Município de Ipê (RS) acolheu romeiras e romeiros inspirados pelo cuidado com a Mãe Terra e anúncios de um futuro sustentável, na manhã do dia 13/02
Por Heloisa Sousa | CPT Nacional
Com informações da CPT-RS
Imagens: Heloisa Sousa
Na manhã da terça-feira de Carnaval (13), o município de Ipê, no Rio Grande do Sul, recebeu a 46ª Romaria da Terra de RS. Cerca de 4 mil romeiras e romeiros se encontraram na comunidade Nossa Senhora de Lourdes, ponto de partida da romaria. No momento, os presentes puderam congregar em um café da manhã organizado pelas romeiras do município e marcado por cânticos e pela confecção de uma grande colcha composta por retalhos trazidos das comunidades.
Sob uma chuva fina, que deu trégua ao calor enfrentado no estado nos últimos dias, os fiéis caminharam rumo ao Seminário de Ipê, no centro do município, proclamando palavras de justiça social e proteção da Casa Comum. Levantando bandeiras da agroecologia, reforma agrária, memórias dos mártires, economia solidária, agricultura familiar e paz, os romeiros se inspiraram no lema ‘Escutar a Mãe Terra e com Maria cuidar da Vida’.
Andrei Thomaz, agente da CPT-RS, explicou que a romaria foi pensada com a representação de quatro cenários. Primeiro, centralizando em Nossa Senhora da Palestina e também em Nossa Senhora da Amazônia, com a produção agroecológica. Depois, a economia de Francisco e Clara, apresentando as cooperativas e caminhos de produções organizadas de alimentos e, por fim, a acolhida das mulheres de Ipê aos romeiros.
Considerada a capital nacional da agroecologia, Ipê é cenário de resistência dos produtores familiares que enfrentam a expansão da agricultura focada na exploração dos bens naturais. “Esses agricultores que produzem agroecologicamente se vêem reduzidos ou forçados a abandonar a produção por causa do encurralamento da agricultura mecanizada e da pulverização de agrotóxicos, que é uma das maiores causas de conflito velado no campo no Sul do Brasil”, conta Thomaz.
No trajeto de aproximadamente 2,5 km, os romeiros puderam adquirir sementes crioulas que foram oferecidas por produtores da comunidade Capela, do município de Antônio Prado (RS). Unildo Longhi, um dos produtores, participou da romaria pela primeira vez, apresentando diversas mudas de mata nativa e frutíferas. “Tem sido uma experiência muito legal e importante. Aqui é a capital da agroecologia e se não temos ecologistas e as sementes crioulas, vai acabar tudo porque hoje em dia é tudo transgênico e aí não tem como sobreviver”, explicou.
Chegando ao Salão Paroquial da Comunidade São Luiz da França, em Ipê, local transferido do campo do Seminário por causa da chuva, a Celebração Eucarística foi presidida por Dom Sílvio e concelebrada por Dom Rodolfo Weber, arcebispo de Passo Fundo; Dom Neri José Tondello, bispo de Juína (MT); Dom Jaime Pedro Kohl, bispo de Osório (RS); Dom Carlos Romulo Gonçalves e Silva, bispo de Montenegro (RS); Dom Cleonir Dalbosco, bispo de Bagé (RS), e mais de uma centena de padres.
Na homilia, Dom Silvio trouxe para os romeiros palavras da Exortação Apostólica Laudate Deum do papa Francisco sobre a sensibilidade de Jesus com as criaturas de Deus. “É urgente contemplar o criado para redescobrir o sentido de cada criatura. A ausência de contemplação tem deixado margem para a exploração irresponsável e criminosa da terra”, alertou, chamando para a construção de alternativas sustentáveis e cooperativas como regras de vida.
Cultivo da esperança
Após quase um ano de mutirão para a organização da 46ª Romaria da Terra, Luiz Pasinato, coordenador da CPT-RS, conta que a celebração apresentou uma bela caminhada e, de modo especial, uma bonita homenagem a Dom Orlando. “Tivemos bastante chuva, mas a agricultura estava aguardando esse momento para molhar as plantas. Nós pudemos também prestar uma homenagem a tudo o que Dom Orlando representa para a CPT, para os movimentos e para as pastorais sociais”.
A tarde seguiu com almoço na feira agroecológica proporcionada pela romaria e animação com músicas de resistência interpretadas por artistas populares que estavam presentes na atividade. Ao final, as romeiras e romeiros puderam retornar aos seus lares abastecidos de sua espiritualidade, força para lutar e mudas de Ipê e outras árvores nativas do Sul do país. A carta das romeiras e romeiros para as comunidades também foi lançada, apresentando denúncias e anúncios. Confira aqui.
Para Celica Vebber, agricultora orgânica e membro do coletivo de mulheres de Ipê, a romaria representou o fortalecimento da esperança. “Assim como é importante o feijão, o arroz, também é importante cultivar a esperança de que a gente vai conseguir construir um amanhã melhor pros nossos filhos. A romaria tem esse significado, de fortalecer a esperança e dar uma vibração pra continuar essa luta por um mundo mais saudável e mais justo”, finalizou.
Eterno romeiro Dom Orlando Dotti
Na ocasião, Dom Orlando Octacílio Dotti, bispo emérito de Vacaria e presença marcante nas romarias, foi homenageado por representantes de diversos movimentos sociais e organizações. Dom Orlando, que foi presidente da CPT de 1993 a 1997, possui uma caminhada de importantes ensinamentos sobre o Ensino Social da Igreja, numa perspectiva missionária e transformadora, pela ação social de movimentos organizados.
“Para olhar um pouco mais profundamente aquilo que eu gostaria de dizer, eu fui ver lá na grande Romaria onde nós fomos pegos por uma chuva muito grande, a de 70 mil pessoas [8ª Romaria da Terra, realizada em 1985], para Dom Orlando poder fazer de fato a conversa ou a reflexão da celebração. No dia anterior ele se mexeu, foi ver um Acampamento Sem Terra de 91 famílias, para a partir dali poder falar. Não é de qualquer jeito, mas é na vida, na caminhada, no dia a dia. Por isso, se nós temos hoje alguém que está ali merecendo esta homenagem, Dom Orlando faz com muita justiça”, recordou, falando em nome da CPT, o padre Leonardo Luchs.
Também fizeram falas o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), a Pastoral da Juventude, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Agricultura Ecológica e Guardiões das Sementes Crioulas, a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do RS (Fetraf-RS), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB/RS), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi- Sul) e padre Cláudio Prescendo, pela Diocese de Vacaria.
Dom Orlando recebeu ainda das mãos de Dom Silvio e frei Nedio Pertilea o pré-lançamento da publicação impressa que está sendo elaborada sobre sua história de vida. “Dom Orlando Dotti tem um longo legado que é difícil resumir e nós queremos passar para a publicação esses dois volumes. É um legado extenso, abrangente e intenso. Esses dois volumes que nós organizamos, se comparam a uma janela de dois batentes: um é emoldurado pela vida, pela administração, pela gestão, pelas atividades, pelas situações e problemas resolvidos, e o segundo batente é constituído pelos discursos, pelas falas, ou seja, pela palavra”, declarou frei Nedio.
Momentos de celebração com músicas de resistência.
Com suas origens no campo, Dom Orlando aprendeu o valor da terra e do fruto desse trabalho desde cedo. “Eu posso dizer que fui, de certa maneira, arrastado pelos movimentos. Uma verdade que se disse aqui e que é muito forte na minha mente é: nós quisemos sempre que os movimentos sociais tivessem a sua autonomia, que não fossem arrastados pelo nariz, pelo bispo ou por quem quer que seja, mas que criassem a sua metodologia, os seus objetivos e, acima de tudo, lutassem por eles. Nós víamos nos movimentos, e também nas pastorais sociais, um caminho para a renovação da sociedade. A sociedade não se reforma por aquilo que vem de cima, mas por aquilo que vem da base”, declarou.
Ele destacou ainda os nomes de Maria José Guazzelli, fundadora dos movimentos agroecológicos em Ipê, e padre João Bosco Schio, que incentivou o associativismo e o cooperativismo no município de Antônio Prado, lutando pela transformação da região. “Nós, hoje, estamos colhendo os frutos daqueles que foram pioneiros dentro desse trabalho no qual nós também nos engajamos. Eu quero, nessa hora, prestar homenagem a essas pessoas citadas e a todos aqueles que acreditam no valor da terra e lutam por esse valor”, completou.