Por *Paulo César Carbonari e **Euzamara de Carvalho
Coluna Direitos e Movimentos Sociais | IPDMS | Brasil de Fato
Direitos humanos servem à luta por libertação, à humanização, que é também um exercício permanente de aprendizagem - Divulgação
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é uma referência para a proteção dos direitos humanos. Foi proclamada pelas Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, há 75 anos. Uma referência porque, ainda que represente um grande passo, está longe de efetivamente incluir a diversidade das dignidades, das humanidades e dos direitos.
Todas as lutas por direitos têm nas defensoras e defensores de direitos humanos impulsionadores/as. Eles/as é que fazem a organização das lutas por direitos, razão pela qual são fundamentais para a realidade de sua efetivação. Eles/as fazem do cotidiano de suas vidas processos coletivos para levar adiante as denúncias e, acima de tudo, o anúncio de novos tempos. Eles/as carregam a “estranha mania de ter fé na vida” e de fazer da vida a luta por causas, muito além de demandas ou de reivindicações. Recebem-nas como legado e as levam adiante, fazendo-as suceder nos/as que vêm. Por isso, um salve também à Declaração sobre pessoas defensoras de direitos humanos, que completa 25 anos.
Direitos são obra humana em permanente construção, por isso são históricos e são profundamente marcados pelas contradições que constituem a dinâmica social, política, econômica e cultural. Se é verdade que buscam normatizar os anseios que dizem dos bens (materiais, simbólicos, espirituais) necessários à vida humanizada, também se prestam à relações funcionais à ordem e são dependentes do que são entendidos como sendo estes bens e a própria humanidade em cada correlação. Relações de classe, de raça/etnia, de gênero/identidade sexual, além de relações geopolíticas, interagem para determinar quais humanos/as cabem na humanidade em cada momento histórico e em razão disso, são abrigados/as pelos direitos humanos.
Mas, então, o que significa o “universal” que está no título da Declaração? Significa dizer que a universalidade, ainda que desejada, não se efetivou nem na própria DUDH.
As diversas lutas por direitos seguem mostrando que ainda não se reconhece e nem se inclui nas mesmas condições, com igualdade e sem discriminação, as diversidades de humanidade, seja em sua efetividade, seja nas concepções que informam a DUDH. Quando foi promulgada, milhões ainda viviam sob o colonialismo; hoje, milhões são os/as que dele sofrem as consequências, mas também as mulheres, os/as negros/as, os/as LGBTIA+, as pessoas com deficiência, as crianças, os idosos, os povos indígenas, enfim, aqueles/as que ainda não viram acontecer na sua vida a realização dos direitos humanos.
As lutas por direitos seguem sendo permanentes e, ainda que se inspirem na própria DUDH e em seu desejo universalista, também denunciam a estreiteza deste universalismo. Por isso, em movimentos insurgentes, seguem exigindo sejam explodidas/implodidas todas as práticas de desumanização ainda vigentes, por manterem humanos/as fora da humanidade, vítimas de violações do patriarcado, da misoginia, da lgbtia+fobia, do capacitismo, do racismo, do etarismo, da exploração e expropriação do trabalho, do capitalismo, enfim, das muitas e persistentes formas de desumanização. Enquanto persistir um/a humano/a vítima de violação ainda não serão realizados universalmente os direitos humanos.
As lutas por direitos seguem também criando novos direitos, lutando pelo seu reconhecimento e pela sua efetivação. Os novos direitos nascem das lutas dos “sem direitos” que, ao colocarem novas exigências, insurgem em denúncia, mas, acima de tudo, anunciam que ainda há sujeitos e direitos que não estão no rol dos direitos humanos e, se ainda não estão ali previstos, então também por isso a universalidade dos direitos humanos segue sem ser efetivamente concretizada.
No Brasil seguimos com um desafio cotidiano de proteger e fortalecer a luta dos defensores e defensoras de direitos humanos. A retomada da democracia, com a vigência de um governo eleito pelo voto popular, apresenta caminhos de possibilidades para efetivação dos direitos humanos na relação com a luta dos seus e suas defensoras. A expectativa materializada na luta diária se ressignifica com a memória da DUDH para a necessária implementação de políticas públicas de acesso, efetivação e promoção dos direitos humanos.
Direitos humanos servem à luta por libertação, à humanização, que é também um exercício permanente de aprendizagem. Estamos desafiados o tempo todo a enfrentar todas as “pedagogas da crueldade” e efetivar práticas de “pedagogias da proteção”, que, diante de tantas desigualdades e discriminações, sigam mostrando ser necessário acreditar e exigir que o “todos” não seja privilégio de poucos, mas efetivamente realidade. Pode parecer impossível, mas, como lembra Brecht, “nada deve parecer impossível de mudar” para quem vive em “tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada”.
Enfim, o mestre Paulo Freire dizia que ninguém educa ninguém... parafraseando, dizemos: ninguém realiza os direitos humanos de ninguém, ninguém realiza os direitos humanos sozinho/a, realizamos os direitos humanos em comunhão, juntos/as, participando diretamente das lutas para sua efetivação e, também, das lutas para destruir aquelas ações que querem colocá-los a serviço da regulação, da ordem e do controle. O desejo de universalização dos direitos humanos segue inspirando a luta pela transformação revolucionária do mundo, para criar “mundos nos quais caibam todos os mundos”.
* Paulo César Carbonari é doutor em filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil), coordenador do Projeto Sementes (apoiado por União Europeia).
** Euzamara de Carvalho é pesquisadora doutoranda no PPGDH/UnB, assessora jurídica da Comissão Pastoral da Terra (CPT), membro da Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires | Publicado originalmente em Brasil de Fato
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Imagem: Acervo Pessoal
Nesta sexta-feira, 08/12, acontece um momento histórico no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), durante a posse da sociedade civil na Presidência do Conselho. Quem assume é a Conselheira Marina Ramos Dermman, pela primeira vez representando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a articulação Via Campesina.
O ato aconteceu durante a Sessão Solene em comemoração aos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em Brasília (DF).
Advogada popular e mestre em Políticas Públicas, Marina atuou como Ouvidora-Geral da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul no biênio 2021-2023.
Confira a entrevista que fizemos com a nova presidenta:
O que representa esse momento de posse da sociedade civil na presidência do CNDH, principalmente neste contexto político que vivenciamos?
Sabemos como os últimos anos foram difíceis para os movimentos sociais, com governos declaradamente contra às demandas populares. O atual governo assumiu o compromisso de efetivar os direitos humanos, e o CNDH é um espaço privilegiado para pressionar pela realização de políticas públicas de direitos humanos. É importante lembrar que o CNDH é construído por várias organizações sociais dos diversos campos, que reflete a pluralidade de pautas do povo brasileiro.
Quais os principais desafios do CNDH no atual contexto dos conflitos no campo, uma vez que esta é uma das muitas demandas de direitos com as quais o Conselho tem a responsabilidade de trabalhar?
De fato, o CNDH é muito demandado em decorrência de conflitos no campo, não só pela disputa territorial, mas também pela ameaça à defensoras e defensores de Direitos Humanos. Dentro do conselho existe uma comissão específica para essas demandas, coordenada pela CONAC e pela CPT. Esta comissão irá realizar missões em alguns territórios e também audiências públicas para dialogar diretamente com a população atingida e, a partir das demandas trazidas ao CNDH, serão propostas recomendações ao Poder Público.
Como você avalia sua caminhada enquanto advogada popular até chegar a este momento? O que você traz das experiências anteriores?
A minha caminhada como advogada sempre foi pautada pela efetivação dos direitos humanos, e pela advocacia popular sempre lutei junto aos movimentos sociais. Durante esses anos ocupei espaços no Conselho de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, na Ouvidoria-Geral da DPE/RS e pude construir pontes entre os movimentos populares e o Poder Público na efetivação de direitos humanos. E essa é uma das experiências que trago ao CNDH.
Por Carlos Alberto Cardoso, assessor da CPT Roraima e professor de sociologia da UFRR
Foto: Daniel Beltrá/Greenpeace
A Amazônia, reconhecida por sua biodiversidade e seu papel crucial no equilíbrio climático global, enfrenta atualmente um dos desafios mais prementes de sua história: a seca. Esse fenômeno, agravado pelos efeitos da crise climática que já vivenciamos, tem repercussões sérias para a região, afetando ecossistemas, a sociedade local, em especial moradores das periferias das grandes cidades, ribeirinhos, agricultores familiares e comunidades indígenas, além da geração de energia nas nas controversas Usinas Hidrelétricas (UHEs).
É verdade que o cenário de seca não é novidade para a região, pois em 2005 e 2010 a Amazônia já enfrentou secas severas, com redução dos leitos de rios importantes, lagos e igarapés, resultando na mortandade de peixes e botos devido ao aquecimento das águas e à redução de oxigênio. Além disso, houve desabastecimento de água em várias comunidades. No entanto, este ano, essas manifestações têm sido mais intensas, alertando para a necessidade de atenção diante da gigantesca interferência humana na região, incluindo desmatamento, queimadas, construção de rodovias, mineração, agronegócio e hidronegócio, juntamente com fenômenos naturais como o El Niño. Esses elementos demandam uma resposta mais efetiva da sociedade, das prefeituras, dos estados e da União, especialmente quando existem alertas prévios para esses eventos climáticos extremos.
A seca na Amazônia é resultado de uma interação complexa de fatores, com a crise climática desempenhando um papel central. O aumento global da temperatura contribui para a diminuição das chuvas e o aumento da evaporação, impactando diretamente a disponibilidade hídrica na região. Adicionalmente, o desmatamento ilegal e as queimadas criminosas agravam a situação, comprometendo ainda mais todo o sistema.
Os impactos da seca abrangem uma gama ampla e diversificada de ecossistemas, tanto aquáticos quanto terrestres. A redução dos rios, lagos e igarapés coloca em perigo a sobrevivência de várias espécies animais e vegetais. As comunidades locais, que dependem diretamente desses recursos hídricos, enfrentam escassez de água para consumo, dificuldade para produção agrícola e pesca, impactando diretamente em sua segurança alimentar e nutricional e na qualidade de vida. Em um local reconhecido mundialmente como o paraíso das águas, nos deparamos hoje com um cenário de escassez de água, barcos encalhados em rios outrora caudalosos, mesmo em períodos mais secos, fauna e flora sofrendo, e comunidades lidando com a falta de água.
No caso específico do Brasil, ao menos nos últimos 60 anos, ocorreu uma ocupação mais intensa desse vasto território, com processos migratórios e políticas estatais de deslocamento humano para a região, essas ações foram seguidas por um conjunto de obras de infraestrutura, investimentos e apoio para mineração, rodovias, agronegócio e hidrelétricas, sem considerar quais os reais impactos sociais e ambientais que esses grandes projetos proporcionariam para a Amazônia.
No caso específico das usinas hidrelétricas, que são uma das principais fontes de energia do Brasil e da Amazônia, representando uma parcela significativa da matriz energética do país, a implementação desses projetos na região é extremamente controvertida, especialmente por seus impactos ambientais e sociais associados.
As UHEs modificam drasticamente os ecossistemas fluviais, inundando vastas áreas de floresta e resultando na perda de habitats naturais e biodiversidade. Além disso, a variação do fluxo dos rios afeta a dispersão de nutrientes e sedimentos, interferindo nos ciclos naturais dos ecossistemas.
A construção das UHEs frequentemente leva à remoção forçada de comunidades locais, resultando em deslocamento, perda de terras e desestruturação social e familiar. Essas comunidades muitas vezes dependem dos recursos naturais que são impactados pelas barragens, agravando sua vulnerabilidade e levando a conflitos e desigualdades socioeconômicas.
A seca acentuada na Amazônia agrava os desafios relacionados às Usinas Hidrelétricas. A diminuição do volume de água nos rios reduz a capacidade de produção de energia, comprometendo o fornecimento e aumentando os custos de operação. Usinas que foram construídas recentemente e tiveram seus projetos altamente questionados, como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, estão com níveis muito baixos de geração de energia ou tiveram suspensão temporária de suas atividades, no caso desta última, conforme noticiou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
Apesar da complexidade da situação, os investimentos e estudos para a implementação de novas hidrelétricas persistem. Em Roraima, que também enfrenta uma das piores secas de sua história, com o auge previsto para os meses de dezembro e janeiro, estão em fase de conclusão os estudos de impacto ambiental (EIA/RIMA) e o Estudo de Componente Indígena (ECI) para a construção da Usina Hidrelétrica do Bem Querer. É importante destacar que, embora seja uma usina planejada no sistema fio d'água, ainda resultará na inundação de uma vasta área de aproximadamente 500 km². Este projeto levanta preocupações quanto à transparência e desconsidera diversos impactos sociais e ambientais para o estado e seu principal curso hídrico, o rio Branco, além das implicações para o Parque Nacional de Anavilhanas no Amazonas.
A seca na Amazônia é agravada por uma interseção de fatores, incluindo o fenômeno climático El Niño, que desloca padrões atmosféricos e oceânicos, intensificando a estiagem na região. Além disso, desmatamento e queimadas desempenham um papel crucial, liberando dióxido de carbono na atmosfera e destruindo vastas áreas de floresta, comprometendo o ciclo hidrológico e a umidade do ar. O avanço do agronegócio, muitas vezes associado ao desmatamento, também contribui para a seca, reduzindo a cobertura vegetal e aumentando a impermeabilização do solo.
O avanço de setores do agronegócio na Amazônia, frequentemente desencadeando desmatamento, representa um desafio significativo. Práticas inadequadas de manejo de recursos hídricos e irrigação exacerbam a escassez de água. Além disso, o descaso com o meio ambiente na região, seja pela falta de fiscalização eficaz ou pela flexibilização das leis ambientais, amplia os problemas relacionados à seca.
A seca na Amazônia brasileira é uma crise complexa, influenciada por uma série de fatores interligados. Enfrentar essa crise requer ações abrangentes que envolvam políticas ecológicas, educação ambiental, fiscalização rigorosa e esforços globais para combater a crise climática que já vivenciamos. A vida na Amazônia está intrinsecamente ligada ao futuro não apenas do Brasil, mas do planeta como um todo. É crucial encontrar soluções equilibradas que considerem a necessidade de energia, a preservação ambiental e o bem-estar das comunidades locais, pois não é possível debater a preservação da Amazônia sem discutir a justiça social.
Verifica-se que diante dessa mega seca e de toda a problemática ambiental e social, o Estado brasileiro ainda não deu a devida importância para os impactos dos grandes projetos infraestruturais para a Amazônia. Cientistas, ambientalistas, movimentos sociais e as organizações indígenas vêm alertando para os problemas, no entanto, ainda são vozes desconsideradas diante da voracidade do capital.
Urgente se torna a implementação de uma nova dinâmica que promova uma perspectiva de gestão mais abrangente, incorporando valores sociais, culturais e ecológicos. É crucial que questionemos de maneira efetiva o discurso do desenvolvimento sustentável, muitas vezes disfarçado como estratégia de marketing das grandes corporações, especialmente aquelas que mais impactam negativamente o meio ambiente na Amazônia.
Comunidades acompanhadas pela CPT promovem discussões e ações por uma vida saudável, com produção agroecológica e sem violência
Por Júlia Barbosa | CPT Nacional
Com informações da CPT Araguaia-Tocantins*
A IV Feira Formativa e Expositiva das Produções da Agricultura Familiar e Artesanais das Mulheres Camponesas Tocantinenses foi realizada como parte das ações articuladas pela Comissão Pastoral da Terra Araguaia-Tocantins, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. Integrando as atividades do 10º Encontro de Mulheres Camponesas, a quarta edição trouxe o tema "Por uma vida produtiva, saudável e sem violência aos corpos-territórios no Cerrado e na Amazônia", e ocorreu entre os dias 8 e 9 de março, no Parque Cimba, em Araguaína (TO).
A feira foi uma iniciativa da Rede de Proteção às Mulheres Camponesas Flores de Sucupira, da CPT Araguaia-Tocantins, em parceria com a Universidade Federal do Norte do Tocantins. Fundada em 2019, a Rede nasce em um contexto de acirramento da violência contra as mulheres e de desmonte das políticas públicas de proteção às camponesas e aos territórios dos povos e comunidades tradicionais.
Desde 2013, a CPT Araguaia-Tocantins realiza trabalhos de formação e apoio às mulheres do campo em situação de violências e vulnerabilidades sociais. A Rede, resultado desse trabalho, é formada por mulheres camponesas de dezesseis comunidades da região, reunindo acampadas, assentadas, posseiras, quilombolas e ocupantes sem-terra, que reivindicam a reforma agrária e a demarcação de seus territórios na região Centro Norte do Tocantins.
Segundo Laudinha Moraes, agente da CPT, a Flores de Sucupira tem como objetivo unir e reunir mulheres e homens do campo e da cidade no combate às várias formas de violência, fomentando o debate sobre saúde, agroecologia, defesa dos territórios, direitos, autonomia e geração de renda, através da exposição e comercialização dos produtos agroecológicos e artesanatos produzidos em suas comunidades.
"A iniciativa é resultado do trabalho de formação e apoio às mulheres do campo em situação de violências e vulnerabilidades sociais. A feira das mulheres é resultado da organização destes grupos de mulheres que lutam por seus direitos e autonomia" - Laudinha Moraes, agente da CPT Araguaia-Tocantins.
As mulheres camponesas são linha de frente no combate à fome no país, produzindo alimentos de forma agroecológica. As feiras da agricultura familiar promovem não apenas o acesso ao alimento, mas garantem uma alimentação saudável e livre de veneno. Além disso, ainda atuam para a geração de renda e autonomia financeira de mulheres camponesas.
"Eu tô com minha casa levantada, faltando só o telhado, mas não sabia quando ia conseguir cobrir, tava faltando o dinheiro das telhas. Colhi minha roça de feijão essa semana e chegou o convite para a feira. Vim e foi a melhor coisa que eu fiz, vendi o feijão todo e agora eu vou conseguir cobrir minha casa" - Joelma Lima Nunes, Assentamento Formosa.
Para a realização da IV Feira, houve ainda o apoio da Articulação das CPTs da Amazônia, da Articulação das CPTs do Cerrado, da Cáritas Diocesana, do Núcleo de Agroecologia da UFNT (Neuza), do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), do PROCAD - UFNT e da Secretaria Municipal de Cultura de Araguaína (TO).
*Fotos: CPT Araguaia-Tocantins
**Este relato faz parte da série de experiências da campanha 'Fraternidade Sem Fome, pão na mesa e justiça social'
Lei estadual do Tocantins é questionada junto ao Supremo por permitir registro ilegal de terras e potencializar a violência no campo
Por Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Foto: Andressa Zumpano / Acervo Campanha Cerrado
Na última terça-feira, 05/12, a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares), com apoio da Articulação de Resistência ao Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba, que integra a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, protocolou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a lei 3.525 de 2019, do Estado do Tocantins. A lei permite que títulos de propriedade privada da terra sejam validados em cartório sem que a cadeia sucessória dominial completa tenha tido origem em venda ou destaque do patrimônio público estadual, contrariando o que determinam leis federais sobre o tema.
"Permitir que títulos sem cadeia dominial comprovada sejam validados em cartório com aval do Instituto de Terras do Tocantins (Intertins) institucionaliza processos históricos de grilagem de terras, de supressão vegetal e de violência contra o povo tocantinense que vive no campo, considerando que, desde a criação do Tocantins, o governo do Estado, através do Intertins, criou apenas onze assentamentos em terras públicas estaduais, sendo o último criado em 1996", diz trecho da ADI assinada pela Contag.
O argumento principal da ação é que a destinação das terras públicas devolutas deve ser prioritária para agricultores familiares, reforma agrária, indígenas e quilombolas, como determina a Constituição Federal (CF). "As leis estaduais, ao permitirem que os estados reconheçam o domínio de propriedades ilegais, sem cadeia sucessória e sem o destaque do patrimônio público, ferem os direitos dos trabalhadores e a própria CF. Primeiro porque isso não é compatível com a política agrária da CF e, segundo, porque os Estados não são autorizados a legislar sobre direito fundiário e registros públicos. Isso é competência da União", explica a advogada Joice Bonfim, da secretaria executiva da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.
Em dezembro de 2022, o STF já havia decidido caso semelhante ao julgar a destinação das terras de faixa de fronteira, que são terras públicas federais. Neste caso, o Supremo firmou entendimento que a destinação dessas terras deve ser compatível com o plano nacional de reforma agrária, e que não pode servir de instrumento para a transferência de domínio público para o particular.
A decisão, unânime, foi tomada no julgamento da ADI 5623, ajuizada pela Contag. O objeto da ação era a lei federal 13.178/2015, que trata da ratificação de registros imobiliários decorrentes de alienações e concessões de terras públicas situadas nas faixas de fronteira. Na ADI protocolada hoje junto ao STF, a Contag usa esse precedente.
O Tocantins faz parte, juntamente com Maranhão, Piauí e Bahia, da fronteira de expansão agrícola no Matopiba - acrônimo formado pelas iniciais de cada um dos quatro estados. Maranhão, Piauí e Bahia também possuem leis estaduais semelhantes à legislação do Tocantins.
Grilagem na raiz da violência no campo
Segundo dados do Caderno de Conflitos no Campo publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano de 2022, o Tocantins registrou 504 casos de pistolagem, 101 ameaças de expulsão, 113 casas destruídas, 15 ameaças de morte contra posseiros e 1 homicídio decorrente de conflitos por terra. Os dados parciais do ano de 2023 também trazem números assustadores, com 228 casos de violência contra a ocupação e a posse e 562 casos de violência contra a pessoa na Região Norte, além de 88 casos de violência contra a ocupação e posse e 54 casos de violência contra a pessoa na região do Matopiba. Os dados parciais do ano de 2023 também trazem números assustadores, com 228 casos de violência contra a ocupação e a posse e 562 casos de violência contra a pessoa na Região Norte, além de 88 casos de violência contra a ocupação e posse e 54 casos de violência contra a pessoa na região do Matopiba.
"Especialmente em relação ao Tocantins, avaliamos que é importante relacionar essa questão com o novo Projeto de Lei (PL) 1199/2023, do senador Eduardo Gomes (PL/TO) que tramita no Senado, e que tem como objetivo transferir terras públicas federais para o Estado do Tocantins", ressalta Dinah Rodrigues, advogada da Comissão Pastoral da Terra no Tocantins. Segundo a advogada, se o PL for aprovado, o Estado do Tocantins terá o controle das terras públicas federais e poderá fazer a destinação massiva aos setores privados.
Em outubro desse ano, o PL avançou na Comissão de Desenvolvimento Regional (CDR) do Senado, que aprovou a proposta, "que replica para o Tocantins as mesmas medidas já estabelecidas por meio da Lei 14.004, de 2020, para os estados de Roraima e Amapá. O texto segue para análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ)", informa notícia da Agência Senado.
Por trás da "governança fundiária"
O que está por trás da lei 3.525/2019, do Tocantins, e de leis semelhantes do Maranhão, Piauí e Bahia, é a implementação, pelos estados, de ações de "governança fundiária" para facilitar o processo de legalização da grilagem e, assim, garantir maior segurança jurídica fundiária para a expansão do agronegócio.
Os dispositivos federais que disciplinam a propriedade da terra têm sido relegados em prol dos interesses do agronegócio, criando mecanismos para facilitar a transferência de domínio de terras públicas para particulares. "Para atender a demanda por terras na esteira da expansão da fronteira agrícola, vão se abrindo brechas a partir de mudanças legislativas, em especial nas leis ambientais e de terras estaduais. Essas mudanças já vinham se dando no tempo da expansão da fronteira (Bahia em 1972 e 1975; Maranhão em 1991) e têm se intensificado no ritmo desta (Bahia em 2011; Tocantins e Piauí, 2019; Projeto de Lei em tramitação no Maranhão), continuamente 'legalizando o ilegal' e facilitando a expansão e consolidação da grilagem no Matopiba", explica o estudo "Na fronteira da (i)legalidade: desmatamento e grilagem no Matopiba", da AATR.
Essas leis, segundo a pesquisa, têm criado a figura do "reconhecimento de domínio", a partir da desvirtuação da "legitimação de posse", concedendo a grileiros - ou invasores - mais direitos que aos posseiros, ocupantes legítimos. Tais direitos são, portanto, inconstitucionais.
Antes da decisão de ingressar com a ADI este ano, a AATR, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, a CPT Tocantins e outras entidades e movimentos peticionaram, em julho de 2021, à Procuradoria Geral da República (PGR) em julho de 2021 demandando que ela ingressasse. A PGR considerou não haver elementos para que a Procuradoria propusesse a ação perante o STF. Contudo, reconheceu a legitimidade das entidades para que o fizessem e, principalmente, a pertinência da demanda.
Leia na íntegra a análise "Porque somos contra o Projeto de Lei nº 1.992/2020 da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) que cria o Polo Minerário e Industrial do Lítio nos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri?"
Na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, tramita o Projeto de Lei nº 1.992/2020, de autoria do Deputado Estadual Doutor Jean Freire – PT, que propõe a criação do Polo Minerário e Industrial do Lítio nos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, que envolve 14 municípios (Araçuaí, Capelinha, Coronel Murta, Itaobim, Itinga, Malacacheta, Medina, Minas Novas, Pedra Azul, Rubelita, Salinas, Virgem da Lapa, Teófilo Otoni e Turmalina) da região Nordeste do Estado.
Expressamos nossa preocupação e indignação em relação a este projeto de lei, pois não houve a consulta de toda a população que será diretamente impactada. Em Julho de 2022, durante Audiência da Comissão dos Direitos da Mulher da ALMG, foram feitas diversas denúncias sobre a falta de água em toda a região do Jequitinhonha e Mucuri, sabemos que esses empreendimentos secam nascentes, trazem consigo poluição e assoreamento de cursos d’água, além do uso abusivo de água, gerando ainda mais conflitos nos territórios.
Divulgação: Sigma Lithium.
Apesar da retomada de políticas públicas importantes para combater a violência no campo, os dados do 1º semestre de 2023 dos registros de Conflitos no Campo Brasil, a Comissão Pastoral da Terra registrou 973 conflitos, representando um aumento de 8% em relação ao mesmo período de 2022, sendo o segundo maior registro em uma década.
Somos contrários a qualquer iniciativa que promova a criação, fortalecimento e incentivo da cadeia de exploração da mineração. Os eventos de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) evidenciam que a atividade minerária ameaça o meio ambiente e a existência de grupos em situação de vulnerabilidade social, muitas vezes já criminalizados pelos interesses do grande capital. A ausência de Consulta Livre, Prévia e Informada dos povos indígenas, quilombolas, pescadores, povos e comunidades tradicionais, assentados e assentadas da reforma agrária dos vales Jequitinhonha e Mucuri caracteriza uma ilegalidade em todo o processo de licenciamento ambiental, considerando que o Brasil é signatário da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O desenvolvimentismo adotado por governos no Brasil reforça uma lógica conservadora e colonial, estruturada em um modelo econômico e social que busca criar uma falsa percepção de bem-estar social e equilíbrio ambiental. A estrangeirização das terras e também as isenções fiscais, como a que consta no Art. 3º, VII do PL 1992/2020, são ferramentas desse modelo, que amplia a acumulação de capital, destrói territórios e ameaça povos e comunidades tradicionais que lutam para sobreviver diante desse sistema.
Dança dos Praiá no terreiro Sagrado, Aldeia Cinta Vermelha de Jundiba. Foto: Maurício Angelo.
Concordar com a lógica do mercado, que coloca o lucro como fim em si mesmo, não faz sentido para a existência humana. Seja em uma visão antropocêntrica, que enfatiza a importância de garantir a perpetuação dos povos, ou em uma perspectiva que reconhece que tudo no universo, na terra, incluindo a natureza e a humanidade, é parte de uma criação divina que deve ser cuidada e respeitada.
“Os recursos naturais necessários para a tecnologia, como o lítio, o silício e tantos outros não são certamente ilimitados, mas o problema maior é a ideologia que está na base duma obsessão: aumentar para além de toda a imaginação o poder do homem, para o qual a realidade não humana é um mero recurso ao seu serviço. Tudo o que existe deixa de ser uma dádiva que se deve apreciar, valorizar e cuidar, para se tornar um escravo, uma vítima de todo e qualquer capricho da mente humana e das suas capacidades.” (Papa Francisco – Laudato Deum)
Enquanto a mineração for motivada pela ganância e lucro das grandes empresas, ameaçando e impactando as comunidades camponesas, os povos e as comunidades tradicionais, os povos originários, os assentamentos da reforma agrária, a Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG) continuará se opondo a esse modelo de desenvolvimento que alimenta a violência, os conflitos no campo e promove injustiças sociais e destruição ambiental.
Os Vales são do Jequitinhonha e do Mucuri! Nomes de origem indígena e que remetem respectivamente a um “Rio largo cheio de peixes” e a uma árvore que é nativa desta região, conhecida por ter uma madeira resistente e rajada, são símbolos da resistência dos povos que por lá habitam há séculos e lutam pela defesa dos territórios.
Não à Mineração!
Sim à Vida e à Dignidade Humana!
Belo Horizonte-MG, 06 de Dezembro de 2023.
Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais
Página 34 de 168