A atividade reuniu agentes da CPT e assentados da reforma agrária de sete estados que integram o Cerrado
Por Júlia Barbosa | CPT Nacional
Foto: Júlia Barbosa | CPT Nacional
O I Encontro dos Assentados e Assentadas do Cerrado debateu pautas importantes relacionadas à Reforma Agrária, sobre suas potencialidades e desafios para garantia do direito pleno, não apenas para o acesso à terra, mas especialmente para a permanência na mesma. O encontro aconteceu no Centro Pastoral Dom Fernando, em Goiânia, nos dias 28 e 29 de julho, e reuniu cerca de 40 pessoas, entre agentes e assentados, de sete estados brasileiros que fazem parte do Cerrado: Goiás, Minas Gerais, Roraima, Maranhão, Piauí, Tocantins e Mato Grosso do Sul.
Uma rodada de apresentações iniciou o Encontro, debaixo de uma árvore mangueira, e deu sequência a uma mística que motivou o grupo a refletir palavras que representassem a luta pela terra, desde as ocupações e os acampamentos até os sonhados assentamentos da Reforma Agrária. No momento, os assentados e as assentadas expressaram palavras como resistência, união, partilha, rebeldia, sonho e vitória, mas também foram lembradas as dificuldades e as violências sofridas em todo esse processo.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
O Incra e a Reforma Agrária no Brasil
Após o momento de acolhida, teve início uma mesa de análise de conjuntura sobre o contexto da Reforma Agrária no Brasil atual, que contou com a presença de Marcelo Gosch, Perito Federal Agrário e Superintendente substituto do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA/GO). Gosch apresentou dados sobre a reforma agrária no país, ressaltando que o Brasil é um dos países que mais concentra terra do mundo, sendo o 5° país com maior concentração fundiária da América Latina, seguindo a medição pelo índice de Gini da distribuição da posse da terra.
Além disso, o Superintendente afirmou que a realidade ainda é atual no Brasil, que continua colocando o agronegócio como o maior beneficiário dos programas de incentivos federais, como o Plano Safra, que se mantém desigual em relação à agricultura familiar, que continua renegada. “Se não houver organização social para cobrar do Incra e do Governo Federal, as coisas não vão acontecer. Se as famílias conseguem acesso aos créditos, ao fomento e às políticas públicas, elas levantam a cabeça e a coisa segue, mas se isso não acontece, as pessoas vendem, vão embora, abandonam. Por isso, a organização social também é muito importante", considerou Gosch.
Dificuldades enfrentadas pelo Incra também foram apontadas por Gosch como um dos desafios a serem superados para a garantia dos direitos e viabilidade do trabalho da instituição junto às comunidades: "A gente precisa da estruturação do Incra para isso também, porque se não tiver estrutura, recurso e tudo mais, a gente não consegue fazer com que as políticas públicas cheguem até as comunidades. Não tem como a gente avançar sem a parceria das comunidades, dos movimentos e organizações sociais”, afirmou.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
Realidade dos assentamentos no Cerrado
Após uma fila do povo, em que os assentados e assentadas puderam fazer apontamentos e perguntas ao Superintendente Gosch, deu-se início a exposição dos dados de duas pesquisas. A primeira, com foco em Goiás e Mato Grosso do Sul, foi coordenada por agentes da CPT da Grande Região Centro Oeste. Já a segunda pesquisa apresentou um panorama geral sobre os 56 assentamentos acompanhados pela CPT no Cerrado, e contou com a contribuição de professores do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (IESA/UFG) e da estagiária Melyssa Silva (IESA/Labotter).
A pesquisadora e agente da CPT Valéria Santos e o agente da CPT e agricultor familiar Gerailton Ferreira detalharam informações levantadas pelas pesquisas. De acordo com o levantamento, nas áreas de Cerrado, somam-se 2.984 assentamentos, totalizando quase 14 milhões de hectares de terras destinadas a cerca de 299.848 famílias. As pesquisas buscaram entender questões relacionadas à titulação dos assentamentos, dificuldades enfrentadas, produção e comercialização, acesso a políticas públicas e impactos da utilização de agrotóxicos.
Partindo dos resultados apresentados, bem como das considerações do perito agrário Gosch, os assentados e assentadas apontaram os desafios percebidos no dia a dia ds assentamentos rurais, além de suas perspectivas e inquietações. Entre as dificuldades mencionadas, a falta de políticas públicas, a ausência de fiscalização e o abandono governamental foram as com mais evidência. Em relação às expectativas, o grupo pautou o enfrentamento ao agronegócio, regularização dos acampamentos e retorno aos trabalhos de base.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
"A gente vê tanta gente que morreu procurando direito nosso e nós não podemos ir atrás também? A gente não pode só esperar alguém fazer algo pela gente, nós precisamos ir também. Não é do jeito que eles estão pensando, às vezes também não é do meu jeito, mas a gente junta e vamos chegar a um denominador comum e que a gente possa melhorar a comunidade”, afirmou Alice Álvares, assentada da reforma agrária no Assentamento Teijin, Mato Grosso do Sul.
Ao final do primeiro dia, uma mística apresentada pela agente da CPT Simone Oliveira ilustrou os desafios e as potencialidades da preservação do Cerrado, seguida de um momento de trocas de sementes, que foram trazidas pelos próprios agricultores e agricultoras diretamente de seus assentamentos.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
Perspectivas para a Reforma Agrária
O segundo dia do Encontro se pautou mais profundamente sobre as potencialidades, as perspectivas de lutas e as oportunidades para a reforma agrária no contexto do atual governo. Nesse sentido, o coordenador executivo nacional da CPT Carlos Lima ressaltou a luta pela conquista da terra: “A constituição brasileira era uma oportunidade de fazer reforma agrária e não foi feita. Nós não ganhamos terra, nós conquistamos terra. Muitos companheiros e companheiras tombaram nessa luta, então nós somos lutadores por terra”, destacou.
Em seguida, o agente da CPT no Mato Grosso do Sul Valdevino Santiago evidenciou a importância da união dos trabalhadores não só até a conquista da terra, mas também após o assentamento das famílias, para a continuidade das lutas: “Hoje, nós vamos falar de nós pra nós mesmos, para a gente sentir e refletir qual é o nosso papel enquanto trabalhadores assentados. Ontem, a gente falava que quando estávamos acampados a gente era mais unido, era mais fácil construir as coisas e depois que conquistamos o assentamento nos tornamos individualistas”, afirmou.
Valdevino também ressaltou a luta pelo bem viver no contexto da reforma agrária. Segundo ele, há dois projetos em conflito: o da terra para o bem viver e o da terra para negócios. “Existe a terra de viver e a terra de produção – Não é só ter a terra para produzir, mas a terra para viver bem, para viver em comunidade. A CPT reflete, sistematiza e reforça o que é para nós o bem viver. Então, nós temos que ter isso como argumento, bem viver pela qualidade de vida nos assentamentos”, enfatizou.
Foto: Júlia Barbosa | CPT Nacional
Na fila do povo, agentes, assentados e assentadas levantaram questões importantes para a reflexão coletiva, como a participação em espaços políticos estratégicos, o retorno ao trabalho de base e o fortalecimento de associações nos assentamentos. Nesse sentido, Valéria Santos pontuou sobre a necessidade de diálogos e entendimento concreto por parte dos trabalhadores e trabalhadoras a respeito de um projeto político popular, com participação nas discussões das políticas públicas para os assentamentos, não só nos micros-espaços.
Na dinâmica de grupos, os assentados e assentadas discutiram e apresentaram suas expectativas e demandas, que permearam pela defesa da Reforma Agrária Popular, na luta não só pela terra, mas por condições de vida digna, com garantia de saúde, educação, infraestrutura, lazer e políticas públicas aos assentamentos, com a criação de possibilidades para a permanência na terra.
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
O Encontro se encerrou com cantos populares e abraços compartilhados, no esperançar da luta e na certeza da força política e mobilizadora do povo para conquista dos direitos plenos e do bem viver.
Fotos Júlia Barbosa | CPT Nacional
Sob o tema “Haverá Justiça e Reparação? ”, evento reuniu autoridades e representações da sociedade civil organizada, em busca de respostas para andamento do caso
Por Steffanie Schmidt, colaboradora da Ascom - Cimi Regional Norte I
Edição: Carlos Henrique Silva - Comunicação CPT Nacional
Foto: Steffanie Schmidt, colaboradora da Ascom - Cimi Regional Norte I
A mobilização da sociedade civil pela apuração do caso que ficou conhecido como Massacre do Rio Abacaxis, no Amazonas, trouxe para o debate público a cobrança sobre o andamento do procedimento de denúncia dos envolvidos, ante à constatação do inquérito da Policia Federal (PF) da existência de provas e indícios do envolvimento de agentes públicos de segurança no crime.
O evento organizado pelo laboratório Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia – espaço vinculado ao Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), aconteceu entre os dias 02 e 04 de agosto (quarta e sexta-feira), no auditório Rio Solimões, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS), com a memória do caso e atualização sobre o andamento dos procedimentos investigatórios.
Uma série de torturas, ameaças e violações aos direitos humanos foram cometidas por policiais militares entre os meses de agosto e setembro de 2020, sob o pretexto de combate ao tráfico de drogas e à quadrilha que supostamente aterrorizava a comunidade. No entanto, conforme relato da população e parentes das vítimas, a ação policial incluiu prisões ilegais, tortura, humilhações, ameaças, entre outras práticas que denotam a intenção de vingança pela proibição feita pelos comunitários ao ex-secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Governo do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa, de adentrar a Terra Indígena (TI) Kwatá Laranjal para a prática de pesca esportiva.
Ele esteve no local no dia 24 de julho de 2020, a bordo da embarcação Arafat e alega ter sido atingido por um disparo, fato que nunca foi comprovado. Dois dias depois, quatro policiais militares à paisana, à bordo do mesmo, adentram o local, o que provocou confronto e dois policiais morreram, desencadeando a operação por parte do Governo do Amazonas.
A sucessão de acontecimentos que levou à execução de seis pessoas e deixou duas desaparecidas nas comunidades que vivem ao longo do rio Abacaxis e Mari-Mari, nos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba (distante 135 km de Manaus), em agosto de 2020, deixa clara a violação de direitos humanos cometida por agentes a serviço do Estado.
“Utilizar a estrutura pública para atender interesses pessoais é uma prática que percebemos na Amazônia em geral, seja na omissão ou em ações efetivas. Aliado a esse contexto, temos órgãos públicos federais sucateados e sem estrutura para cumprir sua missão. O caso da morte de Bruno e Dom, no Vale do Javari, demonstrou isso. A Comissão Pastoral da Terra lançou o relatório que apontou o aumento de conflitos no campo e, tudo isso, em um contexto de Amazônia que tem a maioria dos deputados a favor do garimpo. É um grande desafio somar forças para seguir denunciando”, afirmou o ex-deputado José Ricardo, que também participou da mesa de abertura. Na ocasião do mandato, integrou o trabalho de apuração do caso, no âmbito do coletivo.
No último dia 28 de abril, o ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas, coronel Louismar Bonates, e o coronel da Polícia Militar Airton Norte, foram indiciados pela Policia Federal. Ao todo, cerca de 130 policiais, entre civis e militares, suspeitos de participar das ações, são investigados. Antes disso, seis delegados chegaram a passar pelo caso, sem um resultado concreto.
“A PF fez o indiciamento de duas pessoas, ou seja, existem provas e indícios para acusar. O MPF se encontra em demora para apresentar a acusação e houve troca de procurador do caso. Que se possa levar isso adiante”, afirmou Paulo Barausse, padre jesuíta e membro do coletivo que participou das escutas junto à comunidade, na época do massacre.
Depois de três anos, o caso encontra-se na 2ª vara criminal da Justiça Federal à espera de denúncia. Na Procuradoria do 9ª ofício, responsável pela parte Criminal, Controle Externo da Atividade Policial, além de Custos Legis Tributário e Custos Legis Previdenciário, o caso está sem procurador responsável. Ainda não há denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF).
A falta de identificação e responsabilização dos envolvidos nos crimes tem sido um fator de influência na saúde coletiva vivenciada pelas comunidades.
O secretário nacional do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Dione Torquato, membro do coletivo, lembrou que conflitos já aconteciam na região desde 2014 e que a situação era de conhecimento do Governo do Estado. Já havia, inclusive, denúncia no âmbito do MPF.
“O Governo do Amazonas autorizou esse massacre; o próprio governador, e hoje temos sofrido as consequências da irresponsabilidade dele. Quantas autoridades, juízes e delegados já passaram por esse caso? Quem teve a coragem e competência para dizer que o Governo é culpado? Nós sabemos que ele é culpado”. Um misto de dor, indignação e esperança marcou o segundo dia do ciclo de debates sobre Massacre do Rio Abacaxis, que trouxe representantes das comunidades ribeirinhas e indígenas dos rios Mari-Mari e Abacaxis, de Nova Olinda do Norte, para relatar as violações que vêm sofrendo desde a chacina, ocorrida entre os dias 03 e 09 de agosto de 2020.
Mesmo sob ameaças e correndo risco de morte, as vítimas cobram justiça em relação aos envolvidos. No dia em que se completa três anos do massacre, tristeza, desabafo, choro e também coragem estiveram presentes nos relatos de quem vivencia as consequências de crimes como abuso de autoridade, coação, agressões verbais e física, tortura e descaso.
A perda da liberdade de circulação na região, além da invasão maciça de todo o tipo de exploração ilegal como madeireiros, garimpeiros, caçadores, pescadores e grileiros de terras, que foi intensificada após o massacre, foi unânime nas falas das sete pessoas que compuseram a mesa.
As vítimas relataram assistirem, desde 2021, a crescente invasão do território com embarcações carregando todo o tipo de riqueza da floresta, incluindo caça e pesca. “O rio ficou pior do que já era, ficou sendo saqueado sem que ninguém pudesse falar nada”, explicou a liderança. Eles cobram a construção de uma base de segurança da Polícia Federal no local, que chegou a ser prometida à época.
“Não estamos aqui para pedir indenização. Só queremos Justiça. Queremos que as pessoas que torturaram, que mataram, que estavam nesse movimento, sejam punidas. Perdemos nossas vidas, paz, liberdade e autonomia. Não matamos ninguém. Não roubamos ninguém. Não fizemos nada disso, mas estamos pagando”, afirmou uma liderança indígena do povo Maraguá.
“Nossos parentes pagaram por uma coisa que não tinham nada a ver. Foram mortos como se fossem um animal. Amanheceu o dia, e encontramos só o corpo, a cabeça estava toda estraçalhada. Na nossa área, do rio Mari-Mari tem uma placa, da demarcação, conseguimos com muita luta, há 20 anos. Agora estamos pedindo por socorro enquanto somos massacrados”, afirmou outra liderança indígena, do povo Munduruku.
“A lancha entrou no rio errado, eles alegam. Mas eles não estavam com um mapa ou um GPS? Do lado do governo parece que está tudo tranquilo. Às vezes dá vontade de desistir, mas peço ajuda de Deus e força pra lutar: se for para morrer, que eu morra vendo a justiça ser feita”, completou o indígena Munduruku.
Em meio a lágrimas e soluços, uma representante das vítimas silenciou o auditório, diante dos questionamentos: “Será que essas pessoas são dignas de usar essa farda? Será que elas têm esse direito? Esperávamos a chegada do nosso parente em casa e até hoje ele não apareceu. O que fizeram? Onde ele está? Também é um ser humano. Peço por Justiça, peço a Deus que me mostre onde ele está, o que aconteceu. Deus deu a vida e a liberdade a todos. Temos um advogado muito grande acima de nós, Deus. Uma hora vai sair a resposta”, relatou, emocionada. “Para nós, não é dinheiro não. Queria vê-lo de novo. É muito revoltante, triste o que aconteceu”, completou.
O evento organizado pelo laboratório Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia – espaço vinculado ao Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), iniciou nesta quarta-feira (2), no auditório Rio Solimões, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS).
Ao final, um jovem Maraguá, filho de liderança, pediu por oportunidades para os jovens da região que acabam sendo aliciados pelo tráfico de drogas e demais atividades criminosas. “Agora que a região passou a ser uma ‘novidade’, que ‘descobriram’ que existem pessoas, indígenas, venho pedir como um jovem: a gente quer é oportunidade. Como morador de lá, já passei por perdas para traficantes. O que tiverem de encontros, de oportunidades de aprendizados, nós queremos. Sinto esse prazer de lutar pelo meu povo, quero aproveitar para ter mais conhecimento”, afirmou.
As vítimas denunciaram ainda o clima de tensão e preconceito vivenciado na cidade por parte do poder público municipal que acaba contaminando a população local. Em Nova Olinda do Norte foi retirada a disciplina de língua indígena nas escolas.
O procurador da República no Amazonas, Fernando Merloto, responsável pelo 5º ofício do MPF, relacionado a populações indígenas e comunidades tradicionais, afirmou que os conflitos na região acontecem já há alguns anos e houve uma tentativa de mediar um ordenamento fundiário e pesqueiro na região, pelo MPF. “Temos aqui um procurador responsável agora para apurar os reflexos civis do massacre, paralelo ao acompanhamento criminal”, explicou.
O evento contou ainda com a participação da perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) Ana Valeska Duarte.
Por Andréia Silvério (Coordenação Nacional), Raione Lima e Francisco Alan (CPT Regional Pará)
Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
A Comissão Pastoral da Terra participa, durante os dias 03 e 04, de reunião descentralizada do pleno do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), encontro realizado em Belém (PA). Na abertura desta atividade, a CPT apresentou dados sobre conflitos no campo, com enfoque para realidade da Amazônia Legal e Pará, além de ter sido apresentado o Relatório final da Missão do Conselho à região oeste do Pará, realizada em maio deste ano.
Além desta reunião, até o dia 09 de agosto, o CNDH promoverá uma série de atividades e ações estratégicas de incidência no estado, alvo de elevado número de denúncias sobre violações de direitos humanos no campo e nas cidades. A atividade ocorre no mesmo período em que o Brasil e outros países da América Latina promovem dois eventos importantes também em Belém/PA: os Diálogos Amazônicos e a Cúpula da Amazônia. Para participar estão mobilizados atores da sociedade civil, movimentos sociais, órgãos públicos e organismos internacionais. Segundo a Secretaria Geral da Presidência da República, trata-se de momentos de escuta da sociedade civil e debate com o poder público para discutir o futuro da Amazônia, com enfoque na construção de políticas públicas e preservação da sociobiodiversidade.
Os dados trazidos pela CPT durante a reunião revelam a necessidade de que sejam realizados não apenas eventos de escuta da sociedade civil na Amazônia brasileira, mas ações concretas, em respeito ao meio ambiente e aos diferentes modos de vida das populações originárias e tradicionais, dentre tantas outras identidades sociais dependentes desse bioma.
Na Amazônia, é possível identificar o aumento do número de conflitos no campo, que ano após ano, concentra cerca de 60% do total de ocorrências de todo o País. Especialmente nos últimos 4 anos, entre 2019 a 2022, os posseiros, povos indígenas, sem terras, quilombolas e assentados foram as principais vítimas da violência decorrentes de conflitos. Dentre as principais ocorrências que vitimaram as famílias nesses co nflitos estão as invasões, a grilagem e a pistolagem, ameaças de expulsão e ameaças de despejos judiciais.
Nesse aspecto, o Relatório de Missão do CNDH ao Oeste do Pará, apresentado durante a reunião, destaca a necessidade de fortalecimento das ações de proteção a defensoras e defensores de direitos humanos ameaçados de morte no estado, dentre tantas outras ações necessárias à cessação da violência e alteração deste cenário. De acordo com o documento, para além das medidas protetivas visando a proteção física, é necessário a promoção de ações articuladas que ponham fim às causas da violência.
Em relação às ocorrências de trabalho escravo na Amazônia Legal na última década, também apontadas pela CPT como uma forma de violência no campo, é possível identificar um decréscimo do número de casos, bem como em relação ao número de trabalhadores libertados. A queda dos números nesta série histórica está relacionada à diminuição do número de ações de fiscalização realizadas pelos órgãos públicos. Desde 2010, observa-se uma queda na proporção de estabelecimentos fiscalizados na Amazônia em comparação à totalidade do Brasil.
Ações concretas a serem adotadas pelo estado brasileiro diante do cenário de violência ano campo
Diante deste cenário, e considerando a importância do momento político que vivenciamos hoje no Brasil e especialmente na Amazônia, destacamos a necessidade da retomada e fortalecimento de algumas políticas públicas centrais, dentre elas:
a-) Estamos diante da necessidade premente de uma Reforma Agrária efetiva que garanta justa distribuição da terra, oferecendo condições reais de permanência das famílias assentadas em um ambiente seguro para produzir e comercializar seus alimentos, assegurando educação adequada para crianças, adolescentes jovens e adultos, acesso a saúde de qualidade, e a tantos outros direitos que lhes foram historicamente negados;
b-) É necessário avançarmos concretamente com uma política de demarcação e homologação de territórios indígenas, inclusive aqueles que são objeto de retomada pelos povos originários, garantindo-lhes o usufruto exclusivo sobre suas terras.
c-) Da mesma maneira, os Povos e Comunidades Tradicionais precisam ter seus direitos territoriais assegurados, com a devida valorização de seus modos de vida e reais condições de existência.
d-) O fortalecimento da Política de Proteção a pessoas defensoras de direitos humanos: violência no campo deve ser fatalmente combatida para que aqueles e aquelas que lutam por seus direitos - homens, mulheres, crianças, adolescentes - não sejam obrigados a conviver cotidianamente com inúmeras ameaças e violações sobre seus corpos e territórios.
e-) Intensificação das ações de fiscalização de combate ao trabalho escravo de forma integrada com outros órgãos de fiscalização, principalmente em áreas que sofrem desmatamento, extração de madeira ilegal e garimpo.
f-) Necessidade de ampliar a proteção ambiental como instrumento de fortalecer a permanência de comunidades indígenas e tradicionais em seus territórios.
g-) Ademais, diante das situações de violência é necessário que a prestação jurisdicional do Estado para as vítimas seja efetiva, célere e imparcial. Sem o combate à impunidade, é impossível acreditar que a Justiça pode ser real.
Agenda da CPT:
Durante o período de realização dos Diálogos Amazônicos e da Cúpula da Amazônia, representantes do Regional Pará e da Coordenação Nacional da CPT estarão presentes participando das seguintes atividades:
03 e 04/08 - Participação na reunião da 71ª Reunião Ordinária do CNDH e apresentação dos dados do caderno de conflitos no campo da CPT, 9h.
04/08 - Mesa de diálogo - Territórios Quilombolas do estado do Pará: diagnóstico, necessidades e prioridades, às 16h, sala 01 Hangar Centro de Convenções e Eventos da Amazônia.
04/08 - Proteção aos defensores da Amazonia: Direitos humanos são fundamentais para a mudança climática; 16h com participação da coordenação regional da CPT.
04/08 - Abertura Oficial dos Diálogos da Amazônia.
05/08 - Audiência Pública promovida pelo CNDH e CPT Pará, 9h no auditório da Ordem dos/das advogados do Brasil.
06/08 - Seminário “Desafios da transição energética popular na Amazônia”. Hangar Centro de Convenções, das 14h às 18h.
07/08 - Visita do CNDH e CPT Pará aos territórios em conflitos do Vale do Acará, distrito Quatro Bocas - Tome Açu.
08 e 09/08 – Participação do CNDH e CPT em ações de incidência na Cúpula da Amazônia e junto a órgãos públicos do Estado do Pará.
UM ANO DE #CAMPANHACONTRAVIOLÊNCIANOCAMPO
Por Nathalia Carvalho / Campanha Contra Violência no Campo
Nesta quarta-feira (2/8), às 10h, a Campanha Contra Violência no Campo celebrou o seu primeiro ano ativa em prol do enfrentamento à injustiça, à opressão e à desumanidade sofrida pelos que resistem em defesa das suas terras e de seus territórios.
A data foi marcada com uma roda de debate online disponível pelas redes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da rede Brasil de Fato (RS) e da Cáritas Brasileira.
“O objetivo dessa campanha é que um dia ela não precise mais existir, porque não vai haver mais violência no campo. Mas, enquanto houver, a gente vai estar mobilizado e organizado, e é por isso que estamos aqui hoje”, destacou Letícia Chimini, representante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e uma das mediadoras do evento.
Com mediação também composta por Alair Luiz dos Santos, secretário de política agrária da Contag, o debate lançou luz à omissão do Estado em relação às demandas por políticas públicas dos povos tradicionais e apresentou os principais dados dos relatórios: Conflitos no Campo Brasil 2022, publicado pelo CPT com dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno; e Violência Contra Povos Indígenas no Brasil, publicado pelo Cimi na última semana.
Os estudos foram apresentados pelo coordenador do CPT Nacional, Ronilson Costa e pelo secretário executivo do Cimi, Antônio Eduardo.
“Nós tivemos no ano passado cerca de 909.450 pessoas envolvidas em situações de conflitos no campo. Foram 2.018 casos de violência envolvendo questões de água, terra e trabalho escravo. São números muito altos, compreendendo a extensão territorial que tem o nosso país”, alertou Costa.
Segundo dados do Caderno Conflitos no Campo Brasil, em 2021 foram registrados 33 casos de tentativas de assassinato, e em 2022 cerca de 123 casos. Um aumento de 272% em relação ao ano anterior.
O debate também trouxe à memória o Massacre do Rio Abacaxis, ocorrido em agosto de 2020, próximo a Manaus. Na ocasião, ribeirinhos e indígenas Munduruku foram mortos durante uma ação policial da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas.
“Este é um caso muito emblemático, porque envolve forças policiais do Estado de forma direta em operações de massacre de um povo. O fato de até o momento não ter se avançado tanto nesse processo de investigação revela uma outra questão preocupante, que é a impunidade por parte do Estado”, completou o coordenador do CPT.
O estudo registrou, durante o governo Bolsonaro, um total de 136 pessoas assassinadas por estarem na linha de frente nos processos de luta, organização e resistência em defesa dos seus territórios.
Ao apresentar dados do relatório Violência Contra Povos Indígenas no Brasil, Antônio Eduardo, secretário executivo do Cimi destaca:
“O ano de 2022 encerrou um ciclo de 4 anos no qual nenhuma terra foi demarcada. O poder executivo não apenas ignorou a obrigação constitucional de demarcar e proteger as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários como também atuou na prática para flexibilizar esse direito. Houve uma intensificação na violência, que refletiu um ciclo de violação sistemática e ataque direto à luta desses povos”.
O relatório apresentou 416 casos de violência contra a pessoa e 180 assassinatos de lideranças indígenas em 2022. Em relação à omissão do Estado, foram registrados 243 casos, sendo 87 deles por desassistências na área de saúde.
“Não é com satisfação que a gente traz esse relato. A gente torce para que um dia não tenhamos relatórios de violência, mas infelizmente temos que fazer essa denúncia.”, completa ele.
A CAMPANHA
“Queremos encontrar uma saída para que a violência no campo possa diminuir e acabar, a partir da nossa participação, incidência política, cobrança junto às instâncias do governo a nível federal, estadual e municipal, e com a nossa ação direta a partir das pastorais, do trabalho da CPT e a partir do trabalho de cada organização e movimento popular que também abraça esta causa”, destacou Dom José Ionilton, presidente do CPT Nacional, em vídeo-depoimento.
A Campanha Contra Violência no Campo já é formada por mais de 60 organizações e movimentos sociais e pastorais que unem forças diariamente na busca por justiça, reconhecimento e visibilidade da pauta, com o objetivo de fortalecer as ações de enfrentamento à violência no campo.
“A campanha é um instrumento de resistência contra o aumento da violência e da impunidade que é gerada por meio do Estado. Infelizmente, sem a regularização fundiária, a tendência é que essa violência cresça. Torcemos muito para que, em breve, possamos interromper a campanha com o estabelecimento de uma reforma agrária”, destaca Jardel Lopes, articulador da campanha.
As principais demandas da campanha também englobam dialogar e sensibilizar a opinião pública nacional e internacional, articular redes de apoio às vítimas dos conflitos do campo, anunciar a proposta de reforma agrária popular e demarcação dos territórios para o campo brasileiro e tornar pública a real situação de conflitos que ocorrem no campo, nas águas e nas florestas.
“Assim como a questão agrária não é somente uma questão para quem está no meio rural, a violência no campo também atinge diretamente quem está na cidade. Quanto menos os povos ocuparem terra e território, mais violência, menos comida saudável e meio ambiente teremos”, completa Letícia Chimini.
*Confira a Live completa no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=35FnhooD-aM
Por: CPT Araguaia-Tocantins
Nesta terça-feira, dia 1º de agosto, se reuniram representantes da Articulação Camponesa do Tocantins, da CPT, regional Araguaia-Tocantins e a Superintendência Estadual do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a reunião ocorreu na sede do órgão em Palmas e contou com a participação da Defensoria Pública Agrária (DPagra). A audiência foi marcada por boas expectativas e reuniu lideranças de 16 comunidades camponesas dentre assentamentos, ocupações, acampamentos e quilombos, com o objetivo de buscar avanços nas demandas de acesso e permanência na terra, e melhorias nas condições de vida e produção da agricultura familiar.
A Articulação Camponesa de Luta pela Terra e Defesa dos Territórios no Tocantins, criada em 2011, é composta por cerca de 20 comunidades que buscam o fortalecimento e articulação dos trabalhadores na luta pela conquista dos seus direitos coletivamente, a Articulação vem se consolidando como uma nova forma de auto-organização dos camponeses e comunidades tradicionais no estado. E junto com a Comissão Pastoral da Terra, regional Araguaia Tocantins, a Articulação levou à mesa do INCRA as angústias, situações de conflitos, e demandas com o intuito de que junto ao órgão fossem construídas propostas resolutivas aos problemas apresentados pelos camponeses e camponesas presentes.
Durante a reunião, foram discutidos diversos temas relacionados às questões agrárias, incluindo a criação de novos assentamentos, a demarcação e titulação de território quilombola, a regularização fundiária para posseiros tradicionais, o acesso a políticas públicas, créditos e investimentos para agricultura familiar, a necessidade de investimento em infraestrutura e serviços essenciais para o desenvolvimento das comunidades. Além dessas, foram apresentadas denúncias de extração ilegal de madeira nas reservas dos assentamentos e da intensificação da violência no campo provocada pelos grileiros e pela ganância do agronegócio.
Nesta reunião, em que a Superintendência inaugura uma jornada de aproximação e escuta dos movimentos e pastorais sociais do estado, as lideranças camponesas e as agentes pastorais, em suas falas destacaram a importância e a necessidade de se avançar nas demandas das comunidades. Afirmaram ainda que a expectativa de todos é que esta reunião com o INCRA proporcione resultados concretos e efetivos para as comunidades, como bem destaca Laudinha Moraes, agente da CPT Araguaia-Tocantins:
“Diante da urgência de soluções para os problemas enfrentados cotidianamente no campo, esperamos que as discussões avancem e resultem em ações concretas. Depois de anos de luta para que uma reunião desta natureza acontecesse, esta foi bastante significativa em nossa caminhada, suscitou uma renovação de esperança e sonhos entre as fileiras de trabalhadores que aqui representam suas comunidades localizadas por toda extensão da região norte do Tocantins. Embora o caminho à frente possa ser desafiador e requeira esforços contínuos, este encontro trouxe à tona um sentimento de que um novo capítulo na luta histórica dos camponeses está prestes a ser escrito.”
Por sua vez, a Superintendência do INCRA reforçou a necessidade de estabelecer um diálogo aberto e permanente com as comunidades e as entidades envolvidas no que se trata da Reforma Agrária e demais competências do órgão, aponta está comprometido a ouvir as demandas, sugestões e preocupações das organizações camponesas, visando a construção de soluções conjuntas e adequadas às realidades locais. Além disso, sinalizou comprometimento em adotar medidas concretas para as questões levantadas pelos trabalhadores durante a reunião.
O atual superintendente do INCRA, Edmundo Rodrigues, ex-agente da CPT Araguaia-Tocantins, expressou otimismo em relação à colaboração entre o órgão, a Articulação Camponesa e a CPT-AT. Consciente da urgência em proporcionar condições dignas de vida para os agricultores familiares, afirmou o compromisso com a construção coletiva de uma “Terra sem Males”:
"O INCRA é a casa dos povos e comunidades do campo. E deve estar sempre de portas aberta para os trabalhadores e trabalhadoras. Esta superintendência está comprometida em avançar na agenda da Reforma Agrária e garantir que políticas públicas sejam implementadas de forma adequada e eficiente. Destacamos a preocupação com as situações que envolvem conflitos, buscaremos trabalhar em conjunto com o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública Agrária e acionar a Comissão de Conciliação Agrária Nacional do INCRA e do MDA em busca de garantir a paz no campo do Tocantins. Nossa intenção é trabalhar em conjunto com a Articulação Camponesa, movimentos, organizações e pastorais sociais para alcançar resultados positivos e duradouros." Afirmou Edmundo.
Assim, a reunião marcou um passo importante na luta pelo acesso e permanência na terra, por isso a Articulação Camponesa afirmou que com o apoio da CPT, permanecerá resistindo desde as bases para que as vozes dos camponeses sejam ouvidas e atendidas, e as discursões e acordos firmados durante a audiência com o INCRA e DPagra sejam efetivados e alcancem bons resultados.
Família Ticianel é uma das das mais influentes no agronegócio do Matopiba; considerada “parceira privada” da Secretaria do Meio Ambiente no combate aos incêndios no Parque Estadual do Mirador, ela esconde histórias de conflitos fundiários, lobby político e corrupção
Por Alceu Luís Castilho, Tonsk Fialho e Bruno Stankevicius Bassi, especial para Agro é Fogo
Pedro Ticianel, de camisa, inaugura compensação ambiental da Agro Serra no Parque do Mirador (Divulgação/Agro Serra)
Todos os anos, o inverno chega trazendo apreensão àqueles que vivem e tiram seu sustento do Cerrado maranhense. O sol, mais quente a cada temporada, seca as plantas e os cursos d’água. Mata os animais de criação. Os ventos espalham a poeira dos canaviais. E o medo de novas queimadas cresce entre as mais de 260 famílias que fazem do Parque Estadual do Mirador seu lar.
Um medo mais do que justificado: em 2019, durante a fase mais intensa da estiagem, a região sofreu incêndios massivos, que atingiram um quarto da área total do parque, segundo dados da plataforma Alarmes, do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ). Diante da falta de recursos para conter as chamas no local, uma força-tarefa federal chegou a ser enviada no fim de agosto, como parte da Operação Verde Brasil.
De acordo com o Boletim de Monitoramento de Queimadas no Estado do Maranhão, elaborado pela Secretaria de Meio Ambiente (Sema), o Parque Estadual do Mirador vem sendo a unidade de conservação com maior número de focos de incêndio no estado. Em 2022, foram mais de 490 focos registrados. O ano passado foi também o período de maior dispersão das chamas, que atingiram 211 mil hectares do parque – o maior índice da década.
De acordo com os dados de Conflitos no Campo envolvendo o uso do fogo de 2019 até 2022, sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) por meio do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (CEDOC – CPT) e analisados a partir das formulações da Articulação Agro é Fogo, quando observamos a distribuição geográfica das queimadas entre os conflitos por terra, identificamos que nesse período essas violências predominaram no Cerrado, com 39% das ocorrências, seguido da Amazônia, com 28%. Todavia, se somarmos as áreas de Cerrado com suas zonas de transição (onde também se localiza o Maranhão), nelas estão quase 56% de todos os conflitos desse tipo.
Entre os grandes projetos de desenvolvimento, o Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, conhecido como Matopiba, se localiza em áreas de Cerrado e transições. Os municípios que compõem essa região totalizam 24% de todos os conflitos por terra envolvendo fogo entre 2019 e 2022. O próprio Matopiba corresponde a 39% dessas violências no contexto do Cerrado. Sobre quem foi afetado pelos conflitos envolvendo fogo, em 2022, há um destaque importante para os/as posseiros/as como principais alvos de queimadas, em 30% dos conflitos.
Boa parte desses casos se deve às queimadas que afetaram pelo menos 36 comunidades do Parque Estadual do Mirador, no Maranhão, onde as empresas que gerenciam a unidade de conservação fingem não existir sujeitos que tradicionalmente cuidam, protegem e trabalham naquele território. Mas, afinal, quem provoca as queimadas no Mirador?
Veículos de imprensa do Maranhão e informes da própria Sema frequentemente atribuem a responsabilidade aos próprios moradores do parque, que causariam os incêndios florestais devido ao manejo impróprio do fogo para limpar pequenas áreas de roça.
Essa versão, no entanto, é contestada pelas comunidades ouvidas pela reportagem do De Olho nos Ruralistas, que viajou à região em 2022 e 2023. Segundo líderes locais, as queimadas são fruto da ação de fazendeiros e empresários do Sul e Sudeste que atuam no entorno do parque.
Um deles, em especial, abordou a equipe durante as filmagens — o observatório está fazendo um documentário na região — e disse que o canavial poderia “pegar fogo” enquanto estavam lá. O nome desse fazendeiro é Pedro Augusto Ticianel, usineiro e dono da Agro Serra.
Empresa é conhecida na região, nem tanto no resto do país
A Agro Serra Industrial representa o caso curioso de uma gigante do agronegócio relativamente desconhecida entre aqueles que cobrem o setor. Com sede em São Raimundo das Mangabeiras e com mais de 30 anos de existência, a usina responde por 70% de toda a produção de etanol do Maranhão, abastecendo 52% da demanda por biocombustíveis no estado. Além da atuação no setor sucroenergético, o grupo planta soja, distribuindo mais de 600 mil toneladas na região.
Flávio Dino anunciou novos investimentos da BrasilAgro ao lado de Pedro Ticianel em 2018. (Foto: Divulgação/Governo do Maranhão)
Em 2017, a Agro Serra bateu pela primeira vez a marca de 2 bilhões de litros de etanol produzidos e consolidou sua expansão por meio de uma sociedade com a gestora agrícola Brasil Agro S/A., com quem administra a Fazenda Parceria IV, de 15 mil hectares, destinada ao plantio de cana. O negócio foi celebrado na época pelo ex-governador maranhense Flávio Dino – então no PCdoB, hoje no PSB. Hoje ministro da Justiça, ele saudou a promessa de R$ 1,4 bilhão em investimentos na ampliação da produção de etanol e posou para foto ao lado dos dirigentes das duas empresas.
Fundada em 1986, a Agro Serra surgiu como um desdobramento da Destilaria de Álcool Libra. Nos anos 70, o empresário paulista Serafim Adalberto Ticianeli iniciou o plantio de cana na região de Diamantino (MT). Os negócios de Serafim deram origem ao grupo, que ainda é tocado por familiares do patriarca.
Na década seguinte, os negócios da família se expandiram para o Maranhão, com a fundação da Agro Serra em São Raimundo das Mangabeiras, ao lado do município de Balsas, no sul do estado. Para administrar o negócio, Serafim nomeou seu irmão, Pedro Augusto Ticianel, que assumiu as terras no Nordeste.
As mudanças na grafia do sobrenome, aliás, foram comuns ao longo dos anos, variando entre Ticianeli, Tizianel e Ticianel, de acordo com a época em que foram redigidos os registros judiciais e fundiários. De modo geral, Pedro e sua família adotaram o Ticianel, enquanto os herdeiros de Serafim mantiveram o Ticianeli.
Em 1994, com apenas 43 anos, Serafim, o fundador do grupo, se atirou do 13º andar de um prédio do Brooklin, na zona sul de São Paulo. A partir da tragédia, a família teve de se adequar: Pedro Augusto continuou com os negócios no Maranhão, enquanto Cintia Cristina Ticianeli, filha de Serafim, passou a integrar a diretoria da usina do Mato Grosso, com apenas 20 anos.
Atualmente, é ela quem atua na linha de frente dos negócios da família, tendo presidido o Sindicato dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Maranhão e do Pará. Em 2003, Cintia deixou o cargo na usina do Mato Grosso para assumir os negócios em Balsas, no Maranhão, trocando de função com seu irmão, Celso Eduardo Ticianeli.
No Mato Grosso, Celso administra a usina ao lado de um tio, Luiz Carlos Ticianeli, irmão de Pedro e Serafim. A terceira filha do fundador, Claudia Maria Ticianelli Battistella, adotou o último sobrenome após se casar com Rafael Ramos Battistella, neto do fundador do Conglomerado Battistella, que envolve revenda de caminhões Scania, plantio, beneficiamento e venda de móveis de madeira de pinho, e a administração do Porto de Itapoá (SC). A empresa também vende ações na Bolsa de Valores.
Base da Sema foi instalada em fazenda da Agro Serra
Um dos relatos mais comuns encontrados durante a viagem ao Parque Estadual do Mirador é a de que os fiscais da Sema atuariam em conjunto com a Agro Serra para perseguir os camponeses que moram na unidade de proteção.
Abarcando dois terços da área do município de Mirador, o parque abriga 260 famílias, divididas em mais de cinquenta povoados. São, em sua maioria, pequenos agricultores, que chegaram à região na década de 1920 e que, a partir dos anos 70, tiveram de lutar contra a ação de grileiros que tentavam lotear as terras na bacia do Rio Itapecuru. Na tentativa de dirimir os conflitos agrários, o governo do Maranhão criou o parque em junho de 1980, sem, no entanto, garantir o acesso das posseiras e dos posseiros à plena cidadania.
Segundo o relatório “Conflitos e lutas dos trabalhadores rurais no Maranhão – Ano 2021”, publicado pela Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema), os conflitos reacenderam a partir de 2016, quando fiscais da Sema passaram a agir de forma intimidatória contra as posseiras e os posseiros, notificando-os para que removessem o gado – principal fonte de proteína para as famílias da região – e as cercas das roças de mandioca de dentro do parque. Em 2020, foram realizadas operações contra a caça ilegal que, segundo os moradores, usou de força desproporcional.
Uma das principais queixas das comunidades do Parque Estadual do Mirador é a de que as autoridades fazem vistas grossas quanto às denúncias de contaminação do Rio Itapecuru por agrotóxicos lançados pela Agro Serra, além de não atuarem contra a queima da cana que ocasionam os incêndios florestais.
A relação entre Agro Serra e Sema é comprovada pela instalação de uma base de apoio da secretaria dentro de um imóvel da família Ticianel. Em 2021, o local sediou treinamentos de brigadistas para combater as queimadas, em parceria com o Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão e a Defesa Civil.
A parceria entre o clã e o governo maranhense também é vista e é expressa pela relação direta entre Pedro Ticianel e Flávio Dino. Ocorre que o irmão do atual ministro da Justiça, Salvio Dino Junior, advogou para a Agro Serra entre 2013 e 2015, em processos trabalhistas, e anteriormente em 2008, em processo de matéria diversa. Além do encontro em 2018, Dino prestigiou os Ticianel em 2017, durante a inauguração da fábrica de calcário da família em São Raimundo das Mangabeiras.
Clã Ticinel, Agro Serra, avança sobre terra indígena
Por meio da subsidiária Agro Pecuaria e Industrial Serra Grande Ltda. e dos CPFs de Pedro Augusto Ticianel e de seus filhos Túlio Fraxe Ticianel, Anna Kelly Fraxe Ticianel Frota e Pedro Augusto Ticianel Júnior, o grupo é dono de pelo menos 186,8 mil hectares de terras na região do Parque Estadual do Mirador, divididos entre 66 fazendas, conforme dados do Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Sigef/Incra).
Pelo menos sete fazendas estão sobrepostas à Terra Indígena Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, conforme revelado pelo dossiê “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado em abril pelo De Olho nos Ruralistas.
São as Fazendas Estiva e Romaria, em nome da Agro Serra Industrial, que somam 12.270 hectares incidentes em território Kanela; além das Fazendas Irajá/Cacimbas e Jacaré, em nome de Pedro Augusto Ticianel; Tucum e Descanso, de Cintia Cristina Ticianel; e Olho D’Água, de Celso Eduardo Ticianel. Ao todo, o clã possui 21.036 hectares dentro da TI Porquinhos, o que equivale a 7% de toda a área delimitada desde 2009 para reestudo.
De Olho nos Ruralistas procurou a Agro Serra para comentar os dados, porém não obteve retorno até o fechamento da reportagem.
Dossiê “Os Invasores” mostra fazendas da família Ticianel sobrepostas à TI Porquinhos, no Maranhão. (Imagem: Eduardo Carlini/De Olho nos Ruralistas)
História vai da Lava Jato à prisão de governador
Apesar desse enorme estoque de terras no Maranhão, a família enfrenta um longo processo de recuperação judicial, oriundo das dívidas adquiridas pela Destilaria Libra junto ao Banco Pan. Ao lado da Odebrecht, a Agro Serra é uma das empresas citadas nas denúncias de conflito de interesses ligadas à passagem do ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro pela consultoria Alvarez & Marsal, conforme revelado pelo UOL. O grupo maranhense pagou R$ 120 mil à firma estadunidense para que conduzisse seu processo de recuperação judicial em 2017, pouco após ter sido citada na Operação Lava-Jato, em um esquema que envolveu o pagamento de propina para a liberação da Ferrovias Norte-Sul e da Integração Oeste-Leste.
Origem das dívidas, a Destilaria Libra conecta os Ticianel a outro grupo político. A usina pertence à Libra Etanol Participações Societárias, composta pelo irmão de Serafim Ticianeli, Luiz Carlos Ticianel, pela viúva Izelia Ticianeli, pelo gerente operacional da destilaria Pedro Aires e por Piero Vincenzo Parini.
Parini já presidiu o Sindicato das Indústrias Sucroalcooleiras do Estado de Mato Grosso (Sindalcool-MT), e em 2017 foi citado em termo de ajustamento de conduta da Odebrecht, como responsável pelo recolhimento de propina junto ao setor sucroalcooleiro, entre 2012 e 2013, em nome do antigo Secretário da Fazenda do Mato Grosso, Marcel De Cursi – preso em 2015 ao lado do ex-governador Silval Barbosa (MDB) e condenado a treze anos de prisão.
Da corrupção às queimadas, da política à tomada do território, histórias como as do grupo Agro Serra e da família Ticianel se repetem pelo país e passam frequentemente despercebidas pelo grande público. O fogo que devasta o Cerrado — e a Amazônia, o Pantanal e o Pampa — tem nome e CNPJ. Para combatê-lo, não basta apagar as chamas a cada ano. É necessário identificar e responsabilizar seus perpetradores — diretos e indiretos — e mapear suas conexões com o poder político e econômico.
A Agro Serra não opera sozinha. O conglomerado se insere em um grande complexo do agronegócio, que inclui outros gigantes como BrasilAgro, Raízen (joint venture entre a sucroalcooleira brasileira Cosan e petroleira holandesa Shell), Petrobras e Grupo Ipiranga, além do próprio governo do Maranhão. E que também inclui entidades de classe, sindicatos rurais e lobistas. Para entender a real disparidade de poder entre as comunidades atingidas e os empresários que as assediam, é preciso observar o contexto em que eles atuam, para além do território.
Por fim, em um momento de retomada das políticas ambientais de prevenção ao desmatamento e às queimadas, precisamos, mais do que nunca, fomentar o debate público sobre as causas estruturais da devastação de nossos biomas. Quando, senão agora, teremos a oportunidade de questionar o modelo produtivo expansionista do agronegócio? Até quando nos contentaremos em punir os jagunços e não os mandantes? Quantos mega-incêndios mais iremos assistir até entendermos que o caminho que trilhamos nos levará irremediavelmente à destruição — para o lucro de alguns poucos latifundiários e seus aliados em Brasília e na Faria Lima?
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