Por Lara Tapety | CPT Alagoas
Fotos: Lara Tapety | CPT Alagoas
Com o tema "Mutirão pela Casa Comum: em defesa da terra, da água e da vida", a 34ª Romaria da Terra e das Águas, ocorrida no último final de semana, animou cristãos em Porto de Pedras, no Litoral Norte de Alagoas, fortaleceu a fé, a esperança e a disposição para a luta de centenas de romeiros e romeiras.
Essa foi a terceira romaria encabeçada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Alagoas em 2023. Antes, teve a 33ª edição na Arquidiocese de Maceió, realizada no município de Murici em janeiro, após o adiamento devido às fortes chuvas no final de 2022; e ocorreu a 10ª Romaria das Águas e da Terra na Diocese de Palmeira dos Índios, no mês de setembro.
Fechando esse ciclo, a 34ª Romaria da Terra e das Águas romaria foi muito participativa. Para tanto, contou com parcerias importantes, como a Paróquia Nossa Senhora da Glória e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs); bem como com a presença ativa das juventudes camponesa e urbana; de religiosas, a exemplo das Filhas do Sagrado Coração de Jesus; de voluntários da associação italiana Amici di Joaquim Gomes; de integrantes do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST); além do engajamento das famílias camponesas.
"A romaria é aquilo que mostra o perfil de uma pastoral e é nela que a Pastoral da Terra se coloca como uma pastoral próxima aos mais pobres através da realização de uma atividade em que a fé, a memória e a resistência andam juntos. Talvez nenhuma outra atividade da Igreja e da sociedade junte esses elementos. Então, isso faz da romaria um evento especial", disse Carlos Lima, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Exibição de filme e celebração da santa missa
A programação começou na noite do sábado, 18, com a exibição do filme "Antes do prato", em frente à Igreja Matriz do município. O público assistiu atento ao documentário que conta a história de quatro experiências em agroecologia, enquanto as últimas caravanas chegavam.
Na sequência, o pároco anfitrião, padre Antelmo Correia, presidiu a celebração da santa missa, ao lado dos padres Diego Vazeta, da Paróquia Senhor Bom Jesus, situada na cidade de Matriz de Camaragibe, e Gilvan Neves, da Paróquia Nossa Senhora das Graças, localizada no bairro Vergel do Lago, em Maceió. Padre Gilvan, além de ser responsável pela brilhante homília, também colaborou com animação da caminhada.
Para o padre Antelmo, a romaria foi um momento de renovação e inspiração da Paróquia Nossa Senhora da Glória. "A romaria foi renovadora para a nossa paróquia, para a nossa comunidade. Recebemos irmãos de praticamente todo o estado de Alagoas e de fato foi uma experiência muito edificante para nós", disse.
O padre Diego retornou à Paróquia Senhor Bom Jesus em fevereiro deste ano após um período na Itália. Entre 1994 e 2000 sua administração e pastoreio marcaram os paroquianos por seu jeito alegre, cordial e cuidadoso com a juventude. Agora, de volta à Alagoas, a participação de Vazeta na celebração e na caminhada inspirou o povo de Deus.
No ato penitencial da santa missa, a missionária franciscana e camponesa, Irmã Cícera Menezes, colocou em forma de prece de perdão a questão da especulação imobiliária da orla marítima, afetando a pesca e o lazer, e a especulação imobiliária rural nos assentamentos. "Pecamos por fazer pouco contra essas injustas", falou.
Após a comunhão, o padre Antelmo pediu intercessão de São José e para que a alegria do Senhor seja a força e acompanhe os romeiros e as romeiras na caminhada.
Caminhada rumo à terra prometida
Na bela caminhada, as pessoas dançavam, cantavam e rezavam. Entre elas estava o grupo de jovens "Renascer no espírito" da comunidade São José, do povoado Lages, que chamou atenção pelo ânimo e pela devoção. A maioria dos meninos e das meninas andou descalça como forma de penitência.
Glendha Elloah, de 15 anos, contou que não apenas o grupo, mas toda a comunidade São José é muito animada. Questionada sobre sua participação, a adolescente relatou: "Foi um momento diferente e único, uma experiência que nunca tinha vivido antes, uma forma de se aproximar mais de Deus. Ontem foi a primeira vez que participamos de uma romaria e já estamos prontos para outra!".
O percurso da romaria contou com quatro paradas inspiradas no tema "Mutirão pela Casa Comum: em defesa da terra, da água e da vida".
Paradas de reflexão
A primeira parada ficou sob responsabilidade das CEBs, que fizeram uma performance teatral trazendo a reflexão sobre o mutirão pela Casa Comum. Na encenação, foram colocadas as bandeiras de movimentos e entidades presentes, como o MST, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag) em Alagoas e o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Alagoas (Sinteal). Ali, a personagem da Mãe Terra ficou em evidência jogando sementes por cima das bandeiras, enquanto cantavam: "Eu vim do ventre da mãe Terra, ela me deu semente boa, que nutre meu corpo, se espalha em bênçãos. Sou plantadeira de semente boa".
A segunda parada foi organizada pelo MST, que fez um jogral em defesa da água. "A água, um bem de todos, vem sendo tratada como um negócio e servindo para enriquecer uns poucos. Mas como diz Papa Francisco: A água, fonte de vida não pode ser uma mercadoria. Por isso estamos em Romaria e nos comprometemos com o mutirão pela Casa Comum em defesa da terra, da água e da vida!", afirmaram os agricultores e as agricultoras em voz alta.
A terceira parada, em defesa da terra, aconteceu na entrada do assentamento Padre Alex Cauchi, destino da romaria. Naquele momento, o coordenador nacional da CPT, Carlos Lima, fez um breve resgate sobre a luta pela terra no Litoral alagoano e a importância do papel das mulheres nas mobilizações, nas ocupações, na resistência e na obtenção de conquistas.
A última parada, no amanhecer do domingo, 19, no assentamento, abordou a defesa da vida, colocando em evidência a sobrevivência do planeta e dos povos. A CPT levou a reflexão que um bom sinal e uma boa prática para a vida é a partilha. Por isso, o encerramento da romaria repetiu o gesto de Jesus Cristo em partilhar os cinco pães e os dois peixes, como forma de trazer a reflexão de que as pessoas podem alimentar umas às outras.
Ao final, a jovem noviça Nathany Keidann, que nunca tinha vivenciado uma romaria, avaliou a nova experiência: "Foi muito bonito ver esse movimento das pessoas, essa fé, essa esperança que eles têm de dias melhores. A gente percebe que a cada parada, a cada momento de oração, eles se recolhiam e entregavam a vida deles para nosso Senhor".
Para a irmã Cícera, a 34ª Romaria da Terra e das Águas foi um forte momento de reflexão coletiva sobre as realidades gritantes da Casa Comum. Estiveram presentes comunidades urbanas e rurais, especialmente aquelas mais atingidas pelos problemas sociais e pelo desrespeito à Mãe Terra. "Quando estamos só refletindo a gente fica mais fraca, mas com mais pessoas, me sinto forte porque podemos sonhar, planejar, organizar de forma coletiva as lutas de combate às maldades", concluiu.
Por CPT Pará
A Comissão Pastoral da Terra Pará, integrada à Campanha Nacional da CPT "De olho aberto para não virar escravo", foi ganhadora do prêmio Amatra 8 de Direitos Humanos Pe. Bruno Sechi, na categoria combate ao trabalho análogo à escravidão. A iniciativa premiada foi o projeto Raice - Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão, realizada pela equipe de Tucuruí.
O Raice é desenvolvido nos municípios de Tucuruí e Itupiranga, e alia mobilização comunitária à formação de redes municipais de combate à escravidão compostas por agentes públicos e sociedade civil. Por meio dele, a CPT realiza o acompanhamento de grupos e comunidades vulneráveis ao risco de aliciamento, apoiando o fortalecimento dos vínculos comunitários e familiares e a construção de alternativas coletivas de produção e de acesso a trabalho e terra, visando à vida digna e ao bem viver.
"O Raice é um caminho de união de forças de vários parceiros locais, mas que tem sua gênese em ser uma rede integrada de mobilização social e comunitária na luta contra a escravidão, envolvendo sobretudo trabalhadores e trabalhadoras, protagonistas da ação", destaca Sirlei Carneiro, membro da equipe da CPT Tucuruí.
Para ele, "ganhar esse prêmio é um grande reconhecimento ao trabalho desenvolvido pela CPT, seja no estado do Pará, seja em outras regiões do país a partir da sua campanha nacional de combate ao trabalho escravo". O Raice também é desenvolvido no Maranhão e no Tocantins.
O Prêmio Amatra 8 de Direitos Humanos - Padre Bruno Sechi - Edição 2023 premia pessoas, coletivos e iniciativas cujas ações se destaquem em razão da promoção e defesa dos direitos humanos nas relações de trabalho, no Estado do Pará.
Formação com membros da Raice em Itupiranga, no dia 30/10 | Foto: CPT Pará
Texto publicado em 21 de novembro de 2023, atualizado em 14 de dezembro de 2023.
Por Flávio Lazzarin e Cláudio Bombieri para IHU Unisinos
Foto: Ana Mendes - Cimi
De 27 de outubro até 10 de novembro, houve um aumento estatisticamente significativo da violência no campo, com vários assassinatos ocorridos em áreas de conflitos fundiários nos estados do Maranhão, Pará, Pernambuco e Paraíba.
Escandalosamente significativo o que aconteceu, no dia 10 de novembro, no Maranhão, quando um grupo de dez pistoleiros a mando de um fazendeiro invadiu o povoado São Francisco, localizado em Barra do Corda, resultando na morte de um deles. Outros dois integrantes da quadrilha foram baleados e socorridos, enquanto outros sete foram resgatados por policiais e presos em flagrante. Noticia-se imediatamente que dos dez bandidos, nove são policiais militares e um penal.
A dimensão, a simultaneidade e a configuração destes fatos provocam reações e debates, que vão além da pontual e preciosa nota da CPT do dia 12.
Eis algumas perguntas e reflexões que circulam nestes dias. Seria uma mera trágica coincidência a confluência desses atos violentos no arco de cerca quinze dias em diferentes regiões do Brasil? Ou são violências programadas e coordenadas?
Esta última não é uma hipótese aceitável, mas é bom sublinhar que existem articulações parlamentares e políticas, que poderiam repetir as estratégias da antiga UDR: a Frente parlamentar "Invasão zero" (200 parlamentares), criada logo após CPI do MST e, na Bahia, em paralelo, o Movimento "Invasão zero" (10 amil proprietários em 200 municípios).
Descartada, evidentemente, a hipótese de uma coordenação destas violências, poderíamos pô-las no âmbito da polarização entre bolsonarismo e lulismo?
Chama a nossa atenção o fato de que ao longo dos quatro anos do governo fascista de Bolsonaro não haja havido, pelo que se sabe, uma concentração de assassinatos e atentados contra quilombolas, camponeses e indígenas tal como a que se deu nesses dias. Teria sido mais lógico que atos violentos dessa magnitude tivessem ocorrido ao longo daquele mandato, e não agora, num governo que, formalmente, estaria a defender e a favorecer as categorias mais fragilizadas do campo. Ou, seria, por acaso, a reação de retaliação do latifúndio justamente diante de uma nova e aguerrida postura do atual governo em favor das populações do campo? Contudo, numa rápida e superficial leitura da política fundiária levada adiante pelo MDA e o Incra do atual governo não nos parece entrever ações políticas que tenham criado algum tipo de impacto significativo tal a ponto de provocar possíveis retaliações do latifúndio. Muito pelo contrário...
Haveria uma outra hipótese a ser considerada: estariam as populações do campo se sentindo fortalecidas e/ou, supostamente, protegidas pelo atual governo de forma a torná-las mais aguerridas e ousadas em suas lutas e reivindicações, e as novas agressões do latifúndio seriam, afinal, uma mera resposta defensiva a essas novas empreitadas sociais desses movimentos?
Não nos parece, também nesse caso, vislumbrar ações de mobilização, de ocupação fundiária e de retomada de territórios originários e tradicionais de tal envergadura que venham a justificar uma renovada metodologia das populações do campo, num novo e suposto favorável contexto político.
Ao descartar a ‘mera coincidência’ desses acontecimentos cabe tentar compreender quais outras razões pressionam, por exemplo, um grupo de policiais para se colocarem a serviço de um ‘fazendeiro’ com a finalidade de limpar de forma clandestina uma determinada área. Seria o movente pecuniário a única razão? O que move um grupo consistente de PMs da mesma cidade a colocar em risco a sua profissão para fazer um ‘trabalho sujo’?
Insiste-se por parte de muitos sobre o papel do Estado nestes conflitos territoriais e repetimos as figuras da ‘omissão’, com anexa impunidade, e da ‘cumplicidade’. Essas leituras são suficientes para entender a responsabilidade do estado nestas agressões?
Achamos que estas perguntas e reflexões, aparentemente oportunas e necessárias, nos deixam, porém, na escuridão e, sobretudo, não abrem portas e caminhos para uma praxe política coerente de enfrentamento da violência. Talvez, possamos encontrar alguma luz retomando a análise do protagonismo político das elites rentistas e empresariais do Brasil.
Somos, assim, obrigados a repetir a única descrição ao nosso ver incontestável do Estado brasileiro: desde a sua origem, se caracteriza como estamento oligárquico-patrimonialista; desde sempre o Estado é o próprio ‘Crime Organizado’.
Podem aparecer ao longo da nossa história, além das ditaduras e dos golpismos, sempre por interferência militar, maquiagens republicanas, democráticas e hipócritas afirmações sobre a vigência do ‘Estado de Direito”, mas também em Estados, como o Rio Grande do Sul, em que parecia vingar uma tradição liberal autêntica, nas últimas décadas vingou a versão do Estado oligárquico-patrimonialista, o Estado como ‘Crime Organizado’. E seria míope continuar pensando que essas características do Estado brasileiro estariam presentes somente no Rio de Janeiro.
Resumindo: o Estado não é cúmplice da violência nem é meramente omisso diante dela, porque ele é incontestavelmente o quartel-general desta guerra contra os pobres e os pequenos.
O Brasil nos proporciona uma versão tropical do Estado de Exceção: a originalidade da Exceção brasileira está no fato que ela se alimenta de forma absolutamente independente da legalidade constituída.
As nossas elites sempre conviveram, sem problema éticos e políticos, com a convicção profunda, atávica e fortemente enraizada da primazia da autolegitimação sobre a legalidade.
Todo o aparato jurídico – código civil e código penal – está submetido ao privilégio incontestável das elites, que decidem, independendo das leis, o que é legítimo, necessário e conveniente para a manutenção do poder. E as leis são normalmente usadas como arma política contra os inimigos e adversários, enquanto familiares, amigos e aliados são dispensados de obedece-las e absolvidos de antemão, também em casos de crimes hediondos.
Evidentemente, as leis cumprem também a função de disfarce da primazia da autolegitimação, encenando a ficção do ‘Estado de direito’. Ficção que consegue ocultar o papel indispensável que o Poder Judiciário ocupa no pacto oligárquico: respeitar caninamente, com rara exceções, a solidariedade de classe, a cumplicidade entre brancos ricos, cultos, proprietários e profissionais liberais.
Saber disto deveria minar o eventual entusiasmo dos defensores dos direitos humanos, porque no confronto jurídico com o Poder Judiciário saem quase sempre derrotados o com vitórias mutiladas por negociações injustas e parciais. No embate processual com o Estado, as comunidades camponesas saem sempre derrotadas.
A impunidade, totalmente garantida aos assassinos, mandantes e executores materiais, de indígenas e camponeses, nestes últimos quarenta anos, é mais uma prova incontestável desta análise. A impunidade não é consequência do descaso dos inquéritos policiais e da morosidade do Judiciário, mas o resultado, deliberadamente construído, de um Estado, que é o próprio Crime Organizado.
E, então, no âmbito da autolegitimação oligárquica, não há como estabelecer uma diferença entre Polícia e Milícia, come se somente ocasionalmente a elite precisasse dos serviços da jagunçada e pistolagem.
Milícia e pistoleiros são elementos constitutivos, orgânicos, do Estado brasileiro. E esta configuração não é característica das oligarquia do passado: no Maranhão funcionava com Vitorino Freire e José Sarney e na Bahia com Antônio Carlos Magalhães, mas continua funcionando com os governos sucessivos, com a única variável do acompanhamento de uma narrativa progressista.
Assim, a violência no campo permanece com José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Dilma Roussef, Lula e, obviamente, continuou com Bolsonaro.
Os populistas de extrema direita aceitam e incentivam a violência para defender os valores tradicionais e, para eles, inegociáveis — Deus-Pátria-Família — ameaçados pelos ‘comunistas’. Repetem a encenação antissistémica nazista e fascista para, de fato, hoje como ontem, terminar radicalizando a violência do sistema capitalista.
A esquerda acha que ainda pode se declarar aliada dos pequeninhos, mas hoje é incapaz de reconhecer a distância que o progressismo da classe média construiu entre si e as massas famintas e desempregadas.
Uma esquerda que está equivocada quando se pensa como a herdeira do legado dos trabalhadores que, porém, há muito tempo, não se reconhecem mais como classe.
Uma esquerda que, quando está no governo, não tem antídotos contra a violência do capitalismo e é obrigada a obedecer à lógica do mercado e às reivindicações das elites amplamente representadas pelo Centrão que manda na Câmara, no Senado e no País.
Uma esquerda derrotada e sem futuro, acometida pelo cansaço ideológico, pela repetitividade eleitoreira, pela incapacidade de entender que a sociedade mudou, pela falta de discernimento que bloqueia qualquer projeto alternativo para o Brasil, em tempos de fome, de desemprego, de violência contra indígenas e camponeses, tempos de novas subjetividades e de dramáticas conjunturas climáticas e bélicas, que marcam tragicamente a atualidade.
Uma esquerda, que, mais tarde ou mais cedo, será varrida do panorama político internacional, pela onda demencial e trágica do populismo de extrema direita.
O que fazer diante de tantos escombros?
Alguns dias atrás, Marcello Tarí nos deu uma dica preciosa: uma profecia bela e intensa de Emmanuel Mounier, que pode ser um presente para aqueles que ainda queiram lutar.
“O perigo, a preocupação são o nosso destino. Nada nos deixa prever que esta luta possa terminar numa fração de tempo calculável, nada nos incentiva a supor que a luta seja constitutiva da nossa condição. Com efeito, a perfeição do universo pessoal encarnado não se identifica com a perfeição de uma ordem, como pretendem todos os filósofos (e todos os políticos), que pensam que um dia o ser humano possa totalizar o mundo. A nossa é uma perfeição de uma liberdade que luta e luta incansavelmente. E que continua firme até depois da derrota. Entre o otimismo intolerante da ilusão liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o verdadeiro caminho do ser humano é este otimismo trágico, em que ele pode encontrar a sua justa medida num ambiente de grandeza e de luta”. (Mounier Emmanuel, Il personalismo, Ave ed. 2004, pag. 56)
A única arma com a qual é permitido marchar para a guerra é a Palavra. E é a própria Palavra que traz a guerra onde reina a paz. Palavra que decide desestabilizar o status quo: “Não penseis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa.” (Mt 10,34-36).
Não é Palavra que simplesmente aceita a inevitabilidade do conflito. É a própria Palavra que o instaura e o preserva com radicalidade.
"Toda morte morrida, toda morte matada, se foi vida vivida, se foi vida doada, não é morte, é VIDA" (Dom Pedro Casaldáliga).
A Campanha contra a Violência no Campo e a Campanha a Vida por um Fio vêm, por meio desta nota de repúdio, chamar atenção das autoridades políticas, da justiça e da sociedade sobre o acirramento da violência contra os trabalhadores e as trabalhadoras do campo.
Não bastasse a violência política pelo Projeto de Lei do Marco Temporal, que ameaça derrubar os vetos do Presidente Lula ao PL 2903/2023 e violar ainda mais os direitos dos Povos Indígenas, a primeira quinzena de novembro está marcada por diversos assassinatos por conflitos no campo:
Josimar da Silva Pereira, membro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na cidade de Vitória de Santo Antão (PE), no dia 05/11;
Agnaldo da Silva, indígena da etnia Turiwara, assassinado pelos seguranças da empresa Agropalma, no município de Tailândia, na região do Vale do Acará, no Pará, no dia 10/11;
Ana Paula Costa Silva e Aldecy Vitunno Barros, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no acampamento Quilombo do Livramento Sítio Rancho Dantas, município de Princesa Isabel, no Sertão da Paraíba, no dia 11/11.
No dia 10/11, em Barra do Corda (MA), uma ação de cerca de dez policiais militares, contratados por um fazendeiro e suspeitos de integrar milícia, tentou expulsar uma comunidade; um deles foi morto, nove estão presos, sendo que dois feridos, no hospital.
Basta! A violência contra os povos do campo está aumentando de modo descontrolado, coincidentemente, no mesmo período em que o Governo instalou uma Comissão de Enfrentamento à Violência no Campo, sob o Decreto no 11.638, de 16/08/2023, do Presidente Lula.
Na semana passada, as Campanhas que assinam esta nota realizaram um seminário de autoproteção de defensores e defensoras, no qual estiveram presentes várias pessoas ameaçadas de morte em seus territórios; e divulgaram, ao final deste, a Carta de Brasília, na qual fazem recomendações a diversos órgãos e ao Governo Federal.
Urgentemente, exigimos do Governo e da Justiça maior celeridade no acompanhamento e julgamento destes casos, para que a impunidade não seja uma regra diante dos assassinatos no campo, bem como a proteção de todas as pessoas que sofrem ameaças no campo brasileiro.
É dever do Estado garantir a proteção dos defensores e defensoras de direitos humanos!
Conclamamos a sociedade brasileira para reivindicar justiça social e segurança, identificando e denunciando as causas e os responsáveis que ameaçam a vida e incentivam e promovem violências, como verdadeiros organizadores da morte matada.
Para que ocorra a paz é necessária a justiça. Que o Estado faça seu dever e proteja seu povo contra as diversas armas que matam quem defende a vida nesse país.
Basta de violência no campo!
Brasília, 14 de novembro de 2023
Campanha Contra a Violência no Campo
Campanha a Vida por um Fio
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA
Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA
Movimento dos Atingidos pela Mineração – MAM
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
Cáritas Brasileira
Movimento Quilombola do Maranhão- MOQUIBOM
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
Movimento Nacional de Direitos Humanos - MNDH Brasil
Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares
– CONTAG
Centro Popular de Formação Vida e Juventude
Rede Eclesial Pan Amazônica REPAM-Brasil
Rede Igrejas e Mineração
Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP)
Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais - CAIS
Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia - Sinfrajupe
Vivat International
Fórum de Direitos Humanos e da Terra MT
Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA
Pastoral Carcerária Nacional
Maparajuba Direitos Humanos na Amazônia
Fetagri
6a Semana Social Brasileira
Instituto Terramar
Irmandade dos Mártires da Caminhada
Mangue Jornalismo
Rede Dataluta
Assessoria do Bloco PT/PDT da Assembleia Legislativa do Paraná 30 Comissão Justiça e Paz de Brasília
Comissão Justiça e Paz de Brasília
Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado 32 Rede de Notícias da Amazônia
Rede de Notícias da Amazônia
Ufopa
Articulação Agro é fogo
Memorial das Ligas e Lutas Camponesas
Coletivo de Mulheres do Norte de Minas
Associação comunitária do Sítio Boi - Casinhas/PE
Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil
Centro Palmares de Estudos e Assessoria por Direitos
Rede de Educação do Semiárido Brasileiro - RESAB
Grupo Tortura Nunca Mais - Bahia
Movimento dos Atingidos por Barragens
Centro de Direitos Humanos de Cristalândia Dom Heriberto - CHDC
Centro de Direitos Humanos de Formoso do Araguaia -TO
Movimento SOS Chapada dos Veadeiros
Centro Popular de Formação da Juventude - Vida e Juventude
Pastoral da Pessoa Idosa - Diocese de Patos-PB
Comissão Pastoral da Terra do Piauí
Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA)
Alternativas para Pequena Agricultura no Tocantins (APA-TO)
Movimento Nacional da População de Rua - MNPR
Fórum Estadual dos Usuários do SUAS - FEUSUAS-MA
Pastoral da Mulher do Maranhão
Serviço de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental - SARES
Fórum Ecológico de Bacabal
Grupo de Estudos Território e Trabalho - GETTrab/UFMA
Grito dos/as Excluídos/as
IFMA Campus São Luís Maracanã
Pastoral ecológica e CEBS (Lago do Junco Maranhão)
Ufrpe
Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
Centro de Direitos Humanos Dom Máximo de Biennes - MT
Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado
Movimento Fé e Política - PB
Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM
Comissão de Promoção da Dignidade Humana (CPDH) - Arquidiocese de Vitória - ES
Sindicato dos trabalhadores e trabalhadoras rurais de Jussara - Ba
Sttr Cafarnaum
"Nenhuma família sem casa,
nenhum camponês sem terra,
nenhum trabalhador sem direito!"
(Papa Francisco)
No último final de semana, acompanhamos estarrecidos as inúmeras notícias de violências contra comunidades no campo brasileiro. Desde o dia 27 de outubro, foi possível identificar pelo menos cinco assassinatos ocorridos nos estados do Maranhão, Pará, Pernambuco e Paraíba, em áreas que enfrentam conflitos agrários.
Diante de tamanha crueldade e recrudescimento da violência, colocamo-nos em alerta e unidos aos empobrecidos da terra. Não podemos mais tolerar a impunidade diante de tantos assassinatos e atos de violência, relacionada a questões estruturantes da atuação do Estado diante da realidade agrária brasileira.
No Maranhão, o estado mais violento contra os povos quilombolas em todo o Brasil, no último final de semana, três trabalhadores rurais residentes no Território da Travessia do Mirador foram detidos por policiais do Batalhão Florestal, acusados injustamente por crimes ambientais enquanto estavam trabalhando em suas roças, além de uma suposta "resistência", quando na verdade estavam de posse de suas ferramentas de trabalho de uso comum.
Por outro lado, a atuação de milícias rurais a mando de fazendeiros tem se intensificado no estado. Na sexta-feira (10), um grupo com 10 milicianos invadiu o Povoado São Francisco, localizado em Barra do Corda, sem ordem judicial em uma operação ilegal e criminosa, resultando na morte de um deles. Outros dois milicianos foram baleados e socorridos, enquanto outros sete foram resgatados por policiais e presos em flagrante. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, dos dez integrantes do grupo, nove são policiais militares e um penal.
No Pará, conforme notícias amplamente veiculadas, o indígena Agnaldo da Silva, da etnia Turiwara, foi brutalmente assassinado e outros dois indígenas ficaram feridos por seguranças privados da empresa Agropalma, quando se dirigiam para a floresta em busca de alimentos. No Vale do Acará, no nordeste paraense, há um histórico de conflitos agrários e violências praticadas pelas empresas Agropalma e Brasil Bio Fuels (BBF), que utilizam segurança privada para impedir o acesso de comunidades indígenas e quilombolas. A omissão do Estado frente aos crimes gera um cenário de perpetuação da violência.
No Nordeste, a luta pela terra e a resistência das comunidades continuam vivas, mesmo diante da violência. Na tarde do sábado (11), Ana Paula Costa Silva e Aldecy Vitunno Barros, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra foram alvejados no acampamento Quilombo do Livramento, Sítio Rancho Dantas, no município de Princesa Isabel, no Sertão da Paraíba. No dia 05, Josimar da Silva Pereira, trabalhador rural sem-terra e acampado em área de conflito agrário havia sido assassinado em Vitória de Santo Antão, Zona da Mata de Pernambuco.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) cobra uma atuação enérgica, imediata e efetiva por parte do Estado no que se refere à investigação, identificação e punição dos responsáveis pelos crimes. Caso atue de maneira omissa e descompromissada, o Estado brasileiro será também responsável pela perpetuação do martírio que aflige os empobrecidos da terra. Nesse caso, a omissão tornar-se-á tão grave e cruel quanto os próprios crimes cometidos.
Todos esses casos apresentados nos colocam mais uma vez diante da histórica violência, degradação e injustiça a que estão submetidos os povos do campo no Brasil, e da urgência de realização de reforma agrária ampla e efetiva e demarcação de territórios no país. Inúmeras são as comunidades que aguardam há anos a concretização de seu direito legítimo de acesso e permanência em seus territórios, estando como que refugiadas em seu próprio país.
Após anos de abandono nessa política pelo Governo Federal, a vulnerabilidade das comunidades nos acampamentos, ocupações, assentamentos e territórios tradicionais e originários é uma dura realidade que precisa ser olhada com atenção pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
A situação reflete a perversidade do latifúndio no Brasil, que busca perpetuar seu poder sobre a terra com o uso da violência contra aqueles e aquelas que resistem. Nesse sentido, as ameaças de morte, assassinatos e a expulsão das comunidades de seus territórios tornam-se práticas comuns. Tanto a pistolagem, quanto as milícias rurais e as empresas de segurança privada, são instrumentos para a prática desses crimes, visando a concretização da grilagem e o domínio territorial de áreas tradicionalmente ocupadas, ou reivindicadas pelas comunidades do campo.
A violência dos últimos dias deve ser, para nós, um alerta! Tratamos aqui de conflitos extremamente complexos que demandam também respostas complexas. Nesse sentido, as respostas devem ser abrangentes, atacando diretamente a raiz dos problemas.
Reivindicamos que a Comissão de Enfrentamento à Violência no Campo assuma com urgência esse papel, articulando respostas governamentais em ação dialógica entre o Estado, nas esferas administrativa e judiciária, em nível federal e estadual, em conjunto com a sociedade civil. É urgente o desenvolvimento de ações articuladas pautadas em dois princípios fundamentais: garantia do direito à terra e ao território para as comunidades; e combate à impunidade frente aos crimes praticados pelo latifúndio.
Ademais, os estados também devem assumir sua responsabilidade no combate à impunidade, dada a competência das secretarias de segurança pública para investigação. Seguindo protocolos de devida diligência baseados na imparcialidade e celeridade, deverá promover investigações e subsidiar o Ministério Público para instaurar os procedimentos judiciais necessários à responsabilização dos agentes causadores da violência no campo.
Assim, convivendo com a dor da perda de tantas vidas e sentindo no coração a fome e a sede de justiça, reafirmamos o nosso compromisso de estarmos irmanadas e irmanados com cidadãos e cidadãs camponesas, indígenas e quilombolas e suas comunidades, que são as mais vulneráveis diante do poder do capital. Ansiamos, como Pastoral da Terra, pela paz, pelo bem viver e pelo fim das desigualdades sociais no campo e na cidade.
Goiânia, GO, 14 de novembro de 2023
Diretoria e Coordenação Executiva Nacional da CPT
Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional),
com informações da CPT Regional Rondônia
Completando 1 mês do assassinato do trabalhador rural sem terra José Carlos dos Santos, liderança no Acampamento Ipê em Machadinho D'Oeste (RO), o crime ainda continua sem apuração, identificação e prisão dos autores e mandantes. Além da luta por Justiça, as cerca de 150 famílias acampadas denunciam o aumento na escalada da violência, pois estão sofrendo ameaças de morte e a presença intimidatória de um grupo de pistoleiros armados, circulando na área.
A vítima tinha 54 anos e foi assassinada com cerca de 30 tiros na noite de 14 de outubro, em uma emboscada em sua casa no Assentamento Antônio Conselheiro, no município vizinho de Theobroma. A esposa, que estava junto com ele, foi atingida na perna e socorrida, mas sem gravidade. Os vários tiros de pistola calibre .40 indicam uma execução que já vinha sendo tentada outras vezes, conforme relatos de conhecidos e da própria vítima em momentos anteriores. Este é o quinto assassinato de camponeses em conflitos do campo em Rondônia, somente no ano de 2023.
Diante da situação, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) Regional Rondônia enviou ofício a diversos órgãos públicos que atuam no Estado, solicitando providências cabíveis para o caso, além de segurança e resolução pacífica dos conflitos, inclusão de pessoas ameaçadas no programa de proteção, suspensão da reintegração de posse anunciada pela Polícia Militar e um laudo técnico sobre a situação fundiária da Fazenda Maruins e as demais registradas com o mesmo CNPJ, para fins de assentamento de reforma agrária nas terras públicas e improdutivas.
Foram mobilizados: o Ministério Público (Estadual e Federal), Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado, Conselho Estadual e Nacional de Direitos Humanos, Ouvidoria Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Câmara de Conciliação do Incra, OAB e Tribunal de Justiça de Rondônia.
“Recentemente alguns membros do acampamento relataram ter sido perseguidos por um carro, depois de recorrer à Defensoria Pública do Machadinho para pedir atendimento jurídico. Também relataram que têm aparecido troncos atravessados na estrada, nas proximidades do acampamento, em supostas tocaias, carro com pessoas armadas e outras ameaças, que prejudicam até o sono da comunidade, com muitas pessoas idosas e crianças”, afirma o ofício.
O Ministério Público Federal (MPF), através do Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Estado de Rondônia, Raphael Luis Pereira Bevilaqua, resolveu instaurar Inquérito Civil com o objetivo de investigar a atuação do Estado diante de denúncias de violação de direitos humanos, conflitos por posse e propriedade de terras, além do próprio assassinato.
As famílias acampadas reivindicam pacificamente para assentamento de reforma agrária uma área abandonada de 3.000 alqueires (aproximadamente 7.500 hectares) de terra pública da fazenda, referente a um antigo título sem cumprimento das cláusulas resolutivas, na qual já tem sido solicitado para ser retomado pelo INCRA. Segundo os acampados, a propriedade foi subdividida em várias fazendas, ocupando uma área total de cerca de 10.000 alqueires (quase 25 mil hectares).
Em março, uma ação de despejo foi ordenada pelo juiz local, direcionada ao primeiro grupo de sem terras que tinham ocupado a fazenda Maruins, sem atender o acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 828, de 2/11/2022. A reintegração de posse tinha sido solicitada em nome dos herdeiros de João Carlos Di Gênio, médico e empresário paulista que fundou e dirigiu o grupo de educação privada Objetivo.
Atualmente, o grupo está acampado numa área de um alqueire, comprada pelas próprias famílias, nas proximidades da fazenda. Mesmo nesta área particular, as famílias sofrem ameaça iminente de despejo, em virtude de uma liminar de interdito proibitório da Justiça de Machadinho, que obriga o grupo a permanecer longe da Fazenda Maruins. O grupo já fez denúncia de ações truculentas de supostos agentes policiais nos meses de julho e agosto, com disparos de arma de fogo direcionados ao acampamento, invasão e revista às moradias sem autorização e identificação, inclusive dirigindo ameaças de morte de forma geral aos acampados e acampadas.
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