Por Pe. Flávio Lazzarin, agente da CPT Maranhão
Foto: Andressa Zumpano
Recentemente, o bispo de Brejo, no Maranhão, Don Valdeci Mendes, me dizia sobre uma conversa com dona Elena, da comunidade de Baixão dos Rochas, em São Benedito do Rio Preto (MA). Na madrugada do dia 19 de março de 2023, dona Elena, com 65 anos de idade, junto com o esposo doente, o filho e o netinho de 6 anos, foram sequestrados, a noite toda, por jagunços das empresas Bomar Agricultura e Terpa Construções, que invadiram o povoado. Eram quinze criminosos, fortemente armados.
A comunidade tradicional é composta de 25 famílias, lavradoras e extrativistas, que vivem neste território, de cerca de seiscentos hectares, há mais de oitenta anos. Quando ela conseguiu voltar ao Baixão, viu as casas incendiadas, as três casas de farinha destruídas, o saque dos paióis de que levaram farinha e arroz, galinhas roubadas e cachorros matados, árvores frutíferas derrubadas.
Dona Elena, comentando o acontecido, falou para dom Valdeci que logo reconheceu, comovido, o sopro da profecia: “Eu não entrei no conflito, o conflito entrou em mim”. Essa contundente afirmação chegou para mim como a revelação de algo que, até o momento, ainda não tinha entendido verdadeiramente. E, com certeza, não entendi o suficiente até agora.
Obviamente, nunca consideramos os conflitos de terra como se fossem um duelo entre contendentes situados no mesmo patamar e sempre soubemos que envolvem violentos agressores e vítimas inermes. Dona Elena, porém, diz algo para mim que parece novo, mas que descubro ser antigo quanto a conquista e a colonização material e espiritual da Abya Ayala.
Ela diz, com extrema simplicidade, uma verdade sempre ignorada e pisada pelos europeus: indígenas e camponeses não querem o conflito e não sabem o que é o conflito, até quando o capitalismo o cria e o exporta até eles. É algo que é apresentado e disfarçado como dialético, mas, de fato, é sempre unilateral imposição violenta da constitutiva violência do sistema colonialista.
Conflito é heterônimo do capital. Sempre foi assim e também quando as vítimas, em níveis diversos de enfrentamento, reagem à agressão com uma tentativa de violência proporcional, o conflito continua propriedade e responsabilidade de quem o inventou.
Não estou conversando sobre conflituosidade no sentido geral, mas de conflitos de terra, ou melhor, de territórios, que são vividos e lidos pelos povos indígenas, quilombolas e comunidades camponesas tradicionais em termos cosmológicos: para estes povos e comunidades, o ser humano está numa relação de intimidade e reciprocidade com todos os seres vivos, com ancestrais e encantarias, com a terra e a natureza do território em que reproduzem a vida. É esta vida, esta postura existencial, esta espiritualidade, que é agredida pela violência do conflito exportado pelo capital.
Corpos e territórios estão profundamente interligados; por isso, quando dona Elena diz “o conflito entrou em mim”, nos diz mais uma verdade incontestável: a violação do território é inseparável da violação dos corpos. Profecia eminentemente feminina, porque as mulheres indígenas e camponesas, na contramão, também do patriarcado de matriz indígena e afrodescendente, dolorosamente, sabem muito bem o que é corporeidade violada.
O que acontece em Baixão dos Rochas é parte da cotidiana violência do sistema- mundo, que decretou que também o Maranhão é praticamente, com quase todo o seu território, “zona de sacrifício”, indispensável sacrifício, que, como em tantos outros territórios da Abya Ayala e do Planeta, garante os equilíbrios do mercado nas regiões privilegiadas. Em nome da sobrevivência do capitalismo e do bem-estar consumista de parte da humanidade, destroem-se biomas, ecossistemas, territorialidades originárias e tradicionais, comunidades e corporeidades. Agronegócio, pecuária, mineração, obras de infraestrutura e investimentos na produção de energia hidroelétrica, solar e eólica, estas últimas contrabandeadas como sustentáveis, estão matando a Vida. Hoje, porém, resulta inviável este sacrificialismo em função da reprodução do sistema, porque também a vida dos privilegiados, dos negacionistas, dos indiferentes, está ameaçada.
Como não é mais plausível, desde 1991, continuar pensando o conflito em termos de “luta de classes” e de confronto ideológico e bélico entre blocos contrapostos, o resultado da mudança de época é a violência anômica do capital e o estado de exceção.
Em suma, parece mesmo necessário ressignificar o conceito de conflito, a partir também das evidências da realidade. Fazendo um exemplo, talvez excessivamente radical, poderíamos atrevidamente dizer que os campos de concentração nazistas entrariam na lógica conflitual? Atualizando: se o código atual do capitalismo é o extermínio, o genocídio, ainda poderíamos falar em conflito?
Junto com dona Elena, nos é oferecida a possibilidade de ressignificar os conflitos de terra e deixar “o conflito entrar em nós”. Poderemos discernir junto com ela a lógica e a logística do extermínio, que todos se obstinam a definir como conflito, também e sobretudo quando o tratam no teatro do direito constituído, com atores que não querendo e não podendo renunciar a essa ficção, acabam naturalizando a violência contra os pobres e os pequeninhos.
Nos resta uma amorosa indignação, que pode inspirar solidariedade e aliança com as lutas sagradas, cada vez mais fragilizadas, dos atingidos e ameaçados. Sabendo que é só a partir delas e deles que é possível defender e garantir o futuro da Vida.
Esperança esta, que, porém, não se reduz às boas intenções, porque exige atitudes e métodos adequados para as táticas e as estratégias de enfrentamento. Lutar comporta sempre desafios de organização, articulação e mobilização. A luta dos verdadeiros lutadores, das verdadeiras lutadoras, é luta contra o medo, como dizia Margarida Alves: “eu tenho medo, mas não uso”. É também luta, difícil, mas extremamente necessária e urgente, contra as tendências individualistas e autoritárias que marcam a nossa identidade. É ficar atentos para não assumir acriticamente os falsos valores do inimigo, mas apostar em processos radicais de ecumenismo, sinodalidade e colegialidade. A luta é feita também de atenção permanente à realidade e por isso tem que manter vivas as capacidades críticas e estudar. Sempre. E é também lutar contra os capitães do mato e os traidores que quebram os laços de fraternidade e sempre prejudicam o enfrentamento.
Para defrontar-se com todos estes desafios, somos chamados necessariamente a aceitar a companhia de Jesus de Nazaré, dos Santos e Santas, dos Mártires, dos Encantados e Encantadas, Orixás e Ancestrais, acolhendo também quem não abraça uma fé explícita, mas luta como irmã e irmão verdadeiro.