústria com matéria-prima para a transição energética, como a produção de baterias para carros elétricos. Se ele for aprovado, a Vale vai escavar a porção sudeste ainda conservada da Serra de Carajás por 24 anos. Os compradores de veículos que não emitem CO2, ironicamente, poderão acreditar que estão investindo na conservação ambiental sem saber dos problemas fundiários, ambientais e de direitos humanos por trás da produção dessas baterias.
As terras irregularmente compradas pela Vale dariam, segundo a empresa, propriedade sobre as fazendas Vale dos Carajás, Boa Esperança, Serra Dourada e São Luis, que ficam sobre os antigos assentamentos ou áreas públicas da União – Carajás II e III. São essas áreas que a CPT considera fruto da apropriação ilegal de terras públicas e que foram ocupadas por trabalhadores sem-terra e ex-assentados em um movimento de resistência único no sudeste paraense.
A empresa logo reagiu às ocupações dos agricultores e entrou com dezenas de ações de reintegração de posse. A Justiça autorizou uma delas em 2015, feita pela polícia, resultando numa ação violenta. A roça de 150 famílias – que ocupavam lotes do Projeto de Assentamento (ou PA) Carajás II dentro da Fazenda São Luís – foi destruída com tratores cedidos pela Vale, segundo os agricultores despejados. “Lembro das mulheres desmaiando vendo as plantações de tomates maduros e milho serem esmagadas”, recorda uma das lideranças, o camponês Edson Ramos. A Fazenda São Luís é composta, de acordo com apuração do próprio Incra, por lotes regularizados do antigo Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins, o Getat, e por terras de assentamento do PA Carajás II, de propriedade da União.
Edson Ramos, da Vila Bom Jesus, mostra uma das trincheiras cavadas pela mineradora. A escavação causa queda e morte de animais
As remoções foram suspensas quando o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) assumiu a defesa dos agricultores. Batista, como é mais conhecido, ajudou na criação de 481 assentamentos na Amazônia no sul e sudeste do Pará. Graças à luta da CPT aliada aos movimentos sociais, mais de 80 mil famílias garantiram na Justiça o direito constitucional à terra.
Para evitar a expulsão dos agricultores, o advogado acionou o Ministério Público do Pará para alertá-lo sobre o fato de que a Vale estava tratando as ocupações como conflitos individuais. O caso, no entanto, era um óbvio conflito agrário, que deveria tramitar na Vara Agrária de Marabá. O MP do Pará entrou na ação pedindo que o processo fosse transferido.
É notório no meio jurídico que, fora das varas agrárias, criadas para resolver disputas coletivas pela posse e propriedade da terra, agricultores familiares não têm vez. A Justiça acatou o pedido do MP do Pará, e os processos começaram a tramitar na Vara Agrária de Marabá, a 220 quilômetros de Canaã. Os agricultores familiares ganharam tempo.
Ao entrar com as ações de reintegração de posse, a própria Vale deu nova munição aos agricultores. A empresa apresentou documentos expirados para comprovar a propriedade das terras. Para atestar a posse ou propriedade, o Código Civil brasileiro determina que seja feito um registro do título da terra e, posteriormente, uma matrícula, que confirma que o imóvel trocou de mãos.
Em um dos pedidos de reintegração de posse das áreas do Projeto Cristalino, por exemplo, a Vale apresentou à Justiça um contrato de promessa de compra e venda da Fazenda Vale dos Carajás. Como a própria natureza do documento deixa claro, esses papéis são apenas promessas que, embora registradas em cartório, não atestam a propriedade. Há ainda outro problema no contrato fornecido pela Vale. A promessa de compra e venda anexada pela mineradora estipula um prazo de um mês para serem concretizadas as outorgas de escritura. Como datam de 2011 e foram entregues à Justiça como prova de posse em 2015, há um hiato de pelo menos quatro anos desde a data estipulada para a outorga da escritura – que até hoje não ocorreu – e sua apresentação como prova da posse à Justiça. Questionada por SUMAÚMA sobre a falta de título e matrícula de uma das áreas do Cristalino, que espera análise de documentos para ser licenciada, a mineradora respondeu que a área está “devidamente matriculada”, mas não enviou o documento solicitado.
A Vale apresentou a matrícula de apenas uma das áreas, situada em Curionópolis e chamada de Fazenda Boa Esperança, mas não anexou o título da terra. A apuração da Comissão Pastoral da Terra com base nos documentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, mostra que seu perímetro se encontra dentro da Gleba Buriti, que é da União. Ou seja, a Vale, ainda segundo a apuração da CPT, teria comprado terras terras griladas. “Solicitamos ao Incra o título dessa terra, mas o Incra nunca respondeu. É de interesse da Vale provar que a terra é dela, por isso devia ter anexado o título ao processo, mas não o fez”, explica Batista. (Em 2009, uma comissão de combate à grilagem de terras solicitou aos cartórios todas as matrículas de terras registradas no Pará. Descobriu que a área “registrada em papel” era quatro vezes maior que a do estado, atestando a grilagem de terras e o caos fundiário que favorece os conflitos.)
Mas a Vale segue brigando pela posse das áreas na esfera jurídica, e a ameaça de uma decisão desfavorável está sempre presente nos assentamentos. “Está nas mãos do Incra resolver esse conflito”, diz Batista, um homem magro que curva a cabeça e olha por cima da armação dos óculos cada vez que encara o interlocutor.
Hoje, o advogado defende o direito à terra para 575 famílias em Canaã dos Carajás e Curionópolis. Cinquenta e sete famílias ocupam a Fazenda Vale dos Carajás e outras 71 vivem na Boa Esperança, onde a Vale pretende implantar o Projeto Cristalino. A Fazenda Serra Dourada, localizada numa região de planalto a 11 quilômetros dali, abriga o maior acampamento, com 447 famílias. No local, a empresa pretendia extrair níquel, mas repassou o direito de exploração à mineradora Horizonte Minerals, com sede em Londres.
Em um lance insólito, durante a disputa judicial com os agricultores do Serra Dourada, em 2018 a Vale “doou” área de 1,6 mil hectares à prefeitura de Canaã, para “contribuir com o desenvolvimento do município”, afirmou no documento de transferência. Ocorre que a área é da União. “A empresa se sente tão à vontade ocupando terras públicas federais que se utiliza desses imóveis para fazer negociações com o poder público e particulares. Se aproveitando da total inoperância do Incra, a Vale promoveu a doação dessa área para a Prefeitura Municipal de Canaã, como se proprietária fosse desses imóveis”, informou Batista à ouvidoria do Ministério do Desenvolvimento Agrário em dezembro do ano passado. Mesmo sem interesse na exploração e sem propriedade da terra, a mineradora mantém os pedidos de reintegração de posse para expulsar as famílias, uma comunidade de 1,5 mil pessoas, entre crianças e velhos, que construíram sozinhas suas casas, com energia elétrica, água encanada e roças que abastecem Canaã.
Na última audiência do caso, a empresa sugeriu uma negociação, negada pelo advogado dos camponeses. “A Vale não tem mais a terra, não tem mais o direito minerário para exploração da terra e quer negociar. Negociar o quê?”, questiona Batista. “Aguardamos que a Justiça encerre esse processo, e os agricultores fiquem na área.” A SUMAÚMA, a Vale confirmou ter repassado o direito minerário, mas não explicou por que segue tentando despejar os agricultores na Justiça.
Com o sucesso dos camponeses em conter o departamento jurídico da Vale, a mineradora mudou de estratégia a partir de 2017. Tirou prioridade da disputa judicial e passou a negociar com o Incra e a CPT a compra de terras para reassentamento em novas áreas, um sinal de que avançara irregularmente sobre áreas públicas. Ofereceu cinco terras em municípios próximos a Canaã. As famílias não aceitaram a oferta, porque as terras eram distantes e não tinham matrícula, uma consequência do caos fundiário na Amazônia.
No final de 2018, a vitória do extremista de direita Jair Bolsonaro (então no PSL) nas eleições presidenciais colocou um fim no caminho da negociação direta entre Vale e o Incra. Bolsonaro suspendeu a reforma agrária, aparelhou o órgão fundiário e nomeou um general para presidi-lo. Além disso, colocou o ruralista e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) Luiz Antônio Nabhan Garcia como secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura.
Com a paralisia do Incra e o fim das negociações, a mineradora iniciou um movimento para sabotar a mobilização dos agricultores.
Assédio na floresta
Em 12 de abril de 2023, Valdecir Moreira Leite recebeu uma ligação de um de seus colegas de acampamento, Adailton, que se mostrava ofegante. Duas funcionárias da Vale estavam almoçando na casa de uma das lideranças. Adailton havia chegado na casa da agricultora Maria Clara Vieira Silva por acaso e se deparado com a cena.
As duas funcionárias passaram a frequentar o acampamento após o Incra se retirar das negociações. Disseram que queriam conhecer as famílias, a produção das roças, e fazer um censo de quem morava em cada lote. Os agricultores as recebiam com café bem adoçado, uma tradição local, mas mantinham certa distância. Era praxe também comunicar às outras lideranças de cada ligação ou visita da Vale.
Maria Clara não havia avisado aos colegas sobre o almoço. Na véspera, em uma das reuniões coletivas, Valdecir a notara mais reservada. Quando propuseram fechar a estrada para impedir as incursões exploratórias da Vale, como forma de pressionar a mineradora, ela disse não concordar. Por que uma liderança tão combativa havia mudado de comportamento?
Logo após desligar o celular com o colega, Maria Clara ligou para Valdecir. “Ela me disse que ‘precisava reunir o povo urgente’. Perguntei o que era aquilo, que não era assim que as coisas deviam ser feitas, que ela não podia tomar nenhuma decisão sozinha”, ele conta. Valdecir percebeu ali que Maria Clara havia “assinado” com a Vale – termo usado pelos agricultores para identificar quem foi convencido pela empresa a sair das terras mediante indenização. Ele contou ter se sentido mal e precisar ser atendido no hospital em Canaã dos Carajás por causa de uma crise hipertensiva. Quando voltou ao acampamento, Maria Clara havia entregue o cargo de liderança.
A agricultora assinou um acordo com a Vale para vender seus 5 alqueires (22 hectares) – após ocupar a terra em 2015, os camponeses a dividiram em lotes iguais. Nos sete meses seguintes, outras 71 famílias também venderam seus lotes. Segundo relatos dos acampados, a mineradora pagou 80% do valor antecipado e condicionou o acerto final à retirada da casa e dos galpões de madeira. A ordem era que nada fosse deixado para trás. Em janeiro, ainda era possível ver restos das tábuas das casas em clarões perto da estrada, e o mato tomando conta das roças.
Na comunidade União do Axixá, metade dos agricultores vendeu seus lotes para a Vale, mas as terras pertencem à União
Não se sabe quanto a Vale pagou a cada família. Os agricultores estimavam 350 mil reais (67,8 mil dólares). Maria Clara afirmou a SUMAÚMA que o valor foi inferior, mas não precisou a quantia – a Vale também não quis informar à reportagem. “A empresa chama um por um, diz que o acordo é confidencial e anota o valor num papelzinho. Se o colono [como os sem-terra se chamam] concorda, ele assina um contrato e sai de lá sem a cópia”, detalha Valdecir. “Eles nem sabem que dia receberão. Elas [as funcionárias] são psicólogas. Entram na cabeça das pessoas. Sabem como convencer, colocar medo, confundir.” O relato de Valdecir foi confirmado por outros acampados e por Batista.
A SUMAÚMA, Maria Clara disse não ter convencido ninguém a aceitar a indenização da Vale. “Antes mesmo de eu tomar a decisão, saí da liderança. Se alguém me seguiu, é por ser uma influência como liderança, mas não vejo isso como convencimento da minha parte”, disse. “Decidi optar por uma negociação individual por já ter oito anos naquela área.” A ex-liderança do acampamento também afirmou ter recebido o valor acordado com a mineradora. “Com o dinheiro eu poderia comprar um pedaço de terra, e a Vale sempre disse que não iria dar terra. Então como eu estava ali havia oito anos, e a promessa da terra não tinha prazo, decidi aceitar. Graças a Deus estou numa terra que posso dizer que é minha, plantando, colhendo e sobrevivendo dela.”
Os camponeses contam que parte da estratégia da empresa é pagar mais à liderança para deixá-la com a missão de convencer os companheiros ou inspirar que outros façam o mesmo. Na antiga Vila Mozartinópolis, destruída para dar lugar à S11D e à extensão da Estrada de Ferro Carajás entre 2008 e 2014, a Vale persuadiu o pastor, que arrebanhou metade dos fiéis. “Quem era crente foi junto”, recorda o agricultor Marcos Vinício Santos, ex-morador da Mozartinópolis, e hoje reassentado no Projeto de Assentamento União Américo Santana, também em Canaã, após uma negociação com a Vale que se estendeu por quatro anos.
Marcos Vinicios Santos vivia na extinta Vila de Mozartinópolis, que se tornou a maior mina de minério de ferro do planeta
Na região do Cristalino, 132 famílias lutam para permanecer na terra ou serem remanejadas para uma área próxima. Resistem à vigilância de seguranças, que percorrem as estradas de chão que serpenteiam a serra, e de funcionárias da Vale – elas ligam com frequência para insistir na venda do lote. “Isso aqui é terra pública, de assentamento. Temos direito a estarmos aqui. Mas, no nosso mundo, os royalties dos minérios valem mais que comida e que a floresta”, lamenta Manoel Alves, uma das lideranças. “Esse é o ‘problema’ daqui: é muita riqueza junta.”
Na ocupação da Serra Dourada, os agricultores contam que seguranças terceirizados entravam nos lotes empunhando documentos que alegavam ser “liminares” dadas pela Justiça. A ação gerava um pânico generalizado, e as lideranças precisavam se reunir com frequência para acalmar os ânimos.
As intimidações foram revidadas pelo grupo da Serra Dourada com cinco mutirões de bloqueio na Estrada de Ferro Carajás e na entrada da S11D. “Uma vez chegamos no protesto e já havia um oficial de Justiça com uma liminar para nos impedir de fechar a ferrovia. A Vale nos espiona”, disse o agricultor Eduardo Nascimento, uma das lideranças, vítima de uma queixa-crime da mineradora. “A gente queria conversar com alguém com capacidade de decisão, mas a empresa se recusava. No último protesto, conseguimos chamar a atenção do ouvidor agrário.” Em quase nove anos de ocupação, o acampamento se tornou uma referência na produção agrícola de Canaã.
Dividir para conquistar
As estratégias da Vale são recorrentes. Autor de uma tese que analisa a relação da mineradora com as populações no entorno das minas, o geógrafo Bruno Malheiro identificou duas frentes de atuação da empresa: a desmobilização social, com pagamentos individuais, e o estímulo ao afloramento das contradições internas nas comunidades. Malheiro entrevistou agricultores, Quilombolas e Indígenas que vivem próximo às minas ou tiveram seus territórios cortados pela estrada de ferro. Os relatos revelaram métodos sistemáticos de persuasão e assédio como ocorrem nos acampamentos de Canaã.
Em depoimento a Malheiro, a cacica Kátia Silene, do povo Gavião Akrãtikatêjê, contou como a Vale conseguiu convencer os Indígenas a aceitarem a duplicação da ferrovia. A atuação descrita pela Indígena é a mesma relatada pelos camponeses no sudeste do Pará. A Terra Indígena Mãe Maria, a 250 quilômetros de Canaã dos Carajás, tem a parte sul do seu território de 62 mil hectares rasgada pelos trilhos: “A Vale vem aqui e negocia comigo, aí ela vai lá no outro e diz: ‘Mas olha, a Kátia aceitou, diz que vai assinar lá pra aceitar a duplicação’. Aí o outro me liga: ‘Vem cá, tu aceitou?’. Aí eu digo: ‘É mentira’. Aí um liga pro outro, e aí descobrimos que ninguém aceitou”.
A Vale usou a mesma tática para desmobilizar os assentados em Ourilândia do Norte entre 2003 e 2007 para erguer a mina de níquel Onça Puma, que teve a licença de operação suspensa pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará em fevereiro deste ano. A mina já havia sido fechada antes sob ordem judicial por causa da poluição do Rio Cateté, que abastece o povo Kayapó Xikrin. À revelia do Incra, a empresa comprou de forma irregular dos agricultores os lotes da reforma agrária, segundo um documento do órgão revelado pela Folha de S.Paulo. À época, os camponeses afirmaram ter se sentido coagidos a aceitar a proposta. “Quem desencadeou essa situação [de desmantelamento dos assentamentos] foi a mineradora, que, mesmo ciente da ilegalidade da situação e sem haver recebido a autorização formal desta autarquia, fez as negociações com os assentados, com proposta altamente sedutora”, apontou trecho do relatório do Incra.
A tática de desmobilização foi até mesmo exportada. Em seu livro Solo Movediço da Mineração, o pesquisador Thiago Aguiar conta a desestruturação de Sudbury, um município minerário do interior da província de Ontário, no Canadá, após a chegada da Vale, em 2006. Acostumada a lidar com a alta rotatividade de trabalhadores e o enfraquecimento dos sindicatos no Brasil, a Vale se viu tendo de negociar salários com o poderoso United Steelworkers, o maior sindicato privado da América do Norte. Lá os acordos são feitos por meio de contratos coletivos firmados entre a empresa e o sindicato. Diante de um impasse na negociação dos salários, a Vale se recusou a assinar o acordo, e os funcionários entraram em greve. Por um ano.
A mineradora não cedeu às exigências e aproveitou a queda no preço do níquel no mercado internacional para reduzir os custos da operação e contratar terceirizados. “A Vale vigiou ativistas e processou as lideranças pelos prejuízos causados pela greve. Isso desestruturou famílias. Houve casos de separações, endividamento e suicídio. Muitas saíram da cidade”, afirma o pesquisador. “A mineradora também trouxe trabalhadores terceirizados de Quebec, o que foi considerado uma afronta para as lideranças sindicais.”
Um dos mineiros canadenses ouvidos por Aguiar relatou a perseguição contra os grevistas: “[Em 2009] eles nos seguiam, nos filmavam, nos processavam. Eu tenho processos contra mim e minha família: acho que tenho três processos diferentes. Após a greve terminar e quando tudo foi resolvido, os processos foram encerrados. Mas isso foi feito para estressar e colocar pressão nas pessoas e em suas famílias”.
Seis anos depois, a estratégia se repetiria em Carajás. O agricultor Edson Ramos e nove outros agricultores foram processados pela Vale após protestarem para permanecer em uma terra pública, a Fazenda São Luiz. Na queixa-crime encaminhada à Justiça, advogados da mineradora escancaram a espionagem corporativa. Anexaram fichas corridas das lideranças, com nome, foto, perfil e placa do carro, tal qual uma investigação policial. “Eles fazem tudo o que podem contra a gente”, afirma Edson. Os críticos são enquadrados por esbulho possessório, termo jurídico que se refere ao ato de tomar posse de um bem sem o devido direito ou autorização. Questionada sobre a denúncia de espionagem por parte dos agricultores, a Vale disse utilizar “legitimamente os meios e recursos previstos na legislação brasileira dentro dos trâmites dos seus processos judiciais”.
Após retomar a área (ainda pertencente à União, segundo o próprio Incra), a mineradora prometeu aos despejados que os incluiria em outros projetos de reassentamento negociados com o Incra e intermediados pela Comissão Pastoral da Terra. Nada disso ocorreu. Raimundo de Sousa, de 67 anos, ainda guarda em uma pasta de plástico o papel que a Vale distribuiu aos assentados em 2019. Nele consta o perfil dos agricultores e a promessa de que ganhariam uma terra e uma casa de dois cômodos. “A Vale não veio para negociar, veio para tomar a terra da gente”, diz o agricultor, que vive em uma casa de madeira no centro da Vila Bom Jesus, sem roça ou pomar em volta, a 2 quilômetros da barragem de rejeitos da mina Sossego.
Enquanto espera ser reassentado, Raimundo de Sousa sofre há anos com os impactos provocados pela mina Sossego
As denúncias de espionagem são conhecidas desde 2004, quando um chefe de segurança da então Companhia Vale do Rio Doce confessou à Polícia Federal ter um banco de dados de Indígenas Gavião e de procuradores de Marabá. Em 2013, um ex-funcionário da mineradora relatou em uma audiência no Senado Federal como a Vale inspecionava as comunidades no entorno dos projetos com escutas telefônicas, infiltração em comunidades e produção de dossiês. Mesmo perdendo os processos contra as lideranças, a Vale costuma levá-los até a última instância.
‘Não nos falta nada’
A menos de 1 quilômetro da casa de Valdecir na porção sudeste da Serra de Carajás, vive Silvanete Alves de Souza, de 51 anos, e o marido, Divaldo de Jesus Nascimento, de 39. Eles ocupam o lote mais alto da Gleba Buriti, uma das áreas públicas cobiçadas pela Vale para exploração de cobre.
Na roça de Silvanete e Divaldo tem arroz, feijão, milho, mandioca-brava, abacaxi e uma variada gama de verduras e frutas. Exceto o milho que se destaca em fileiras, as demais culturas estão misturadas umas às outras, como as árvores da floresta, e são irrigadas pela água que verte da serra e percorre mangueiras fixadas no chão. “Não nos falta nada”, diz a maranhense, que também é a professora do acampamento. O marido emenda: “Quando a gente sobe na montanha, começa a respirar melhor. Tem algo lá que faz querer ficar ali para sempre”, descreve.
Silvanete e Divaldo também chegaram na área em 2015, vindos de outro assentamento, e sonham em se fixar por lá. Gustavo, o sobrinho, foi passar uma temporada com a tia e nunca mais voltou para casa. Lá se vão quatro anos.
Nas incursões pela mata, Divaldo e Gustavo costumam trazer orquídeas para Silvanete, que as amarra com arame nas árvores do pomar. Não raro voltam extasiados com a descoberta de uma caverna.
O Ministério Público do Pará recomenda cautela na análise da documentação para licenciamento ambiental do Projeto Cristalino, a cargo da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará. “Estamos tratando, portanto, de um patrimônio único em todo o território nacional, cuja dimensão e importância ainda não foram investigadas, seja por questões de tempo, metodologia científica, recursos financeiros, interesse político ou quaisquer outras causas (…). Não há dúvida que neste caso aplica-se o ‘Princípio da Precaução’”, recomenda uma nota técnica do MP-PA.
A riqueza arqueológica da região brota da terra como as árvores. Ao capinar a roça, os agricultores já encontraram artefatos que consideram ser rastros dos povos ancestrais da Amazônia. Gustavo guarda com ele uma pedra polida cinza com pontos pretos em formato de um trevo de três folhas descoberta próxima ao milharal.
Se for iniciado, o Projeto Cristalino vai pôr em risco não só cavernas, objetos arqueológicos e a vida de incontáveis mais-que-humanes da região, mas a própria floresta. O agricultor Valdecir não se conforma: “Não sei por que o governo pede dinheiro estrangeiro para conservar a Amazônia se ele mesmo é quem autoriza a destruí-la”.
*Colaborou Reinaldo Chaves (dados) ** Erramos: o texto foi atualizado no dia 2 de maio de 2024 às 2h da tarde, horário de Brasília. O nome e o sobrenome do agricultor Valdecir Moreira Leite foram corrigidos.
*A série Insustentáveis é uma parceria do Transnational Law Institute, do King’s College de Londres, com SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo
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Texto e Fotos: Comunicação CPT Piauí
Edição: Júlia Barbosa (Comunicação CPT Nacional)
Durante os dias 25 e 26 de abril, o Coletivo de Povos e Comunidades tradicionais do Cerrado do Piauí estiveram em Teresina-PI para a Jornada de audiências públicas “Regularização Fundiária e Conflitos no Campo”. As audiências foram propostas pelo próprio Coletivo, com apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT PI) e da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Os representantes do coletivo apresentaram aos órgãos e instituições públicas estaduais e federais a realidade de violências perpetradas sobre os povos e comunidades, descrita no Caderno de Conflitos no Campo Brasil 2023, lançado no dia 22 de abril pela CPT, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília.
Dia 25/04 – Defensoria Pública do Estado
No primeiro dia de audiências, pela manhã, os representantes do coletivo participaram de audiência no auditório Esperança Garcia, na Defensoria Pública do Estado – DPE-PI. Estiveram presentes representantes da Procuradoria Geral do Estado – PGE, da Defensoria Pública do Estado – DPE, do Instituto de Regularização Fundiária e Patrimônio Imobiliário do Piauí – INTERPI, da Defensoria Pública da União - DPU, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, da Comissão de Justiça e Paz da CNBB, da Comissão Pastoral da Terra no Piauí - CPT PI, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos - REDE e de lideranças das comunidades e territórios do cerrado do Piauí.
Na ocasião, a defensora pública do estado, Dra. Karla Andrade, anunciou que será criado mais um núcleo da defensoria pública na região de Bom Jesus, o que irá aproximar um espaço público de defesa das vítimas das violências e violações de direitos, um ponto positivo para as comunidades e territórios. Enquanto isso, a vara agrária permanece em Teresina, sendo instalado em Bom Jesus apenas um polo de apoio, o que não deverá responder à grande demanda de conflitos por terra existentes na região do cerrado.
As lideranças do coletivo denunciaram as violações que sofrem, entre elas, destacam-se as violências de intimidação, ameaças de expulsão, ameaças de morte e tentativas de assassinato. Em seguida, Altamiran Ribeiro, diácono permanente e agente da CPT no Piauí reforçou a grave situação de conflitos, sobretudo na região do cerrado.
“Nós temos pessoas em risco de vida e vai aumentar, porque o agro tem a sua fome de aumentar a produção e as violências continuam com esse avanço“.
Altamiran afirma, ainda, que “os estudos antropológicos do INTERPI são necessários pra comprovar que as comunidades são tradicionais e existem nos baixões e que os processos de regularização fundiária já existentes precisam de celeridade do Estado“. Segundo ele, é urgente que os estudos dos órgãos competentes aconteçam e uma força tarefa seja realizada para regularizar esses territórios tradicionais, pois o cenário pode ser ainda pior com a chegada da pecuária.
“A pecuária da amazônia esta vindo pro cerrado com força, e eles não têm interesse nas planícies, porque nas planícies tem somente soja, eles têm interesse nos baixões, aonde tem água, e onde tem água, tem gente!”, afirmou Altamiran.
Além dos depoimentos das lideranças, Ariomara Alves, agente conselheira da CPT na comunidade tradicional Barra da Lagoa, em Santa Filomena, leu um documento assinado por todas as lideranças presentes, que foi entregue, assinado e assumido o compromisso de todos os órgãos presentes.
O principal encaminhamento dessa audiência foi a criação de um Grupo de Trabalho (GT) com INTERPI, INCRA, DPE, DPU, SSP, CPT-PI e para tratar dos pontos propostos pelo coletivo, além das demandas referentes aos processos das comunidades.
Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos
Na parte da tarde, o coletivo esteve na Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos – SEMARH, reunido com o responsável pelas licenças ambientais, Daniel Magalhães, e o superintendente João Victor Oliveira. Na ocasião, foram apresentadas as denúncias de desmatamento e contaminação das águas por agrotóxico nos territórios. O documento das comunidades também foi entregue à SEMARH, que também se comprometeu de participar do grupo de trabalho proposto pelo coletivo.
Dia 26/04 - Secretaria de Segurança Pública do Estado
No segundo dia da jornada de audiências em Teresina sobre "Regularização Fundiária e Conflitos no Campo”, o Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado do Piauí denunciou as violências causadas pelos grileiros do agronegócio contra as pessoas das comunidades e territórios à Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP). A reunião ocorreu na manhã da sexta feira, dia 26, no centro Guadalupe, bairro Vila Operária. O secretário de segurança não esteve presente na audiência.
Intimidação, ameaças de expulsão, ameaças de morte e tentativas de assassinatos são algumas das violências sofridas pelas famílias em seus territórios. O Coletivo teve a oportunidade de expor os abusos que sofrem ao tentar registrar um simples boletim de ocorrência nas delegacias dos municípios de Gilbués, Santa Filomena e Bom Jesus, por exemplo. Além disso, relataram as ameaças que passam no dia a dia, a letargia e a omissão da polícia em alguns casos.
Juarez Celestino, liderança do território Melancias, localizado no município de Gilbués, falou sobre as deliberações estabelecidas durante o encontro e o quanto é importante momentos como este para que possam chegar a resultados concretos.
"A gente sabe que se não acontecerem esses momentos de articulação, a gente não avança…. a esperança é de que as coisas possam andar mais rápido”, avaliou.
A superintendente de Cidadania e Defesa Social da SSP, tenente coronel Elizete Lima, ouviu as comunidades e informou que irão promover uma formação nas delegacias da região sul do estado, com objetivo de melhorar o atendimento das vítimas de violências.
Na parte das tarde, o Coletivo ainda esteve em reunião com a Conab, EFAPI e SAF para tratar de questões relacionadas à Feira de Agricultura Familiar do Cerrado e demandas da Escola Agrícola do Vale do Gusguéia – EFAVAG, em Cristino Castro.
As lideranças do Coletivo retornam às suas comunidades e territórios com a batalha vencida, mas certos de que a resistência permanece. Assim, seguem juntos e juntas, rumo ao V Encontro das Comunidades, organizado pelo Coletivo de Povos e Comunidades do Cerrado do Piauí e que acontecerá em junho deste ano, no território indígena Morro D’Água, município Gilbués -PI, onde haverá o monitoramento do GT e das demandas levantadas nestes dois dias de audiências.
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Por Luana Bianchin (CPT MT) e Júlia Barbosa (Comunicação CPT Nacional)
Famílias acampadas comemoram decisão favorável da justiça para concretização do assentamento na Gleba Mestre I. Foto: Luana Bianchin.
Na última quinta-feira (25), as famílias acampadas há mais de 20 anos na área da Gleba Mestre I, no município de Jaciara, em Mato Grosso, comemoraram uma vitória resultado dessas duas décadas de luta. A União foi finalmente imitida na posse da área, com a decisão do juiz em 23 de abril deste ano, pela expedição do mandado de imissão na posse, favorável para a concretização do assentamento.
Atualmente, as famílias vivem em uma área de 478 hectares, cuidando e trabalhando na terra que hoje é produtiva. Fruto desse trabalho, semanalmente, cerca de cinco toneladas de alimentos são produzidos e entregues nos municípios de Jaciara, Rondonópolis e Cuiabá, totalizando aproximadamente 20 toneladas de alimentos por mês. Como forma de sensibilizar a sociedade, os trabalhadores e trabalhadoras rurais realizaram uma ação de solidariedade, em dezembro de 2023, com a doação de alimentos produzidos no acampamento.
Linha do tempo do conflito
Os 20 anos de espera que se deram pela morosidade da justiça não decorreram de forma passiva, mas foram permeados de muita luta e reivindicações da comunidade, apesar dos desafios impostos. Em 2014, foi julgada procedente a Ação Reivindicatória, reconhecendo como propriedade da União a área da Gleba Mestre I, sendo previsto na sentença a antecipação de tutela, de acordo com a colheita da cana. Contudo, a imissão na posse demorou 10 anos para ser cumprida.
Em 2019, representante do Grupo Naoum e Usina Pantanal, grileiras da área, impetraram um Mandado de Segurança (MS), que teve como relatora a desembargadora Maria do Carmo, que concedeu liminar suspendendo a decisão de antecipação de tutela. O MS só foi derrubado após o julgamento da Apelação, que ocorreu em 2021, momento em que perdeu o objeto. Contudo, os grileiros impetraram um novo Mandado, que novamente foi distribuído para relatoria da desembargadora Maria do Carmo. Ambos MS impediram por aproximadamente quatro anos que a União fosse imitida na posse de sua área, prolongando ainda mais o contexto de violência vivenciado pelas famílias.
A situação dessas famílias acampadas não é diferente de outros acampamentos. Em meio ao conflito por terra, sofreram e ainda sofrem as mais diversas violências, tanto por parte de grileiros e empresas de segurança privada, quanto por parte do Estado. Em 28 de setembro de 2023, as famílias foram diretamente atingidas por agrotóxicos, utilizados como uma arma química, por meio de pulverização aérea de veneno, causando a contaminação da água consumida pelas famílias e atingindo também as plantações, causando danos irreversíveis à comunidade.
Ainda em 2023, no dia 10 de outubro, ocorreu mais uma ação de violência física perpetrada contra as famílias. Na ocasião, agricultores familiares estavam colhendo o roçado e foram surpreendidos com ação truculenta da Patrulha Rural da Polícia Militar do estado, que sem ordem judicial, estavam derrubando e destruindo cercas de um morador que ocupa a área há mais de 10 anos. Questionados pela ação, os policiais responderam disparando tiros de balas de borracha pelas costas dos trabalhadores, além de agressões com chutes e socos. Um dos trabalhadores ficou gravemente ferido e teve que passar por cirurgia. Segundo os trabalhadores, os policiais estavam acompanhados de grileiros ligados à Usina Porto Seguro e Pantanal/Grupo Naoum.
Ação truculenta da PM em outubro de 2023 deixou dez trabalhadores feridos à balas de borracha. Foto: Luana Bianchin.
Já em 04 de dezembro de 2023, após 4 anos de espera, o Mandado de Segurança foi pautado para julgamento, obtendo decisão favorável às famílias acampadas, com a denegação de segurança. Para que isso fosse possível, diversas articulações da Comissão Pastoral da Terra (CPT) junto aos parceiros foram realizadas, além de cobranças à relatora do processo por meio do Conselho Nacional e Estadual de Direitos Humanos, bem como pela Ministra do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), após o Ministério Público Federal (MPF) ter entrado com uma ação de Suspensão de Segurança.
Este ano, no dia 31 de janeiro, o Juiz Federal do cumprimento provisório de sentença decidiu determinar a execução imediata da decisão, com a imissão da União na posse da área. Contudo, no dia 26 de fevereiro de 2024, o juiz suspendeu, por ora, o cumprimento do mandado de imissão na posse, após contestação dos ocupantes ilegais da área, e intimou a União e o MPF para se manifestarem acerca das petições juntadas.
As manifestações da União e do MPF reafirmaram o contexto de violência vivenciado pelas famílias e a urgência da decisão favorável para a concretização do assentamento. Enfim, na última semana, no dia 23 de abril, o juiz decidiu pela expedição do mandado de imissão na posse da União na área da Gleba Mestre I, concretizada no dia 25 de abril de 2024. Agora, as famílias seguem na resistência, com a fé e a esperança de finalmente conquistarem a terra prometida.
Fotos: Luana Bianchin.
Mobilização dos povos indígenas ocorreu no centro de Manaus (AM) - Foto: Nicoly Ambrosio/ Amazônia Real
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional),
com informações da CPT Regional Amazonas e Cimi Regional Norte 1
Alardeada pelo governador do Amazonas como a solução para o desenvolvimento do estado, inclusive com a presença do vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a extração de potássio em Autazes (AM) tem se configurado como uma realidade cada vez mais irreversível, ignorando os potenciais danos às populações ribeirinhas e principalmente indígenas do povo Mura, que já possuem um protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada elaborado desde 2019. Esse é um direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e que o Brasil tem o dever de cumprir, uma vez que é signatário.
Na última sexta-feira (27), o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) emitiu a licença da exploração da mina pela empresa Potássio do Brasil, e agora o governo licencia o terminal portuário, de onde sairá o insumo mineral mais usado pelo agronegócio. Esta será a maior mina de potássio do país e a segunda maior do mundo, atrás apenas do Canadá.
O porto e o terminal de cargas têm a pretensão de tomar um espaço de 21 mil hectares, se tornando o maior terminal portuário da Região Norte, em área e expectativa de operação de cargas, com cerca de 2,4 milhões de toneladas de potássio/ano. Somente para se ter uma ideia, atualmente a soma do transporte de fertilizantes nos portos de Santarém (PA), Vila do Conde (PA) e Itacoatiara (AM) não chega a 1,7 milhão de toneladas juntos.
Contudo, para as comunidades, organizações e coletivos ligados à Comissão de Defesa dos Direitos Humanos de Parintins e Amazonas, as notícias têm levantado preocupações urgentes devido à busca desenfreada pela exploração de minérios na Amazônia, por parte de empresários e políticos.
“A cidade de Ambrósio Ayres, hoje Autazes, foi implantada em cima das terras nativas sem autorização dos Mura, além dos inúmeros fazendeiros que ao longo dos tempos vêm grilando suas terras. Em todos os empreendimentos da mineração, desde a época do ciclo do Ouro no Brasil, às recentes explorações minerais de Serra Pelada no Pará, Manganês em Macapá, na região de Brumadinho em Minas Gerais, Ferro no Grande Carajás no Pará, o maior beneficiado foi sempre o capital estrangeiro, provocando dizimação dos indígenas, pobreza aos povos da floresta e sua biodiversidade e terríveis acidentes para habitantes de áreas diversas onde a mineração está ocorrendo”, afirma o agente da CPT Amazonas, Manuel do Carmo.
O agente acrescenta que a possível ilegalidade já começa desde a licença ambiental do projeto, que foi concedida pelo Ipaam e não pelos órgãos ambientais federais, como a Funai e o IBAMA, já que se trata de Terra Indígena. No Amazonas, as áreas indígenas têm sido atingidas por mineradoras e garimpeiros em projetos de exploração mineral, também na exploração de gás pela empresa Eneva nos municípios de Silves e Itapiranga, com o apoio do governo do Estado.
Manifestação – Aproximadamente 800 indígenas em contexto urbano, da região metropolitana de Manaus e de municípios vizinhos, como Autazes, Careiro da Várzea, Maués, Borba e Nova Olinda, e também de organizações indigenistas parceiras que apoiam a causa indígena, estiveram presentes no centro de Manaus no dia 19 em preparação ao Acampamento Terra Livre (ATL), se manifestando contra a exploração do potássio em Território Mura. Participaram da mobilização indígenas dos povos Apurinã, Mura, Kokama, Sateré-Mawé, Tikuna, Baré, Kambeba, Tukano e Warao.
Diego Mura, da comunidade Moyray, Terra Indígena (TI) Guapenu, em Autazes, veio com uma delegação de 32 lideranças jovens, mostrando o caminhar lado a lado da ancestralidade e da juventude, e diz que apesar de o Brasil eleger um governo de reconstrução da democracia e de indígenas assumirem cargos importantes nos órgãos públicos, a efetivação dos direitos indígenas está devagar.
“O governo que declarou ser a favor dos povos indígenas está fazendo tudo muito devagar. Poucas demarcações de território, a mineração e outros negócios continuam chegando e desrespeitando os indígenas. Não basta criar política ou estar em algum setor público se não tem recurso. Precisamos de recursos, propostas e planos reais que cheguem nas comunidades”, afirmou.
“A luta continua, não queremos fraquejar neste momento. A gente tem muita coisa para conquistar ainda. Então é como diz a frase: resistir para existir nesse momento tão difícil”, disse a cacica Conceição Kokama, no ato na Praça da Saudade.
Por Nações Unidas Brasil
Maria Aparecida vive há dois no Assentamento Remansão, em Nova Olinda, no Tocantins. Ela e outros 39 vizinhos participaram de um projeto que buscou apoiar o plantio e o manejo do caju no assentamento, com o objetivo de ampliar a renda e reduzir as vulnerabilidades econômicas na região. As atividades incluíram uma capacitação sobre o manejo, oficinas sobre o papel da mulher e dos jovens nos processos produtivos, além da aquisição e plantio de 15.000 mudas de caju.
Maria Aparecida teve participação ativa em todas as atividades, demonstrando entusiasmo em aprender novas técnicas. “O que eu mais gostei foi saber sobre a enxertia [que permite a união de duas plantas diferentes]. Incrível como uma planta dá vida à outra, é uma coisa de Deus”, conta ela.
"Eu amei tudo, porque é um aprendizado na nossa vida", resumiu, acrescentando estar sempre aberta a novos conhecimentos e referindo-se a si mesma como "Maria Desafio", por sua disposição em enfrentar e superar obstáculos.
Maria Aparecida Fernandes, 47, participou de uma iniciativa que fortaleceu seu trabalho e a atuação comunitária.
A iniciativa em Nova Olinda foi implementada pelo UNOPS, organismo das Nações Unidas especializado em gestão de projetos, com recursos oriundos da fiscalização da legislação trabalhista pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).
As oficinas e capacitações ficaram a cargo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que tem atuação no território. O Assentamento Remansão foi criado em setembro de 2001, por meio de portaria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), para assentar 157 famílias.
"A comunidade do Remansão, embora tenha recebido a terra, não teve incentivo para trabalhar nela e garantir sua permanência no local. Por isso, foi selecionada para participar do projeto”, explica a procuradora do Trabalho Cecília Amália Cunha Santos, que atua no município de Araguaína, em Tocantins, e foi responsável pela destinação dos recursos ao projeto.
“O impacto das atividades será significativo, pois eles poderão se beneficiar de uma maior produção de castanha e de um estímulo à produção coletiva, garantindo sua sustentabilidade e permanência no território."
O líder comunitário Cícero Rodrigues também participou das atividades e destacou o potencial econômico do aprendizado. “Ninguém aqui sabia a forma correta de plantar [o caju]. O impacto dessas oficinas é que atraímos mais olhares e trouxemos mais esperança para as famílias, que agora passaram a trabalhar em mutirões”.
O caju produzido no assentamento pode ser usado para a fabricação e/ou comercialização de uma série de produtos, como polpa, sucos, refrigerantes, cajuína, cerveja, cachaça, além da castanha em seus diversos formatos (desidratada, frita, caramelizada, em pó, etc.).
Ao longo da parceria, foram realizadas quatro oficinas com as famílias-alvo, abordando cajucultura, manejo de mudas, plantio, adubação, doenças e tratamentos, além de workshops sobre organização comunitária e o papel das mulheres na produção. As atividades foram planejadas de forma participativa, com dinâmicas populares para facilitar a compreensão dos temas.
“O conjunto dessas ações, que vão da formação ao plantio das mudas, impacta positivamente a comunidade, pois as famílias podem e devem replicar esse conhecimento e seus resultados práticos”, aponta Evandro Rodrigues dos Anjos, que acompanhou os trabalhos pela Comissão Pastoral da Terra. “O próprio município é impactado, porque há aumento da autonomia financeira das famílias e mais renda na região”.
Para a procuradora Cecília, há também ganhos do ponto de vista do acesso a direitos. "O fortalecimento da comunidade previne o aliciamento ao trabalho escravo, que é o objetivo principal da ação: capacitar a comunidade para que seus membros não estejam sujeitos a formas precarizadas de trabalho, permitindo que vivam de maneira sustentável e digna em seu território."
O assassinato de Hariel é reflexo e expõe o tom da falsa conciliação a que os setores anti-indígenas sempre se propuseram
Por Assessoria de Comunicação do Cimi
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) manifesta profunda indignação e tristeza pelo cruel assassinato de Hariel Paliano, de 26 anos, ocorrido na aldeia Kakupli, interior da Terra Indígena (TI) Ibirama La Klãnô, do povo Xokleng, em Santa Catarina. Além dos Xokleng, vivem também no território indígenas dos povos Guarani e Kaingang, ao qual pertencia Hariel.
A notícia do assassinato de Hariel apanhou de surpresa e levou muita dor à delegação Xokleng, Kaingang e Guarani que ainda está na estrada, regressando de Brasília, onde os indígenas participaram, durante a semana, do Acampamento Terra Livre (ATL). Enquanto os povos indígenas estão na capital federal mobilizados de forma democrática e legítima em defesa de seus direitos, recebendo da parte do Estado morosidade e palavras traiçoeiras, nos territórios tradicionais a violência é rápida, ideológica e letal.
Hariel foi encontrado sem vida, com marcas de espancamento e com o corpo queimado, às margens da rodovia que liga os municípios catarinenses de Doutor Pedrinho e Itaiópolis, a cerca de 300 metros da casa em que vivia com sua mãe e padrasto, o líder Xokleng da Aldeia Kakupli.
Trata-se de uma região de conflito pela demarcação da terra indígena. Nos últimos meses, a aprovação e promulgação da Lei 14701/2023, que torna vigente o marco temporal, e a decisão tomada pelo ministro Gilmar Mendes no dia 22 de abril, que manteve a vigência da Lei 14701/2023, foram entendidas como uma vitória dos setores que se contrapõem à demarcação da TI Ibirama La Klãnô, repercutindo no endurecimento do ambiente de tensão que se vive na região.
Por isso, o Cimi continua alertando às autoridades sobre as consequências desastrosas advindas da aprovação e vigência da Lei 14701/2023 e a necessidade de criar um ambiente de paz e tranquilidade na região.
O Cimi se solidariza com os familiares de Hariel Paliano e aos membros dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani.
E, nesse momento de profunda dor e de inseguranças administrativas e jurídicas, o Cimi repudia de forma veemente esse crime hediondo e exige a sua imediata apuração, identificando e punindo os responsáveis.
Hariel Paliano Vive!
Brasília, 27 de abril de 2024.
Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
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