Instrumento jurídico, segundo o MPF, deveria ser julgado em no máximo 30 dias. Entretanto, em Mato Grosso, há casos de mandados de segurança sem decisão há mais de quatro anos. A falta de decisão impacta famílias acampadas há 20 anos, vítimas de conflitos recorrentes devido à falta de regularização fundiária.
Por Elvis Marques | Le Monde Diplomatique Brasil
Mandados de segurança, que deveriam ser julgados em até 30 dias, estão demorando até quatro anos para serem apreciados no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). A situação é de paralisação da reforma agrária no estado do Mato Grosso. A denúncia é organizações que acompanham a pauta camponesa no estado.
A demora do judiciário acarreta em mais insegurança para as famílias que aguardam para ter acesso à terra efetivado. Em 2022, foram 165 ocorrências de conflitos no campo no estado, com 40.971 pessoas envolvidas diretamente, segundo dados da publicação Conflitos no Campo Brasil 2022, produzida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Foram registrados 2.608 casos de invasões; 1.329 casos de grilagem de terras; 153 roças das famílias foram destruídas; 57 casas destruídas e 5.107 casos de desmatamento ilegal nos territórios dessas famílias. Só no ano passado foram mais de 25º ações de pistolagem contra os povos do campo em Mato Grosso. De acordo com a CPT, a morosidade com que são tratados estes processos contribui para Mato Grosso continuar a liderar, no Centro-Oeste, os conflitos no campo. Quanto mais a Justiça protela um desfecho para as ações que viabilizarão o assentamento das famílias, mais elas estão suscetíveis a conflitos agrários.
Série de eventos da 3ª Semana de Resistência Camponesa de Mato Grosso ocorreram na Superintendência Regional do Incra. (Júlia Barbosa/CPT Nacional)
O Ministério Público Federal (MPF) explica que o mandado de segurança é uma medida judicial que procura assegurar, com rapidez, um direito considerado “líquido e certo”, ou seja, um direito facilmente demonstrável, garantido por lei ou expresso em regulamento ou norma, que esteja sendo violado. “É chamado de remédio jurídico por ser um mecanismo mais rápido para se obter a garantia pretendida e admitir decisão liminar, possibilitando que o juiz determine que o direito seja garantido, antes de julgar em definitivo o mérito do pedido. Os mandados de segurança normalmente são julgados em prazo inferior a 30 dias, mesmo sem pedido de liminar”, aponta o órgão.
Em recomendação enviada ao TRF1 no dia 15 de setembro de 2023, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Mato Grosso (CEDH) orientam à Justiça o julgamento imediato dos diversos mandados de segurança e apelações referentes às áreas Fazenda Cinco Estrelas – Gleba Nhandú, no município de Novo Mundo (MT), cujo processo está parado há três anos; Gleba Mestre I, no município de Jaciara (MT); e a Gleba Gama, no município de Nova Guarita (MT), com área que pode assentar 95 famílias.
No documento, os conselhos argumentam que a União e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estão sendo impedidos de obter a posse das áreas de terra por conta das decisões do Tribunal. E isso está afetando a eficácia da política pública de reforma agrária em Mato Grosso e violando os direitos fundamentais das famílias que deveriam ser beneficiadas por essa política. “Existem mandados de segurança que, após a decisão liminar, encontram-se conclusos sem nenhuma decisão, há 4 anos”, manifestam os conselhos.
Além das terras mencionadas na recomendação, há também o restante da área da Fazenda Recanto, também localizada na Gleba Nhandú, com mais de 7 mil hectares, que aguarda o julgamento de quatro apelações sob as relatorias da Des. Daniele Maranhão Costa e Des. Rosana Noya Alves Weibel Kaufmann.
“Nós temos um processo que já foi sentenciado, com a antecipação de tutela de dois mil hectares, mas há um mandado de segurança emitido por desembargador do TRF1, que impede o Incra de assentar as famílias. Já tem mais de dois anos e meio que tem esse mandado, e por isso fomos até a capital do estado do Mato Grosso para reivindicar as nossas pautas porque não aguentamos mais sofrer debaixo da lona, e a gente cobra e as autoridades nada fazem”, argumenta um trabalhador do acampamento União Recanto Cinco Estrelas, que prefere não se identificar por segurança devido aos conflitos na região. A área citada pelo camponês conta com mais de 80 famílias à espera do assentamento.
Jair Soares, do acampamento Renascer, do município de Nova Guarita (MT), declara que o povo dessas comunidades quer apenas defender os seus direitos, garantidos na Constituição Federal, mas que é abandonado e humilhado em suas lutas. “Quero denunciar os abusos de parte do agronegócio e de grileiros, que grilam as nossas terras. Também temos tido problema com veneno, fazendeiros jogando agrotóxicos em nossas crianças. Pensem se fosse os seus filhos passando por essas situações no acampamento e sofrendo com esses conflitos.”
No dia 10 de outubro deste ano, uma ação truculenta da Patrulha Rural da Polícia Militar (PM) do Mato Grosso resultou em 10 pessoas feridas no Acampamento Renascer, Gleba Mestre I, no município de Jaciara, segundo denúncia do Fórum de Direitos Humanos e da Terra (FDHT) e da Comissão Pastoral da Terra Regional Mato Grosso (CPT-MT).
O ato de violência ocorreu quando as famílias realizavam uma colheita no roçado, e foram surpreendidas pelos policiais que, sem ordem judicial, destruíram a cerca de um morador, que ocupa a área há mais de 10 anos. “Questionados pela ação, os policiais responderam disparando tiros de balas de borracha nas costas dos trabalhadores, além de agressões com chutes e socos. Um dos trabalhadores ficou gravemente ferido e teve que passar por cirurgia. Segundo os trabalhadores, os policiais estavam acompanhados de grileiros ligados à Usina Porto Seguro e Pantanal/Grupo Naoum”, informa o documento divulgado pelo FDHT e pela CPT-MT.
Acampamento Renascer, no município de Nova Guarita – MT (Arquivo CPT)
Mas esse não foi o primeiro conflito enfrentado pelas famílias da Gleba Mestre I. Em janeiro de 2021, conforme nota publicada pela CPT e pelo FDHT, a PM, mesmo sem determinação judicial, destruiu casas e bens das famílias. “Outro episódio de violência ocorreu em setembro deste ano, quando o carro de um dos acampados foi alvejado por tiros disparados por agentes da empresa de segurança Minatto, ao passar em frente às instalações da usina”, denuncia a nota das organizações sociais.
Desde 2004, tramita na Justiça Federal uma Ação Reivindicatória da Gleba Mestre I, primeiramente movida pelo Incra, e, posteriormente, pela União, na 1ª Vara Justiça Federal de Rondonópolis (MT) – processos que reconheceram a propriedade da área como sendo da União, além de antecipar a tutela para que a União fosse imitida na posse da área.
Depois, nas Ações Reivindicatórias, diante do deslocamento dos títulos apresentados pelas pessoas que reivindicavam área, a União propôs uma Ação Civil Pública que tramita na 1ª Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Rondonópolis (MT), a qual requer a anulação das matrículas, resultando em uma liminar para o bloqueio imediato das mesmas.
De acordo com a recomendação do CNDH e do CEDH, entretanto, até o momento não houve a concretização destas decisões, pois elas foram suspensas com os mandados de segurança, sob a relatoria da Des. do TRF1 Maria do Carmo Cardoso, que, após proferir as decisões liminares, mantem os processos conclusos por anos, sem nenhum andamento – o que impede o assentamento das famílias.
O Ministério Público Federal (MPF) formulou, junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), um pedido de Suspensão de Segurança, no qual relata a situação jurídica da Gleba Mestre I, bem como as violações e violências sofridas pelas famílias que aguardam há 20 anos para serem assentadas, onde requer a suspensão da decisão liminar do Mandado de Segurança.
Segundo a Nota da CPT e do FDHT, por pertencer à União, a área da Gleba Mestre I possui, desde 2004, um projeto de assentamento criado pelo Incra, com capacidade de atender 198 famílias, e a concretização do assentamento das famílias ainda não ocorreu por a área estar grilada. “Mesmo com decisões da Justiça Federal, em primeiro grau e pelo colegiado do Tribunal Regional Federal-TRF1, para imissão imediata da União/Incra na área, a desembargadora Maria do Carmo, com decisões liminares em Mandados de Segurança, interpostos pelos ocupantes ilegais da área, tem impedido o assentamento das famílias”, explicam as entidades.
Ao tratar da questão agrária, a Constituição Federal de 1988 prevê a função social da terra. Conforme a Carta Magna, é assegurado a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social. Contudo, o estado de Mato Grosso não cumpre o que está previsto na lei: em apenas duas áreas públicas localizadas na região norte do estado, pertencente à União, a Gleba Nhandú e a Gleba Gama, o Estado brasileiro propôs 38 Ações Reivindicatórias1. Todas essas ações foram julgadas procedentes, então, reconhecendo que as áreas pertencem à União, sendo muitas delas com antecipação de tutela para que a União ou o Incra imitidos imediatamente na posse da terra.
“O estado de Mato Grosso possui uma dimensão continental e existe, infelizmente, muita terra pública grilada que não cumpre sua função social. As terras públicas deveriam, como dispõe a constituição e a legislação ser destinadas prioritariamente para a reforma agrária. Existem diversas ações judiciais em que já foram proferidas sentenças declarando se tratar de terra pública que deveriam ser destinadas para reforma agrária, mas infelizmente, no âmbito do TRF1 esses processos não são julgados, o que acaba por paralisar a reforma agrária no estado de Mato Grosso”, analisa Renan Sotto Mayor, defensor público federal e vice-presidente do CEDH.
Renan ainda destaca que a Defensoria Pública da União (DPU) tem atuado na defesa de famílias acampadas que aguardam há vários anos a efetivação da reforma Agrária e que estão em situação de extrema vulnerabilidade.
A diretora-executiva administrativa, financeira e de fiscalização da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e ex-deputada federal pelo Mato Grosso, Rosa Neide (PT), declara que a “Justiça, especialmente o TRF 1, tem, há anos, dificultado a finalização dos processos e impedindo a reforma agrária no estado. Já foram inúmeras audiências, todas feitas após as votações na turma, reconhecendo que são terras públicas.”
Rosa Neide analisa que os estados amazônicos são os que possuem o maior número de terras públicas, como também a maior quantidade de grileiros que judicializa a tentativa de posse das áreas, mesmo após o término dos julgamentos. “Nesse momento, o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar] está acompanhando os processos juntamente com a AGU [Advocacia-Geral da União], no TRF1, e fazendo todos os esforços para que o processo legal seja garantido e a reforma agrária seja efetivada, especialmente para inúmeras famílias que há anos aguardam debaixo de lona o seu direito à terra.”
De acordo com a diretora da Conab, o MDA já agendou reuniões nos estados, especialmente no Pará e Mato Grosso, para levantar todos os processos em curso e acompanhá-los, além da realização de audiências no TRF1. “O diálogo também foi reaberto com as entidades para retomar o processo de assentamentos”, afirma.
A presidência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) foi contactada por e-mail sobre o tempo para julgar os mandados de segurança e em relação à recomendação do CNDH e CEDH, mas não se manifestou até o fechamento desta matéria.
*Elvis Marques é jornalista e especialista em Assessoria de Imprensa na Comunicação Digital. Há cerca de dez anos atua em organizações do terceiro setor, pastorais e movimentos populares, assim como em diversos coletivos de comunicação no Brasil e na América Latina.
**Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil
A Polícia Federal esteve no território após receber a denúncia de ameaça de fazendeiros contra casal de ambientalistas, na comunidade rural de Barreiro Azul, em Varzelândia, em Minas Gerais. Estado nega proteção.
Por Adi Spezia | Le Monde Diplomatique Brasil
O Brasil é o segundo país mais letal para ambientalistas, ficando atrás apenas da Colômbia que lidera o ranking como país mais violento para ativistas. Em 2022, foram assassinados 177 defensores do meio ambiente no mundo, sendo que 34 ocorreram no Brasil, aponta o estudo da Global Witness, que monitora o cenário de ativismo ambiental desde 2012.
No Brasil, o relatório “Conflitos no Campo Brasil 2022″, organizado anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), registrou em média um conflito por terra a cada quatro horas, em 2022. Um total de 2.018 casos, envolvendo 909,4 mil pessoas e mais de 80,1 milhões de hectares de terra em disputa em todo território nacional.
Entre esses casos estão o casal Maria Izabel Da Silva Francisco e Clailson Gonçalves Ferreira. Camponeses, ambientalistas, raizeiros e militantes do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo (MTC). Eles vivem em um território tradicional na comunidade rural de Barreiro Azul, no município de Varzelância, Minas Gerais.
“Resgatar a minha história quanto mulher camponesa, de ancestralidades estão ligadas a liberdade e a luta pela permanência no campo”, afirma Dona Izabel (Foto: Adi Spezia)
Cercados por vizinhos grileiros e fazendeiros, o casal enfrenta ameaças e constantes investidas contra seu espaço de vida, produção, cuidado e autossustentação. Dona Izabel conta que as perseguições começaram em 2005. Desde então ela luta pela posse da área que herdou de seu pai. “Com frequência ouvimos tiros [disparos de arma de fogo] contra nossa casa, destruição das lavouras, matam os cachorros e nos ameaçam de morte”, conta Izabel.
Em ofício protocolado junto ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), no dia 6 de julho deste ano, consta que “o casal de ambientalistas e raizeiros Sra. Maria Izabel Da Silva Francisco e Sr. Clailson Gonçalves Ferreira se encontram em situação de ameaça e vulnerabilidade no seu território”. Dada a gravidade, o ministério encaminhou a denúncia ao Diretor da Diretoria da Amazônia e Meio Ambiente da Polícia Federal que efetuou uma diligência à comunidade rural de Barreiro Azul, em agosto deste ano de 2023.
No ofício o MMA destacou: “denúncia referente à ameaça contra casal de ambientalistas e raizeiros em Varzelândia (MG)”, onde existe um conflito de terra agrário ambiental com os vizinhos fazendeiros. Além de enfatizar ser preciso levar em consideração “que o governo de Minas Gerais negou a proteção necessária ao casal, sendo omisso até o presente momento mesmo após provocado formalmente sobre a situação”.
A denúncia também foi realizada junto ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDH), onde o movimento reiterou “a permanência do risco à integridade física da senhora Maria Izabel da Silva Francisco e de seu companheiro, especialmente no local de sua residência”.
Frente às denúncias apresentadas aos órgãos públicos, o Ministério dos Direitos Humanos solicitou à Polícia Federal que adote “as providências cabíveis, especialmente no sentido de garantia à integridade física do casal de ambientalistas e raizeiros ameaçados em pretenso conflito agrário e fundiário”.
No entanto, Adriano Ferreira liderança do MTC, destaca não haver “nenhum tipo de providências para assegurar a vida de Izabel e Clailson. O estado de Minas em nenhum momento tomou providências sobre o caso, tem sido omisso, por isso que a Polícia Federal entrou no caso”, explica.
Izabel conta que “para a Polícia Federal ter que ir lá [na comunidade rural de Barreiro Azul] é porque várias vezes foi denunciado, mas apesar disso o povo ficou amedrontado, todo mundo assustado, também perdi minha liberdade, meu direito de expressão religiosa, de assumir a minha identidade quanto mulher do campo, negra”, explica.
Na avaliação do MTC, as investidas contra o casal se dão por Izabel ser uma liderança religiosa, defensora ambiental e por integrar um movimento de trabalhadores do campo que luta pelo direito à terra.
Desde que a Polícia Federal esteve na comunidade rural de Barreiro Azul, “não sabemos qual foi o encaminhamento que eles deram. Depois da visita a gente foi encaminhado para ouvidoria nacional, por conta da proteção à vida e só”, esclarece Italo Vinicius, integrante do MTC que acompanha o caso em Brasília.
Durante o mês de outubro, Izabel e demais lideranças do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras da Campo estiveram em Brasília para dialogar com órgãos públicos e parlamentares voltados à defesa ambiental e de direitos humanos, em especial do estado de Minas Gerais, pois nenhuma medida foi adotada até então para assegurar a vida de Maria Izabel Da Silva Francisco e Clailson Gonçalves Ferreira.
O conflito que já era intenso, após a morte de um dos fazendeiros da região, conhecido como ‘Zé Ruim’, tornou-se ainda mais intenso. “Chegaram e derrubaram as cercas e invadiram nosso espaço, nosso habitar, que é sagrado, terapêutico, um espaço para trabalhar o sagrado” descreve Izabel.
Com olhos marejados, ela relata que, “antes de dar 24 horas da morte de Zé Ruim, ao escurecer as cercas foram derrubadas, o gado foi solto em toda plantação – comeram, estragaram e destruíram tudo. Agora que Zé Ruim morreu, os filhos, os herdeiros estão invadindo, dizendo que aquela terra é deles. É não, porque fizeram uma compra de boca, não tem documentação”, esclarece Izabel.
Após ocorrido, a polícia local foi acionada e efetuou o registro de um boletim de ocorrência, “mas só registrou e não teve mais nada, mesmo após terem cortado árvores centenárias – que para nós é muito importante -, fizeram a matança dos animais”, conta a ambientalista e raizeira.
Junto à comunidade e ao MTC, Izabel desenvolve trabalhos com terapias naturais, homeopatia e autossustentação por meio da produção de alimentos. Na área destruída havia plantações de ervas medicinais, lavoura e também é onde um grupo de quinze mulheres são acolhidas e atuam no resgate da identidade e cultura camponesa, da espiritualidade, do sagrado feminino e se organizam na autossustentação de seus núcleos familiares, além de ser um espaço de preservação da biodiversidade. “Devido à história, se tornou um espaço de acolhimento, de conhecimento, que não é só meu, mas de muitos outros que estão próximos, está muito claro, essas coisas é para intimidar mesmo”, desabafa Izabel.
Além da proteção à vida dos defensores de direitos humanos, entre as reivindicações do Movimento e do casal ameaçado está a realização de um laudo antropológico da área, a fim de comprovar sua ocupação tradicional. Segundo relato de integrantes do MTC, lá tem outros territórios com comunidades resistindo. A resistência e processo de luta caracterizam aquele lugar como espaço de autossustentação, de referência religiosa, ambiental e sustentável, que acolhe outras mulheres, explica Dona Izabel, que ainda completa. “Resgatar a minha história quanto mulher camponesa, de ancestralidades estão ligadas a liberdade e a luta pela permanência no campo”.
*Adi Spezia é jornalista do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo (MTC).
**Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique Brasil
Por Luis Hallazi (IBC Perú),
com edição de Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
O bioma Amazônia é a maior floresta do planeta com 696 milhões de hectares distribuídos por 9 países. Esse cenário de biodiversidade tem sido historicamente descontrolado pelos Estados, o que criou mitos, como ver a Amazônia como um espaço "vazio”, “uniforme” ou um lugar para "colonizar". Hoje a Amazônia é palco de disputas, não só pelo Estado extrativista (madeireiro, mineração e exploração de petróleo), mas pelo crime organizado. Por isso não é suficiente identificar as pressões que se exercem no território, mas também analisar os conflitos que emergem e que estão gerando uma espiral de violência alarmante.
Foi com esse objetivo que, no Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA) reunido em 2017 em Tarapoto (Peru) foi gerada a Iniciativa de Mapeamento de Conflitos Socioambientais e, a partir daí, tornou visíveis as principais causas das disputas ou os principais sujeitos impactados por esses conflitos, informações publicadas no Atlas de Conflitos Socioterritoriais e posteriormente na cartilha Assassinatos na Pan-Amazônia. Com esta tarefa confiada, neste ano de 2023, após a reunião em Bogotá em fevereiro, a Iniciativa se reuniu em outubro na capital peruana (Lima) para construir, de forma coletiva e colaborativa, essas duas ferramentas muito úteis para tornar visíveis os conflitos socioambientais e a violência no bioma amazônico.
Nesta ocasião, o encontro em Lima teve como anfitrião o Instituto do Bem Comum (IBC) e contou com a participação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Universidade Federal do Amapá, representando o Brasil; do Centro de Investigación y Promoción del Campesinado (CIPCA), da Bolívia; Asociación Minga, da Colômbia, e pela primeira vez a participação da organização Secours Catholique, da Guiana Francesa. Pela CPT, participaram Darlene Braga (Acre) e Gilson Rêgo (Santarém/PA), da Articulação das CPTs da Amazônia.
O objetivo do encontro foi atualizar as informações e procedimentos de coleta, sistematização, divulgação e incidência para um novo mapeamento dos conflitos socioambientais, e sobretudo, a visibilidade da crescente onda de violência nos territórios amazônicos até 2023. A meta é apresentar as informações no próximo FOSPA, que será realizado na cidade de Rurrenabaque (Bolívia), em junho de 2024.
Cabe lembrar que recentemente na Cúpula da Amazônia em Belém do Pará, os presidentes dos países amazônicos concordaram na articulação e fortalecimento de organizações amazônicas encarregadas de gerar informações sobre a Amazônia como o Observatório Regional Amazônico da OTCA, daí a importância do mapeamento de conflitos socioambientais e violência.
O encontro em Lima permitiu analisar a conjuntura atual de cada um dos países amazônicos, os casos emblemáticos de cada país e também houve apresentações sobre a experiência de mapeamento de pressões e ameaças da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), e a experiência do MapBiomas-Peru na cobertura e uso do solo com sensoriamento remoto .
Com todo esse intercâmbio de informações e experiências, a Iniciativa de Mapeamento de Conflitos e Violência na região Pan-Amazônica entra em uma nova etapa, que busca dar maior sustentabilidade ao seu processo de articulação para continuar disponibilizando duas ferramentas necessárias para analisar, debater e incidir sobre as causas dos conflitos territoriais, seus impactos na natureza e a violência gerada, num território que, como menciona o recente relatório da Global Witness, trava uma batalha devastadora contra os seus recursos e já é um dos espaços mais perigosos para os defensores dos direitos humanos. Durante 2022, dos 177 homicídios registrados no mundo, mais de 36 deles ocorreram na Amazônia.
Projeto de Lei que institui a Política de Direitos dos Atingidos por Barragens (MAB) deverá ser votado no Senado na próxima terça-feira
Por Leonardo Fernandes e Roberta Brandão | Comunicação MAB
Atingidos em marcha pela aprovação da PNAB. Fotos: Patricia Sousa e Nívea Magno.
Mais um passo foi dado na direção de consolidar uma Política Nacional de Direitos dos Atingidos por Barragens (PNAB). O Senado Federal aprovou hoje (7), a urgência para a votação em plenário do Projeto de Lei que institui a PNAB (PL 2788/2019). O projeto deverá ser votado na próxima terça-feira.
Esta é uma das principais reivindicações do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A PNAB prevê indenizações e reparações aos atingidos por barragens em caso de tragédias ou de impactos pela construção de empreendimentos e pretende coibir a violação sistemática de direitos humanos contra as populações, como o deslocamento forçado, a perda de meios de subsistência e a degradação da saúde coletiva.
“Essa é uma conquista muito importante, histórica, da luta dos atingidos. A gente segue otimista e esperançoso de que vamos aprovar também em plenário a Política Nacional de Direitos dos Atingidos”, disse Robson Formica, da coordenação nacional do MAB.
De manhã, o PL havia sido aprovado na sessão da Comissão de Serviços de Infraestrutura da casa, com relatoria do senador Eduardo Gomes (PL-TO). A partir da discussão dos atingidos com o governo federal e com os senadores, a comissão acatou o texto como foi aprovado na Câmara dos Deputados, apenas com alterações de redação. O objetivo é evitar que a matéria volte para a Câmara dos Deputados, atrasando, ainda mais, sua aprovação. No Senado, o texto já havia passado pela Comissão de Meio Ambiente, com relatoria da senadora Leila Barros (PDT-DF), que apresentou um substitutivo.
O projeto de lei da PNAB foi aprovado na Comissão de Serviços de Infraestrutura durante a manhã. Foto: Marcelo Aguilar.
O relator comemorou a aprovação na comissão e parabenizou os atingidos pela luta: “Estou muito feliz em participar como relator da aprovação dessa política importante para o país. O Brasil precisa amadurecer as suas relações entre desenvolvimento e atendimento social. Então, parabéns a todos vocês do MAB por essa luta que é uma luta que eu respeito muito”.
O PL foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados em agosto de 2019 com forte apoio dos deputados: 328 votos favoráveis, apenas 62 contrários e uma abstenção. O contexto foi a comoção gerada pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG), ocorrida em 25 de janeiro daquele ano. 272 pessoas morreram e milhares são atingidas.
Fotos: Patricia Sousa, Nane Camargos e Nívea Magno.
Sem uma lei que os proteja, os atingidos por barragens têm ficado à mercê de acordos judiciais que nem sempre os contemplam.
Lucas Martins Pereira, do Vale do Jequitinhonha (MG), é atingido pela mineração e enfrentou 17 horas de viagem para lutar pela aprovação da PNAB em Brasília: “É uma emoção muito grande, porque finalmente teremos Justiça, principalmente para a gente das comunidades que foram realocadas com a construção da usina de Irapé, e até hoje não têm dignidade, um reassentamento, ou seja, de viver em paz e tocar suas vidas em harmonia”, comenta Lucas.
A conquista encerra a Jornada de Lutas do MAB, que reuniu 2.500 atingidos e atingidas do Brasil inteiro em Brasília. A data escolhida para iniciar a jornada, 5 de novembro, marca os 8 anos do rompimento da barragem da Samarco (Vale/BHP), considerado o maior desastre socioambiental do Brasil.
Evento contou com representantes de 10 estados e ressaltou sabedorias, denúncias e a coragem das guardiãs do bioma
Por Ludmila Pereira e Helen Borborema | Brasil de Fato
Cerca de 70 mulheres, lideranças em diversos estados do Cerrado brasileiro, estiveram reunidas para o Encontro. Foto: Júlia Barbosa / CPT Nacional
Fortalecidas pela ancestralidade e as experiências construídas nos territórios, cerca de 70 mulheres vindas de diversos estados do Cerrado brasileiro se reuniram, em Montes Claros (MG), para o 3º Encontro Nacional Vozes e Práticas das Mulheres do Cerrado. O evento aconteceu na Área Experimental de Formação em Agroecologia do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM), entre os dias 5 e 7 de outubro.
A chegança teve início com três vivências em comunidades tradicionais do norte de Minas Gerais: Grande Sertões, Coletivo de Mulheres do MST Flores Pequi e Grupo de Mulheres de Riacho dos Machados. Em que compartilharam os resultados com a agricultura familiar, a feitura de doces e como as mulheres se uniram, nesses territórios, para anunciar outras formas de trabalhar com a terra e garantir o sustento de suas casas.
Visitas às experiências fizeram parte da metodologia. Fotos: Júlia Barbosa / CPT Nacional e Ludmila Pereira / Articulação Agro É Fogo
Como síntese, foi elaborada uma Carta Final do encontro, divulgada na última segunda-feira, dia 16, e ressalta as sabedorias, as denúncias, mas, sobretudo, os anúncios, a coragem, a luta e a esperança das guardiãs do bioma, considerado o berço das águas do Brasil.
“Somos mulheres de vários povos, Apinajé, Xerente, Xakriabá, Akroá Gamela, Kiriri, Tuxá, comunidades quilombolas, geraizeiras, ribeirinhas, veredeiras, sem-terra, raizeiras, benzedeiras, caatingueiras, apanhadoras de flores, vacarianas e quebradeiras de coco babaçu, reafirmando nossos modos de vida tradicionais como plantadeiras de semente boa. Somos a Sociobiodiversidade do Cerrado”, afirmou o documento construído ao longo do evento pelas muitas mãos das mulheres reunidas.
“Eu sou o Cerrado. A luta das mulheres pela libertação dos corpos não é uma luta separada do território. O primeiro impacto que a gente sente das violações do Cerrado, são em nossos corpos, justamente porque a gente tem essa relação direta de cuidado e tem uma sensibilidade melhor para sentir as coisas benéficas pra gente e infelizmente também as mazelas que chegam até nós, em nossos territórios”, contou Emília Costa, do Quilombo Santo Antônio do Costa e do grupo Mulheres Guerreiras da Resistência, do Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM).
Para Maria Emília Pacheco, assessora da ONG Fase e integrante do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), esse encontro é histórico e marca um tempo muito significativo nessa construção, principalmente do ponto de vista metodológico, porque ele foi precedido por visitas que apresentam os anúncios do fazer agroecológico e tradicional, e a potência das mulheres.
“As experiências visitadas mostraram o papel predominante das mulheres, como elas exercem a liderança na construção e inovação da sociobiodiversidade. Vimos aqui que o aproveitamento dos frutos nativos reforça as culturas alimentares, e isso se opõe a uma realidade que vivemos hoje, que é da monotonia alimentar, exatamente porque é um país que predominantemente está aí com os monocultivos”, analisou Maria Emília, que foi a primeira mulher presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
Várias dimensões da luta e seus vários sentidos
Foto: Ludmila Pereira / Articulação Agro É Fogo
O evento foi uma realização da Articulação de Mulheres do Cerrado, que integra a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, com apoio da Cese, Misereor e Comissão Pastoral da Terra (CPT). Segundo Aline Silva de Souza, da coordenação técnica do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais (CAA-NM), entidade que acolheu o encontro, “o objetivo do evento foi trocar experiências e atualizar as formas, as estratégias e as lutas pela água, pelo território e pelos direitos das mulheres”.
Segundo ela, a Articulação das Mulheres do Cerrado é um espaço que vem da necessidade de fortalecer e ampliar a voz das mulheres. “A gente acredita que para falar de agroecologia, de direitos dos povos, do Cerrado é preciso um espaço próprio das mulheres”, explicou.
No total, mulheres de cerca de 10 estados brasileiros participaram do evento. ”Saímos desse encontro aqui muito fortalecidas, com intuito da gente poder planejar nossas atividades, planejar novos trabalhos, pra gente poder construir novas políticas públicas para a vida das mulheres e para a vida do povo do campo. O Cerrado é super importante na vida de todo mundo, então, devemos estar todos juntos e lutar para proteger esse bioma”, afirmou Maria de Lourdes Souza Nascimento, coordenadora da Rede Cerrado e diretora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha.
Diversas mulheres indígenas estiveram presentes. A cacica Elsa Xerente, de Tocantins, foi uma delas. “Temos que fortalecer a luta que nós temos. Temos que levantar e falar de nós mesmas. É o momento de sair, de falar na frente o que sentimos. Se calarmos a boca, ninguém vai falar por nós, não,” encorajou as outras mulheres. “Se nós não cuidarmos, como vai ficar o futuro? Estamos preocupados com as cabeceiras que estão secando. Sem água, não temos vida, não. Nós queremos é bem viver para nosso futuro, nossos netos, nosso ancião, nossos filhos e o futuro que vai vir”, ressalta a Cacica Elsa, denunciando as monoculturas e empreendimentos do agronegócio que estão destruindo o meio ambiente e desrespeitando os territórios indígenas em seu estado.
A cacica Elsa Xerente trouxe importantes reflexões sobre o futuro que as mulheres do Cerrado defendem. Foto: Júlia Barbosa / CPT Nacional
Um dos momentos da programação do Encontro foi a partilha da experiência da Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais, uma rede que atua, principalmente, no Norte de Minas Gerais, através da conexão de oito povos: geraizeiros, vazanteiros, veredeiros, caatingueiros, apanhadores de flores, vacarianos, quilombolas e indígenas.
“Gostaria de falar da importância que é a gente ouvir o relato de vocês em torno da Articulação Rosalino Gomes, que isso sirva de inspiração para nós que estamos nas outras regiões. O Mato Grosso tem mais de 120 comunidades quilombolas, nenhuma conseguiu ser titulada”, partilhou Cidinha Moura, da ONG Fase.
Ela atua no Mato Grosso e é conselheira do Consea Nacional representando a ANA. “Precisamos mostrar que no Mato Grosso também tem agricultura familiar, tem povos quilombolas, tem povos indígenas. Que existem povos e comunidades tradicionais que estão ali há muitos e muitos anos, que estão ali antes da chegada do do agronegócio, com seus malefícios. O Mato Grosso não pode ser visto pelo mundo como um lugar do agronegócio”, desabafou.
Mulheres do Cerrado fortalecem a agroecologia como estratégia de segurança alimentar e nutricional e preservação ambiental. Foto: Lilian Bento / Rede Cerrado
“Eu comparo esse encontro à adubação das raízes. Precisamos visar muito a união dos povos em suas diferenças e pluralidade, mas também em sua igualdade de direitos. A memória de povos que aqui viveram, aqui vivem e aqui viverão precisa ser respeitada. Os povos precisam ter qualidade de vida,” falou a Irmã Porcina Amônica de Barros, mais conhecida como Irmã Mônica, que atua há mais de 25 anos com plantas medicinais e terapias naturais através da Associação Casa de Ervas Barranco de Esperança e Vida (ACEBEV).
Também esteve presente, no último dia do evento, a deputada estadual Leninha, militante do movimento agroecológico e que há muitos anos contribui com a Campanha em Defesa do Cerrado. Atualmente, ela é vice-presidenta da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Leninha falou sobre os desafios e oportunidades para avançar na defesa dos territórios e na garantia de direitos, tanto no contexto nacional como estadual, e refletiu sobre a importância das pessoas da luta socioambiental ocuparem a política, sobretudo as mulheres.
“Para poder ter a política olhando para os pobres, defendendo os povos tradicionais, os povos originários, as populações que mais precisam, a sociobiodiversidade, nós precisamos pensar estratégias inteligentes, com nosso jeito. É preciso ocupar os espaços de participação social para fazer o debate sobre a luta de classes no Brasil, sobre a inclusão que queremos fazer, de forma politizada e não politiqueira, construindo políticas públicas e contribuindo com a formação cidadã”, afirmou.
Entre os apelos das mulheres do Cerrado reivindicados no evento, estavam: o veto integral do presidente Lula ao PL 2903/2023, que diz respeito ao marco temporal proposto pela bancada ruralista do Congresso Nacional e que fere o direito constitucional originário dos povos indígenas; e a aprovação da Emenda Constitucional (PEC 504/2010), que reconhece o Cerrado e a Caatinga como Patrimônios Nacionais.
Realização do III Encontro Nacional marca história da Articulação das Mulheres do Cerrado. Foto: Ludmila Pereira / Articulação Agro É Fogo
“A carta que acabamos de aprovar fala de uma situação limite, porque lá onde tem o alimento, não há água para preparar esse alimento. São situações extremas que nos convocam em permanência para que política de agroecologia e produção orgânica, política de segurança alimentar e nutricional, política de biodiversidade, mas que respeitam o conhecimento tradicional, sejam consideradas como ancoragens para a gente enfrentar esse período das mudanças climáticas”, revelou Maria Emília.
A ex-presidenta do Consea ainda completou: “Então, esse encontro nos mostrou várias dimensões da luta e seus vários sentidos. A liderança das mulheres é extremamente importante e precisa ser reconhecida, por isso que nós nos posicionamos de forma muito incisiva contra todas as formas de violência. Não podemos continuar no país com essas formas de violência, que também são, muitas vezes, violência do Estado. Precisamos combater com políticas que reconheçam o direito das mulheres e que a gente construa políticas igualitárias, tanto do ponto de vista de gênero como políticas étnico racial”.
Bandeiras e símbolos mostram as lutas e as representatividades das lideranças. Foto: Ludmila Pereira / Articulação Agro é Fogo
A Carta Final do III Encontro Nacional de Mulheres está publicada no site da CPT Nacional, acesse aqui.
*Helen Borborema é comunicadora da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), e Ludmila Pereira, comunicadora da Articulação Agro é Fogo. Edição: Rodrigo Durão Coelho.
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Por Roberto Ossak (Agente da CPT Regional Rondônia),
com edição de Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Imagens: Equipe CPT Rondônia
Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), nossa população perdeu 75% da diversidade de sementes em todo o mundo, somente no século passado. No lugar dessa variedade, cresceu a utilização de sementes híbridas ou geneticamente modificadas, associadas à monocultura, o que coloca a humanidade como refém na mão da pouca variação de alimento para consumir, e ainda assim de má qualidade. Isto se refletiu durante a safra 2021/2022, quando o agronegócio comercializou 6% mais sementes de soja, atingindo um lucro de R$ 21 bilhões em sementes que precisam de agrotóxicos, para não sucumbirem diante das pragas.
Na contramão de tudo isto, as famílias camponesas em Rondônia se fortalecem a partir de encontros de troca de sementes crioulas. São chamadas "crioulas" por não possuírem patentes: são um bem da humanidade e vêm sendo passadas há milhares de anos de geração a geração, e entre membros de comunidades rurais.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) Regional Rondônia vem intensificando a campanha de trocas de sementes crioulas. Muitos agricultores, que já vinham perdendo suas sementes que tradicionalmente cultivavam, perderam as sementes crioulas com o avanço dos transgênicos, e passaram a ter necessidade de alimentos saudáveis no período da pandemia da covid-19.
A contribuição para o desastre vem com o aumento da monocultura de grandes lavouras do agronegócio, impactando muitas comunidades rurais com os agrotóxicos e sementes transgênicas no Estado de Rondônia e sul da região amazônica Brasileira nos últimos anos, deixando os agricultores reféns de um sistema capitalista, que para viver no campo necessita ser dependente de uma loja agropecuária e de algumas marcas de sementes, adubos e agrotóxicos, deixando pequenos e médios agricultores familiares presos a um sistema de produção no qual para ter acesso às políticas públicas, especialmente as linhas de créditos agrícolas, necessitam de um pacote de insumos agrícolas.
O resultado desse modelo de agricultura tóxica e que não alimenta a população é sentido no bolso dos consumidores e na saúde da população em Rondônia: o custo para uma família se alimentar em Rondônia está entre os mais altos do Brasil. Quase todos os alimentos provenientes da agricultura familiar estão vindo do Sudeste e Centro-Oeste Brasileiro, alimentos que encontramos nas feirinhas com alto índice de agrotóxicos, em específico alguns alimentos mais comuns que encontramos nas feirinhas de supermercados da região vindo de fora do estado, como batata, abóbora, banana, pepino, berinjela, tomate, laranja e verduras. Alimentos esses que poderiam estar sendo produzidos no Estado de Rondônia, com incentivo de políticas públicas voltadas para produção agroecológica.
A CPT-RO, todos os anos no mês de outubro, quando celebra a Semana da Agroecologia, realiza trocas de sementes crioulas nas atividades e nos grupos acompanhados e paróquias. Também há investimento em equipamentos agrícolas, que ajudam a melhorar a renda familiar e alimentação das comunidades através de pequenos projetos produtivos.
No ano de 2023, foi possível realizar a distribuição e trocas de sementes de arroz crioulo tipo agulhinha, aproximadamente 500 litros da variedade. Também foram trocadas sementes de feijão, milho, abóboras e ramas de macaxeiras, alimentos altamente impactados pelos transgênicos na região, mas que as comunidades estão resistindo em permanecer nas sementes crioulas com ajuda de pequenos projetos produtivos.
Para melhorar as técnicas de produção agroecológicas dos grupos acompanhados da CPT-RO, foram investidos recursos para aquisição de 3 monocultivadores agrícolas. São pequenos tratores de manuseio simples, facilitando o preparo do solo para cultivo e transporte da produção dentro das comunidades, uma roçadeira motorizada, um kit para construção de horta, um tacho de cobre para fabricar açúcar mascavo, infraestrutura de farinheira, um kit de máquinas de fabricação de artesanatos e uma máquina de beneficiar arroz.
Foto: Máquina de beneficiar arroz
São pequenos investimentos que apoiam as famílias acompanhadas pela CPT-RO, contribuem no combate à fome na região amazônica e têm demonstrado empoderamento para as comunidades tradicionais na permanência em seus territórios, protegendo a floresta e sua biodiversidade e produzindo alimentos saudáveis sem o uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, abrindo um debate regional sobre a importância de cultivar sementes crioulas e plantas medicinais milenares de nossos ancestrais.
Campanha da Fraternidade
Em seu capítulo 90, o texto-base da Campanha da Fraternidade 2023 afirma: "Nas experiências de solidariedade alimentar, a valorização dos povos originários, tradicionais e do campo e de seus saberes comunitários agroecológicos são inspiração para decisões de combate à fome e de resistência a estilos de produção alimentar contrários às dimensões da ecologia integral. As práticas comunitárias de cuidado e preservação do alimento que garantiram e garantem a biodiversidade das sementes e a soberania alimentar precisam ser reconhecidas, divulgadas e protegidas como bens culturais comuns. Entre essas práticas podemos citar os guardiões e as guardiãs de sementes nativas e/ou crioulas, os guardiões e guardiãs mirins de sementes (tanto em comunidades quanto em escolas), as casas, feiras e festas e redes de sementes, as romarias da terra e das águas, as hortas comunitárias, entre outras práticas, são expressões de resistência comunitária que cuidam e demonstram como construir a solidariedade alimentar. Essas iniciativas são um sinal de resistência, educação e espiritualidade ecológicas que se opõem às ações de biopirataria que reduzem as sementes (o alimento) a mercadorias (sementes corporativas)."
Este relato faz parte da série de experiências da campanha 'Fraternidade Sem Fome, pão na mesa e justiça social'
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