A Comissão Pastoral da Terra (CPT) se une aos povos indígenas do Brasil e às suas organizações para repudiar veementemente a decisão da Câmara Federal pela aprovação do texto final do PL 490/2007, no último dia 30/05, e lamenta o fato de, mais uma vez, o Brasil perder a oportunidade de reconhecer sua dívida histórica e impagável com os povos indígenas ao decidir pela manutenção de políticas de extermínio.
A aprovação do PL 490 representa a maior ameaça aos direitos dos povos indígenas e de seus territórios ancestrais nas últimas décadas, e repete os equívocos do passado que resultaram na vulnerabilidade desses povos no presente e inseguranças quanto ao seu futuro. Além de impedir o direito constitucional, o projeto de lei abre terras indígenas (TIs) já demarcadas à exploração econômica predatória, como o garimpo, as hidrelétricas e o agronegócio, deixando as comunidades ainda mais vulneráveis às ações violentas e criminosas, características desses empreendimentos.
Esse Projeto de Lei acelera o processo histórico de genocídio que essas populações enfrentam. Vale lembrar que o Brasil segue sendo um dos lugares mais perigosos do mundo para os povos do campo, das águas e das florestas. Na última década, foram registradas 661 ocorrências de invasões de terras indígenas, segundo dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da CPT.
Em 2022, do total de ocorrências de conflitos registradas, 28% envolveram povos indígenas. No mesmo ano, a CPT registrou 47 assassinatos por conflitos no campo. Desse total, 38% eram indígenas. Nos últimos anos, pelo menos 570 crianças, de 0 a 12 anos, morreram na Terra Indígena Yanomami em decorrência da omissão e conivência do Governo Federal na contenção da invasão garimpeira e também na diminuição de oferta de serviços de saúde aos indígenas. O PL 490, portanto, nega a realidade brasileira de conflitos, violação de direitos, usurpação e expropriação de territórios indígenas.
Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) terá a oportunidade de barrar a aceleração desse genocídio. Amanhã, 7 de junho, será retomado o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que discute o Marco Temporal. Por isso, a CPT se junta às demais Pastorais Sociais, às organizações indígenas e camponesas e àqueles(as) que defendem a vida e o direito de existir desses povos.
A exemplo de Jesus Cristo e do Papa Francisco, a CPT defende a vida. Assim, conclamamos aos Ministros e Ministras do STF que corrijam esse grave erro cometido pelos deputados e deputadas que aprovaram o PL490. Conclamamos, também, ao povo de Deus, que se una à causa indígena neste momento e exija o cumprimento da Constituição, que, no artigo 231, garante os direitos dos povos indígenas, bem como seja cumprida a Convenção nº 169 da Organização do Internacional do Trabalho (OIT) que garante, sem qualquer limite temporal, o direito à autodeterminação dos povos originários e de populações tradicionais.
Inspirados(as) na memória subversiva do Evangelho, seguimos firmes no compromisso por uma Terra Sem Males, denunciando toda e qualquer lei que afronte a vida e promova o martírio dos povos do campo, das águas e das florestas, guardiões da nossa Casa Comum.
06 de junho de 2023
Comissão Pastoral da Terra - Secretaria Nacional
Saiba mais sobre o Marco Temporal e participe da mobilização em defesa dos direitos dos povos originários: https://apiboficial.org/marco-temporal
Carlos Henrique Silva, com informações da CPT/MT
Mais de seis anos depois de um dos mais sangrentos ataques a trabalhadores rurais do estado de Mato Grosso, que vitimou 9 camponeses na gleba Taquaruçu do Norte, no município de Colniza, parece que a justiça começa a ser feita. O primeiro dos três acusados de participarem da chacina, Ronaldo Dalmoneck, foi condenado a 200 anos de prisão, na última quarta-feira (31), em júri popular. Contudo a decisão não põe fim ao conflito, e a sensação de impunidade continua presente na região.
Essa é a avaliação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso (FDHT/MT) e de outras entidades envolvidas com o caso, já que estão sendo condenados os executores, mas não os mandantes ou articuladores da chacina.
De acordo com a denúncia do Ministério Público Estadual (MPE), além de Dalmoneck, constam como réus no processo: o empresário do ramo madeireiro Valdelir João de Souza, apontado como mandante do crime; o ex-sargento da Polícia Militar de Rondônia Moisés Ferreira de Souza; além de Pedro Ramos Nogueira e seu sobrinho Paulo Neves Nogueira. Ainda segundo o MPE, eles formariam um grupo de extermínio chamado “Os Encapuzados”, conhecidos na região como pistoleiros ou matadores de aluguel.
O ataque aos trabalhadores, ocorrido em 19 de abril de 2017, não deu chance de defesa ou fuga para as vítimas, que acabaram sendo rendidas, torturadas e mortas. Segundo o Ministério Público, a intenção do mandante era aterrorizar as cerca de 100 famílias presentes na localidade, como uma forma de pressionar para que o assentamento fosse abandonado e ocupado posteriormente pelo acusado, o que vem acontecendo nos últimos anos, sem nenhuma providência por parte do Estado.
Contudo as famílias de cinco das nove vítimas continuam reivindicando na Justiça a reparação pelos danos causados, além de indenização por danos morais, pelos traumas psicológicos, sociais e econômicos ocasionados pelo assassinato de seus parentes. O ressarcimento viria da apreensão dos bens dos réus envolvidos nos crimes.
Uma região de disputas e violência
Levantamento realizado pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da CPT, apontou que 9.253 famílias de Mato Grosso foram vítimas de 147 ocorrências de conflitos por terra em 2022, dados que colocam o estado na 1º posição no ranking do Centro-Oeste e em 5º lugar no ranking nacional deste tipo de conflito. Distante 1.065 km de Cuiabá, o município de Colniza faz divisa com os estados do Amazonas e de Rondônia, uma região marcada historicamente pela ausência do poder público e pela violência dos conflitos por terra, principalmente devido à disputa pela exploração de bens naturais.
Outras mortes individuais e tentativas de massacre continuaram ocorrendo em Colniza após 2017, como o caso do trabalhador Eliseu Queres, assassinado em 2019, em um ataque que deixou outros nove feridos, todos ligados à Associação Gleba União e a movimentos de luta por terra. Em 2022, no mesmo município, um trabalhador rural foi morto na fazenda da família Gringos.
Estes foram os trabalhadores rurais vítimas da chacina em Colniza em 2017, ainda sem a punição devida para os mandantes e executores:
Aldo Aparecido Carlini – 50 anos
Edson Alves Antunes – 32 anos
Ezequias Santos de Oliveira – 26 anos
Fábio Rodrigues dos Santos – 37 anos
Francisco Chaves da Silva – 56 anos
Izaul Brito dos Santos – 50 anos
Samuel Antônio da Cunha – 23 anos
Sebastião Ferreira de Souza – 57 anos
Valmir Rangel do Nascimento – 55 anos
Por Leonardo Fuhrnann | O Joio e O Trigo
Foto: CPT Maranhão
A água contaminada por agrotóxicos é mais uma das ameaças do latifúndio contra a comunidade quilombola Cocalinho, em Parnarama, no Maranhão. O líder comunitário Leandro dos Santos conta que os problemas começaram em 1982, quando grileiros começaram a tentar tomar as terras do povo.
Na ocasião, os invasores investiam na criação de gado. Os registros da presença dos quilombolas no local datam do final do século 18 e começo do século 19. “A gente só não foi expulso das terras por causa da atuação da Comissão Pastoral da Terra e dos movimentos nacionais de proteção aos quilombos”, diz. No local, vivem, atualmente, 170 famílias.
A situação se agravou no fim dos anos 2000, com a chegada da Suzano Papéis e Celulose. “Naquele momento, teve início a monocultura de eucaliptos e muitos lagos e igarapés secaram, porque esse tipo de árvore consome muita água”, conta.
Segundo ele, se deu ali o começo do uso de agrotóxicos em torno do território. “Eles usavam bombas manuais”, explica. A presença da empresa também teve impacto no modo de vida em Cocalinho. “Eles não chegaram a destruir o nosso cemitério tradicional, mas o cercaram e passaram a impedir a nossa entrada”, diz. A solução foi a construção de um novo cemitério para enterrar os mortos.
Com a saída da Suzano, na década seguinte, a região recebeu a chegada da monocultura de grãos, com a aplicação de agrotóxicos com aviões e tratores. “Os nossos cultivos perderam a qualidade, não se desenvolvem como antes”, relata Leandro.
O avanço do veneno também teve impacto nas criações de animais de pequeno porte, nas plantas nativas, como a aroeira e a mangabeira, de uso medicinal, e o pequizeiro. Muitas caças, como o tatu, o jabuti, a guariba e a cotia, e aves, como o juriti, sumiram.
Foto: CPT Maranhão
A violência foi uma das maiores ameaças aos geraizeiros de Formosa do Rio Preto, na Bahia. Ao todo, são 120 famílias divididas em cinco comunidades. Mesmo com o reconhecimento de ser um território tradicional, eles vivem sob a ameaça de uma propriedade vizinha, o Condomínio Cachoeira do Estrondo.
Os latifundiários são apontados como responsáveis por incêndios criminosos, grilagem e ameaças. “Até 2017, quando foi feito um acordo judicial, eles tinham guaritas até dentro de nosso território. Paravam carros e pedestres, revistavam todo mundo, impediam a gente de criar gado solto”, revela uma líder comunitária, que prefere não se identificar, por receio de retaliação.
Os seguranças do condomínio também impediam o extrativismo do buriti e do capim dourado. O fruto do buriti é usado na alimentação, as folhas para o artesanato. A árvore também tem utilidades na produção de enfeites, utensílios domésticos, remédios, cosméticos e brinquedos. O capim dourado é bastante usado em atividades artesanais.
Atualmente, além da contaminação das nascentes de água, a comunidade sofre com os assoreamentos causados pelas curvas de nível. “Quando começa a temporada de chuvas, o barro desce para o nosso território”, conta.
Segundo Martin Mayr, da Agência 10envolvimento Cerrado, da Rede Cerrado, as comunidades estão perdendo hábitos seculares, como as plantações em brejos na época da estiagem. “A água do aquífero está brotando menos e mais distante da comunidade”, conta. Ele aponta, também, o risco da “grilagem verde”, em que os proprietários de terras declaram as áreas das comunidades tradicionais como reserva legal das propriedades.
Problema semelhante é apontado por Pedro Antônio Ribeiro, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Tocantins, no Território Serra do Centro, em Campos Lindos (TO), o que pode restringir as atividades dos camponeses dentro do próprio território. “O ex-governador Siqueira Campos [PL] entregou 85 mil hectares na região para fazendeiros residentes em outros estados e políticos locais instalarem a monocultura, com sobreposições a áreas da comunidade tradicional”, destaca. “A inversão de valores é tamanha, que eles chegaram a pedir a reintegração de posse da área em que vivem as cerca de 200 famílias, divididas em oito comunidades. Foi uma reforma agrária às avessas”.
Os moradores apontam ainda um aumento de insetos e espécies invasoras nas roças tradicionais e na produção de base familiar. “Eles [os latifundiários] jogam o veneno lá em cima e as pragas vêm todas para onde ficamos. Só o arroz resiste, morre o feijão, a melancia, a abóbora e todo o resto do que plantamos”, diz outra líder comunitária que prefere não revelar o nome. Segundo ela, a comunidade já evitava a água dos rios e usa só os poços para o abastecimento das casas. Eles também evitam pescar, por medo da água contaminada do rio.
Os casos de Cocalinho, Serra do Centro e dos geraizeiros do Vale do Rio Preto fazem parte da petição da Campanha Nacional do Cerrado apresentada ao Tribunal Permanente dos Povos em novembro de 2019.
O veredito apresentado em 2022 foi de condenação do Estado brasileiro pelo ecocídio do Cerrado e o genocídio de 15 povos tradicionais e originários do bioma. Foram condenados também governos estaduais, organizações multilaterais e governos internacionais, empresas brasileiras e multinacionais, inclusive fundos de investimento, pelo envolvimento na destruição ambiental, e das condições de vida da população local.
A proximidade com os geraizeiros da Bahia e a semelhança de problemas vividos levou a Campanha a tratar também da situação da comunidade de Barra da Lagoa, em Santa Filomena, no Piauí.
São doze famílias de ribeirinhos e brejeiros que vivem da agricultura familiar, pesca, coleta e criação de pequenos animais. Eles vivem em estado de insegurança jurídica quanto à posse da terra e restrições à livre circulação no território, além dos problemas com a contaminação da água. “Muitas vezes, essa população precisa mudar rotas de passagem por conta dos obstáculos criados pelos seguranças das fazendas, inclusive dentro do território comunitário”, conta Maria das Mercês Alves de Souza, da CPT do Piauí.
Segundo outra moradora, a comunidade perdeu a liberdade de circular. “Passamos a ter um território limitado. Não dá mais para caçar, tirar mel, deixar o gado solto. A monocultura trouxe junto a mosca branca, que tem destruído as lavouras de agricultura familiar”, diz.
As outras comunidades analisadas foram o Acampamento Leonir Orback, em Santa Helena, Goiás, onde vivem, desde 2015, 170 famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Lá, além do problema da contaminação, incêndios criminosos e desmatamento causam doenças respiratórias na população. A água do acampamento tem sido apropriada pelo agronegócio para irrigação dos monocultivos.
Outra comunidade relatada é a Cumbaru, em Nossa Senhora do Livramento, Mato Grosso. O nome do povoado tradicional é devido à atividade agroextrativista da coleta da castanha do cumbaru, ou simplesmente baru. A espécie é considerada crucial para a preservação da fauna e da flora do bioma, além do fruto ter utilidades alimentares e medicinais. A contaminação da água, solo e aérea da região, segundo os moradores, provoca problemas de saúde, como dores de cabeça e dificuldades para dormir.
No Mato Grosso do Sul, a situação analisada foi do Assentamento Eldorado II, em Sidrolândia. A área é formada por 750 lotes titulados, onde vivem aproximadamente setecentas famílias. Sem políticas públicas para a agricultura familiar e sob a pressão dos latifundiários da região, muitos moradores concordam em arrendar terras para a produção da monocultura de grãos.
Os antigos camponeses passam a trabalhar nas lavouras como aplicadores de agrotóxicos, usando bombas costais e nem sempre o equipamento de proteção individual (EPI). Além de deixá-los mais vulneráveis individualmente, a (i)lógica do agronegócio os obriga a carregar – dos corpos até as comunidades em que vivem – o fardo dos riscos associados aos agrotóxicos.
Por Leonardo Fuhrmann | O Joio e O Trigo
Até nove agrotóxicos em uma mesma amostra de água, muitos deles capazes de somar ou até multiplicar os efeitos uns dos outros no corpo humano. Esse foi o resultado da análise feita pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) nas águas usadas pela população dos territórios de comunidades tradicionais de sete estados brasileiros, das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que resultou em um dossiê feito em parceria com a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e entidades associadas a ela, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Os resultados já eram sentidos no corpo desses moradores, com dores de cabeça constantes, coceiras, caroços e manchas na pele. Sem contar a associação das substâncias a problemas mais graves, como más formações, câncer e distúrbios neurológicos. As vítimas são quilombolas, moradores de comunidades tradicionais e de acampamentos. Essas populações têm em comum duas coisas: estarem cercadas pela monocultura de grãos, notadamente, a soja, e habitarem áreas do Cerrado.
Bioma muitas vezes negligenciado em debates ambientais, o Cerrado é ligado diretamente à qualidade das águas no país. Rios importantes, como São Francisco, Paraná, Paraguai, Tocantins, Araguaia, Tapajós, Madeira e Xingu têm as nascentes em territórios cerradeiros. Além deles, é o berço de três aquíferos: Guarani, Bambuí e Urucuia.
A contaminação por agrotóxicos é mais preocupante no bioma, porque nele se concentram 70% da utilização dessas substâncias no Brasil. A pesquisa levou em conta áreas de presença mais antiga do agronegócio, a exemplo de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e de expansão mais recente, como Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o chamado Matopiba.
Nos últimos 20 anos, o Matopiba perdeu mais vegetação nativa do que nos 500 anos anteriores. As diferenças entre as regiões não foram significativas para afetar uma conclusão única: uma contaminação, inclusive, com substâncias que são proibidas em países com legislação mais rigorosa, como os membros da União Europeia. O Brasil tem leis consideradas permissivas tanto na liberação de ativos químicos quanto nas quantidades que consideram a presença permitida em alimentos, na água e no solo.
As comunidades cerradeiras também sofrem com as nuvens químicas da aviação agrícola, que dispersa a contaminação na terra, água e ar. A pulverização aérea é uma agravante para a contaminação dos territórios, tanto que é proibida nos países da União Europeia desde 2009, devido aos grandes prejuízos sociais e ambientais.
Segundo estudos realizados pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), somente 32% dos agrotóxicos pulverizados atingirão as plantas alvo, enquanto 49% irão para o solo e 16% serão dispersados pelo ar para áreas próximas à aplicação.
Foto: Thomas Bauer / CPT
Ao retratar a contaminação da água, o relatório traz mais subsídios para o debate e mostra várias consequências nas comunidades atingidas. Seja pelo consumo humano ou pelo uso para irrigação de cultivos, para os animais criados nas áreas, a pesca, a caça e a coleta tradicionais. Problemas que impactam no sistema de saúde da região e levam a contaminação para além dessas comunidades.
A principal substância encontrada é o glifosato, presente em todos os estados. Com fortes restrições em relação ao nível permitido nas águas na União Europeia, esse é o agrotóxico mais vendido no Brasil, onde a legislação é bem menos exigente. Entre as treze substâncias detectadas na água, estão também o metolaclaro, banido da União Europeia por suspeição de efeito desregulador endócrino e associação ao aumento da incidência de tumores, em particular hepáticos; o fipronil, classificado nos Estados Unidos como possível carcinógeno humano, devido à ocorrência de tumores na tireoide; e o epoxiconazol, tido pelos estadunidenses como provável carcinógeno para humanos, principalmente em decorrência do aumento de tumores ovarianos.
No Maranhão, os níveis de atrazina detectados na comunidade de Cocalinho foram mais de duas vezes superiores ao valor máximo permitido segundo as normativas brasileiras. A substância foi encontrada em pelo menos uma amostra em outros seis estados. A atrazina já foi banida pela União Europeia devido ao alto poder de contaminação ambiental. Os efeitos para a saúde humana, associados à intoxicação pela substância, podem gerar distúrbios endócrinos, problemas na reprodução e câncer.
Mariana Pontes, da Campanha do Cerrado, afirma que a pesquisa veio de um pedido feito pelas próprias comunidades tradicionais, há quatro anos. “O planejamento começou a ser feito em 2019 e o trabalho de campo a partir de 2021”, diz. As comunidades Cocalinho, Serra do Centro, em Tocantins, e Geraizeiros, na Bahia, já são acompanhadas pela campanha. A Barra da Lagoa, no Piauí, fica próxima da área dos geraizeiros. Os assentamentos Eldorado II, no Mato Grosso do Sul, e Leonir Orback, em Goiás, e as comunidades Serra do Centro, em Tocantins, e Cumbaru, no Mato Grosso, foram escolhidas em conversas com outras entidades participantes da campanha.
Para ela, a denúncia do dossiê fortalece o debate sobre a excessiva permissividade da legislação brasileira. “Além de autorizar o uso de agrotóxicos proibidos em outros países, ainda existe muita discrepância nas quantidades em que eles são aceitos. [o dossiê] Usa como base um cidadão adulto que é saudável, tem um peso dentro da média e despreza os impactos em crianças, idosos e pessoas com outras fragilidades”, afirma. No caso das crianças e da fase intrauterina, os impactos podem acompanhar essas pessoas por toda a vida.
O dossiê será apresentado nesta terça-feira, dia 30, em Brasília. A ideia é levar o debate ao Congresso Nacional, por meio da Comissão de Meio Ambiente, e aos ministérios do Meio Ambiente, Saúde e Direitos Humanos.
“Nosso objetivo é fortalecer a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida”, diz Mariana. O Brasil viveu um verdadeiro boom na liberação de agrotóxicos após o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). A quantidade de substâncias liberadas entre 2005 e 2016 variavam entre cem e trezentas por ano. Em 2017 e 2018, na gestão de Michel Temer (MDB), os números foram além de quatrocentos por ano. Com Jair Bolsonaro (PL), chegaram a 562, em 2021, e 652, em 2022.
Para Aline Gurgel, pesquisadora em saúde pública e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Fiocruz, o momento agora é de recuperar os marcos legais de maior segurança para o consumidor e os moradores de áreas próximas às grandes propriedades dedicadas à monocultura. “Os últimos seis anos foram marcados pelo enfraquecimento da política de segurança e proteção, com a liberação de diversos produtos e a flexibilização da aplicação”, diz.
Ela explica que a metodologia aplicada no levantamento foi inovadora. Os técnicos orientaram líderes comunitários como deveria ser feita a coleta e os cuidados para garantir que as amostras chegassem ao Rio de Janeiro, onde fica a Fiocruz, com qualidade para serem analisadas. “Eles puderam coletar a água nos lugares que mais usam e que estavam preocupados com a qualidade da água”, diz.
Segundo Aline, a condição da água pode ser mais grave do que os resultados apontam. “Existem substâncias tóxicas que ficam menos tempo na água. Ou seja, não constatamos nas amostras, mas podem ter sido ingeridas pelas pessoas em períodos anteriores”, observa. Assim como os que foram encontrados e permanecerão por décadas na água. Outra limitação foi o número de substâncias pesquisadas, que não abrange todos os produtos tóxicos para a saúde humana presentes nos agrotóxicos.
Aline critica a legislação brasileira por, além de ser extremamente condescendente com o uso de agrotóxicos proibidos em outros países e de permitir a presença de maior quantidade de resíduos, por analisar individualmente a presença de cada um deles. “Existem substâncias que aumentam o impacto de outras no corpo humano e há as que até potencializam os efeitos”, afirma.
Ela destaca um segundo aspecto: o impacto na rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). “Quem causou o dano jamais será responsabilizado pela contaminação, ficando apenas com os lucros da produção com substâncias químicas nocivas e as vítimas podem ficar com sequelas durante toda a vida, dependendo do sistema público de saúde para o tratamento”, diz.
A Fiocruz fez diversas sugestões para a portaria 888, de 2021, do Ministério da Saúde, sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para o consumo humano e o padrão de potabilidade. Na ocasião, as propostas não foram acatadas pela gestão do ex-ministro Marcelo Queiroga, da gestão Jair Bolsonaro (PL).
Agora, a esperança é que a ciência seja ouvida nas próximas edições de outras portarias.
Texto: Comunicação CPT Juazeiro/BA
Na última quarta-feira (31), o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) reconheceu que o território de comunidades tradicionais de fundo de pasto de Areia Grande, em Casa Nova (BA), é composto por terras devolutas do estado da Bahia e, portanto, não pertence ao Banco do Brasil, que reivindicava ser proprietário das terras. Há mais de 15 anos, o Banco e dois empresários vinham buscando judicialmente a expulsão de 400 famílias de seu território.
André Sacramento, advogado da Associação dos Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR) que acompanha o caso, explica que essa decisão do TJ-BA é uma vitória para as comunidades, pois reconhece que a ação se trata de grilagem de terras. "Foi um processo longo, de muitas dificuldades, quando nós da AATR assumimos o processo já havia uma sentença de expulsão dos trabalhadores em favor do Banco do Brasil, nós alegamos a grilagem dessas terras, que eram terras que nunca tinham pertencido a fazendas, mas que se tratavam de terras devolutas. Com essa decisão, o TJ-BA nos surpreendeu positivamente reconhecendo que se tratam de terras griladas que não poderiam ter sido passadas para o Banco do Brasil, nem ser alvo da ação de despejo", afirmou o advogado.
Para Zacarias Rocha, do território de Areia Grande, essa vitória judicial serve de ânimo para a população local continuar na luta por seu território e também para fortalecer outras comunidades que estão passando por situação semelhante. "Isso significa a reafirmação das comunidades de Areia Grande enquanto detentoras do território. As comunidades vêm há séculos fazendo a luta para permanência no seu território, quando Areia Grande ganha, outras comunidades também ganham com isso, porque é o modo de vida desses povos. E também não significa dizer que com essa vitória a luta deva parar", comentou Rocha.
Histórico do conflito
A área em litígio, o território de Areia Grande, é composto pelas comunidades Melancia, Riacho Grande, Salinas da Brinca, Jurema, Tanquinho, Ladeira Grande, Lagoado, Lagedo, Lagoinha, Pedra do Batista e Pilão. Desde a segunda metade do século XIX, essas comunidades estão no território, vivendo da criação à solta de caprinos e extrativismo.
Na final da década de 1970, Areia Grande foi alvo de um processo escandaloso de grilagem em benefício da empresa Agroindustrial Camaragibe S.A, que acessando recursos do Proálcool, adquiriu "títulos de posses" na área e os registrou no Cartório de Registro de Imóveis de Casa Nova como se fossem propriedade.
Além da fraude no registro, a empresa abandonou o projeto de produção de álcool biodiesel e apropriou-se do financiamento público, deixando uma dívida milionária com o Banco do Brasil, no contexto do chamado "Escândalo da Mandioca", de repercussão nacional. Como forma de pagamento da dívida, o Banco do Brasil adquiriu o direito sobre os títulos supostamente de propriedade registrados pela empresa nas terras de Areia Grande, e, em 2004, os transferiu para os empresários Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva.
Em 2006, esses empresários ingressaram com uma ação judicial contra 11 moradores de Areia Grande, acusando-os de invasores e requerendo a imissão daqueles na posse da área, o que foi aprovado pelo juiz de direito de Casa Nova, sem sequer ouvir o Ministério Público.
O cumprimento da decisão causou amplo clamor social, quando no dia 06.03.2008, a região de Areia Grande reviveu situação de terror. Policiais e prepostos dos empresários invadiram a área ocupada secularmente pelas comunidades, destruíram casas, chiqueiros, currais, roçados, árvores centenárias da caatinga, milhares de metros de cercados, levando a prejuízos calculados em mais de um milhão de reais. As ameaças armadas chegaram ao extremo, culminando, em 2009, no assassinato do trabalhador rural José Campos Braga (Zé de Antero), crime que continua impune até hoje.
Por Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Foto: Letícia de Maceno
Na manhã do dia 31/05, representantes de povos e comunidades tradicionais do Cerrado dos estados da Bahia, Maranhão, Piauí, Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul participaram de uma oficina sobre como denunciar contaminações causadas por agrotóxicos. A oficina foi ministrada por Naiara Bittencourt, advogada da Terra de Direitos e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Foram abordadas estratégias de registro de denúncias, produção e armazenamento de provas e canais de formalização dos registros.
Entre as situações e fatos passíveis de serem denunciados, Naiara apontou o envenenamento de pessoas e animais, alergias, coceiras, mortes de animais, contaminação de trabalhadores e o descarte inadequado de embalagens de agrotóxicos.
"É importante ter parcerias com a mídia, entidades e movimentos sociais que possam levar adiante os registros das violações. Muitas vezes os órgãos públicos não vão encaminhar as denúncias por vontade própria, seja por pressão política, econômica, seja por falta de estrutura ou por medo dos servidores. Por isso é preciso estabelecer parcerias para driblar essas dificuldades. Os agrotóxicos são o eixo do agronegócio, e o agronegócio é o eixo do capitalismo no Brasil. Então, o agrotóxico está no eixo do capitalismo no país", afirmou Naiara. A advogada apresentou às participantes um página específica do site da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos que condensa as dicas para realizar denúncias com segurança e efetividade.
Luta a partir de resultados de dossiê
No período da tarde, os participantes discutiram ações de articulação, formação, incidência e comunicação na luta contra os agrotóxicos a partir dos resultados da publicação "Vivendo em territórios contaminados: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado", lançada dia 30/05.
Entre as estratégias de articulação apresentadas, foram sugeridas ações de fortalecimento de redes, ações de vigilância popular em saúde e parcerias com instituições de pesquisa e divulgação científica. No campo da formação, foram apontadas como estratégias a inclusão do tema agrotóxicos em escolas do campo, o fortalecimento da formação de base com professores, profissionais da saúde e sindicatos, a realização de oficinas nas comunidades e seminários estaduais para debater o assunto de maneira mais ampla.
Na comunicação, os grupos sugeriram a produção de materiais pedagógicos, panfletos, cards, divulgação de tecnologias e informações sobre produções agroecológicas e o monitoramento e denúncias sobre a contaminação por agrotóxicos. No campo da incidência, foi sugerida a realização de audiência pública para pautar a criação de projetos de lei que protejam os povos e comunidades da contaminação, que proíbam a pulverização aérea e a isenção de impostos para agrotóxicos.
Recomendações ao poder público
No fim do dia, a atividade de encerramento focou na construção de recomendações gerais aos órgãos responsáveis e ao Congresso Nacional no sentido do combate à contaminação dos povos e comunidades pelo agrotóxico das monoculturas.
Mariana Pontes, da secretaria executiva da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, e Juliana Acosta, representante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, expuseram e debateram as recomendações construídas ao longo de processos coletivos pelas duas campanhas. Esta última atividade teve como objetivo preparar a Audiência Pública na Câmara dos Deputados realizada na manhã de hoje.
As três atividades fizeram parte do "Seminário de Convergência: Agrotóxicos como armas químicas nos territórios do Cerrado", realizado em Brasília entre os dias 30 e 31 de maio e 1 de junho pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
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