Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional),
com informações da CPT Regional Rondônia
Foto: Valdinei Coelho / CPT Rondônia
Mais de 28 anos depois do massacre de Corumbiara (RO), a comunidade, familiares e demais pessoas envolvidas ganham um espaço para honrarem a memória e fortalecerem a luta e resistência, para continuarem vivendo e produzindo no assentamento. A cerimônia de inauguração do espaço, realizada no último dia 02 de outubro, contou com a presença de lideranças de movimentos sociais, sindicatos, assentadas e assentados da reforma agrária, lideranças religiosas e políticas. Representando a Diocese de Guajará-Mirim, também esteve o pároco local, pe. Josiel Santos.
O monumento conta com um pedestal e placa de metal, personalizada de acordo com a escolha dos moradores, e está localizado no assentamento Alzira Augusto Monteiro, próximo ao local do massacre. A organização do memorial é coordenada por Valdinei Antônio Coelho (Nenzinho), e parceria e acompanhamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) - Regional Rondônia.
A reivindicação pelo espaço começou no último mês de agosto, durante o lançamento das Referências Técnicas para Atuação das (os) Psicólogas (os) em Questões Relativas a Terra, publicação organizada pelo Conselho Regional de Psicologia Rondônia/Acre (CRP 24a Região). No momento de escuta, agricultores e agricultoras familiares falaram das dificuldades de atendimento psicológico no campo, sendo a política de saúde mental uma grande lacuna e demanda das comunidades camponesas, ainda mais agravada diante das violências enfrentadas.
Para o psicólogo Cleibson André Nunes Torres, presidente do CRP-24, o espaço servirá para relembrar o passado e olhar para o futuro.
“Nós somos solidários a esta causa desde o início, porque tantos anos depois, é um fato que ainda reverbera dentro das unidades de saúde e das escolas. Este espaço é pra que todos nós possamos dizer que se passaram 28 anos, mas a história continua. Não é um projeto ou palanque político, mas é pra que nós nunca mais esqueçamos o que aconteceu aqui, e também para reivindicarmos políticas públicas de demarcação e titularização de terra, que ainda não estão resolvidas no Brasil”, afirmou.
A opinião foi reforçada por Denise Monteiro, presidenta do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Cerejeiras e Pimenteiras: “É preciso lembrarmos do quanto aquelas mulheres sofreram, com suas filhas e filhos, seus companheiros. Penso que devemos nos organizar e manter o compromisso de sempre estar neste local, todos os dias 09 de agosto, pra relembrar o dia do massacre. Isto é reviver a história, honrar as vidas que foram perdidas e renovar a luta.”
“Este memorial é algo pequeno, diante da simbologia do que ocorreu aqui. Mesmo com a realização da prefeitura, este espaço é fruto das mãos e do suor de toda a comunidade”, afirmou o prefeito Leandro Teixeira Vieira, também presente no evento.
Já o agricultor Moacir Camargo, uma das vítimas sobreviventes do massacre, falou que mesmo com a marca muito dolorosa deixada pela violência, comemora a construção do memorial: “Hoje eu me sinto muito honroso, porque muitas crianças que nem tinham noção da violência na época, hoje são homens e mulheres assentadas, lideranças atuantes. Depois de tudo que passamos, somos vitoriosos; tiramos a terra da mão do latifundiário e hoje ela está nas mãos de quem realmente produz”, afirmou.
Ao final da cerimônia, foram plantados três ipês em torno do memorial, sendo a árvore escolhida como símbolo de resistência.
Histórico do massacre – A violência ocorreu em 09 de agosto de 1995, quando 8 trabalhadores rurais sem-terra, incluindo uma criança, foram mortos durante a madrugada, em uma investida de cerca de 300 pistoleiros e policiais contra um acampamento na ocupação da Fazenda Santa Elina, com bombas e tiroteio por cerca de quatro horas. A ação aconteceu de surpresa, enquanto as famílias dormiam. No confronto, houve reação dos trabalhadores e dois policiais morreram. Do lado dos sem-terra, além dos mortos, outras 20 pessoas ficaram desaparecidas, 350 gravemente feridas e 200 presas. A perícia e as investigações também apontaram casos de espancamento e tortura entre os sobreviventes. No julgamento acontecido em 2000, saíram condenados dois posseiros e três policiais militares.
Por Comunicação CPT Piauí
Na tarde do último domingo (15), Carlos Rone Salgim ameaçou de morte o Sr. Juarez Celestino, liderança no território Melancias, município de Gilbués, no Piauí.
A ameaça ocorreu junto aos moradores da comunidade Passagem da Nega, no mesmo território. Segundo os moradores, Salgim estava bastante exaltado e, além de dizer que os moradores deveriam sair daquela área, afirmou ainda que “já estava encomendada a pessoa que irá matar o Sr. Juarez”. Rone, como é conhecido na região, já ameaçou Juarez em outras ocasiões.
Nesta segunda feira (16), foi registrado um boletim de ocorrência no município de Corrente e as autoridades estaduais e nacionais foram também comunicadas.
As 42 famílias que vivem há gerações de modo tradicional no território Melancias vêm sofrendo com o avanço do agronegócio, que desmata, abusa de agrotóxicos, contamina suas águas e plantações. Além disso, são vítimas de ameaças de expulsão e de morte, como as ocorridas recentemente.
O Coletivo de Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado no Piauí, a Comissão Pastoral da Terra-PI e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos repudiam e denunciam mais essa violência, ao mesmo tempo em que cobram das autoridades competentes as medidas necessárias para garantir a vida e a dignidade das famílias do território Melancias.
Erosão no território Melancias. Crédito: Mariella Paulino.
“Eu vim de longe para encontrar o meu caminho, tinha um sorriso e o sorriso ainda valia, achei difícil a chegada até aqui, mas nós chegamos, nós chegamos...”
Foto: Ludmila Pereira (Articulação Agro É Fogo)
(De 04 a 07 de outubro de 2023 em Montes Claros – Minas Gerais)
Chegamos acolhidas pelo Centro de Agricultura Alternativa (CAA), chegamos com a justiça no romper da madrugada, de lugares e jeitos diferentes cheias de expectativas, saberes e fazeres; estamos chegando pelas portas e janelas, rios e vielas. Nós estamos chegando com nossos cantos, poesia, sonhos, ancestralidade, espiritualidade, fortalecidas pelas vozes de espaços políticos como a Marcha das Margaridas e Marcha das Mulheres indígenas. Somos mulheres de vários povos, Apinajé, Xerente, Xakriabá, Akroá Gamela, Kiriri, Tuxá, Comunidades Quilombolas, geraizeiras, ribeirinhas, veredeiras, sem-terra, raizeiras, benzedeiras, caatingueiras, apanhadoras de flores, vacarianas e quebradeiras de coco babaçu, reafirmando nossos modos de vida tradicionais como plantadeiras de semente boa. Somos a Sociobiodiversidade do Cerrado!
Tempos de reconstrução, antigos desafios
Permanecem os problemas estruturais que impactam a vida dos povos e seguem as violações dos direitos à terra e território, à água e a biodiversidade. O avanço do agronegócio, do hidronegócio e da mineração traz a concentração e grilagem e o cercamento das terras, desmatamento, levando ao esgotamento, a poluição do solo, das águas e dos alimentos. Vivemos situações extremas: onde há comida, mas não há água para preparação. A riqueza da biodiversidade do Cerrado é celebrada nos nomes de lugares e de coletivos de mulheres, como o Grupo de Mulheres Flores de Pequi e os lugares como Bocaiúva e Fruta de Leite. Mas essas frutas que são tão importantes nas culturas alimentares, no uso medicinal e na fonte de renda das mulheres estão mais escassas.
A destruição das chapadas que são áreas de recargas hídricas do Cerrado, somada ao aumento da captação de água dos aquíferos, está reduzindo a vazão dos córregos, rios e provocando a seca das veredas, e consequentemente diminuindo a safra de frutos de áreas úmidas e impactando a reprodução dos peixes que são fonte de proteínas para mulheres e suas comunidades. Ao mesmo tempo, crescem as propostas mercadológicas de apropriação privada dos bens comuns e de projetos de crédito de carbono, que se configuram mais como falsas soluções.
Denunciamos o avanço da mineração: lá onde existiam animais, plantas medicinais, frutos nativos, hoje, são crateras que extraem lucros em detrimento das condições de vida dos povos, deixando cicatrizes profundas nos corpos das mulheres, na saúde das comunidades e nas paisagens dos territórios.
Denunciamos a orquestração de normativas que buscam bloquear conquistas históricas de proteção e reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. A votação do Supremo Tribunal Federal sobre o Marco Temporal representou uma vitória parcial, carregada de graves condicionantes. Além disso, mantém-se a ofensiva legislativa contra o direito originário dos povos indígenas.
Clamamos pelo fim de todas as formas de violência de gênero e raça, que expressam o ódio, aprisionam, silenciam, dominam, adoecem e matam as mulheres. Manifestamos a nossa firme oposição à invisibilidade da violência da esfera doméstica distanciando-a da sociedade e do Estado. Numa sociedade patriarcal e racista, não podemos ignorar e deixar de protestar contra as formas de violência institucionais que precisam ser combatidas.
Nas terras e nas águas das resistências recontamos nossas histórias
Continuamos com os nossos ritos e ancestralidades, (Re)existindo e reinventando novas formas de organização, de produção, acessando os mercados institucionais, revitalizando as feiras, reafirmando as interconexões entre o Cerrado e a Caatinga em na convivência com a natureza.
Estamos protagonizando inovações a partir dos lugares que ocupamos, como cooperativas, associações, coletivos de mulheres e sindicatos. Nos reinventamos com saberes e sabores com o aproveitamento dos frutos nativos e construção de tecnologias alternativas e artesanais, que se expressam em práticas como os canteiros econômicos e ecológicos e nos diversos usos que fazemos do buriti, do pequi, do jatobá e tantos outros.
Nós, mulheres, ressignificamos a agroecologia e seu diálogo com a agricultura tradicional. Aplicamos os princípios da diversidade, do autoconsumo, reciprocidade, solidariedade e seus sentidos sociais e econômicos para a soberania alimentar.
Nossas vozes ecoam com importantes recomendações para o fortalecimento das mulheres na sociedade e nos seus territórios:
Priorizar, por parte dos órgãos federais e estaduais, a identificação, demarcação e titulação dos territórios indígenas, quilombolas, de povos e comunidades tradicionais, bem como a implementação da política de reforma agrária, condição fundamental para o enfrentamento à violência e para o fortalecimento da organização política das mulheres. Reconhecer a importância dos Protocolos de Consulta Livre, Prévia e Informada (Convenção 169, da OIT) como instrumento de defesa dos povos em seus territórios.
Rever a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (Decreto no 5.813/2006), para garantir proteção e fomento para as práticas tradicionais de produção e comercialização de remédios caseiros, bem como reconhecer o ofício das raizeiras e respeitar seus protocolos comunitários bioculturais;
Garantir leis que apoiem e protejam as práticas de agroextrativismo vegetal sustentável (como do pequi, buriti, mangaba, cajuzinho, capim dourado, flores sempre-vivas e outros) e da fauna conservados pela nossa sociobiodiversidade. Respeitar o livre uso e acesso da biodiversidade pelos povos e comunidades tradicionais e camponesas.
Garantir recursos e as condições necessárias de acesso para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Garantia de Preços Mínimo para os Produtos da Sociobiobidiversidade (PGPM-Bio), com aplicação das cotas de participação das mulheres agroextrativistas e camponesas e assegurar orçamento para o III Plano Nacional de Agroecologia.
Adotar metodologia que garanta preços justos e acesso desburocratizado à PGPMBio e equiparação de preços para compras dos alimentos destinados ao PNAE e PAA.
Efetivar a implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas (PNGATI). E criar políticas de fomento para a produção de alimento em terras indígenas;
Formular e efetivar as políticas públicas de acesso prioritário à água e ao saneamento básico vinculado diretamente ao direito humano à saúde, à alimentação e soberania alimentar;
Garantir o reconhecimento, proteção e promoção, por parte do Estado, às tecnologias tradicionais de uso, gestão e aplicação de princípios da agricultura tradicional e agroecológica para a conservação do meio ambiente e produção de alimentos saudável;
Efetivar a participação igualitária das mulheres nos espaços políticos de decisões das organizações da sociedade e nos espaços de gestão de políticas públicas. E incorporar medidas contra todas as formas de violências, preconceitos e discriminação para afirmar a igualdade étnico-racial.
Convocamos a sociedade para aderir à campanha #VetaLula PL 2903/2023 que fere o direito constitucional originário dos povos indígenas. E convocamos também, a sociedade e parlamentares para aprovarem a Emenda Constitucional que reconhece o Cerrado e Caatinga como Patrimônios Nacionais (PEC 504/2010).
Seguiremos nosso caminho fortalecendo a Articulação das Mulheres do Cerrado com ações coletivas, organização nas comunidades, realização de intercâmbios e com aprofundamento de temas como eliminação dos agrotóxicos, acolhimento das juventudes e construção de uma estratégia política de comunicação popular, contanto e registrando nossas histórias.
Montes Claros, 07 de outubro de 2023
*Baixe a Carta Final do III Encontro Nacional das Mulheres do Cerrado na íntegra e compartilhe!
Por CPT-AT
Fotos: Ludimila Carvalho
Na última quinta-feira (12), as comunidades camponesas tradicionais da Serra do Centro, localizada no município de Campos Lindos-TO, se reuniram na comunidade Raposa para a “I Festa das Sementes Crioulas”, um espaço místico, que remete a tradição ancestral, celebrando a vida que nasce da terra. Durante a festa, que contou com o apoio da CPT Araguaia-Tocantins, houve uma celebração ecumênica e trocas de sementes.
Para os camponeses, a preservação e troca das sementes crioulas é um ato de resistência contra o avanço massivo do agronegócio e uma resposta aos projetos de morte que produzem a destruição da Mãe Terra e violenta o bem-viver dos povos, territórios e comunidades.
As comunidades da Serra do Centro, historicamente localizadas na região, atualmente encontram-se ameaçadas pelo projeto de expansão das fronteiras agrícolas do Matopiba. São vítimas da grilagem dos seus territórios e cercadas pelos desertos verdes do monocultivo de soja, enfrentam o envenenamento de suas águas e corpos por agrotóxicos.
Diante dessas ameaças, as comunidades da Serra do Centro unem forças e, este ano, promoveram a Festa das sementes crioulas como uma forma de manter a autonomia sobre seus modos tradicionais de produção e proteger a sociobiodiversidade local. Os camponeses e camponesas compartilham suas variedades de sementes alimentícias e medicinais, que são símbolos da sua identidade e resistem ao agronegócio.
As comunidades também realizaram uma celebração ecumênica durante a festa, unindo-se em uma demonstração de solidariedade e compromisso com a proteção de seus territórios. Nessa celebração, fizeram memória aos seus ancestrais e festejaram a vida que germina das ‘sementes boas’ de suas lutas. Com cantos e orações, finalizaram com o plantio de mudas de árvores frutíferas na escola da comunidade, simbolizando o compromisso com a construção de um presente e futuro saudável e sustentável para todos e todas.
Lavouras comunitárias de Transição Agroecológica fortalecem processos coletivos por Reforma Agrária e pela permanência de comunidades na terra em Goiás
Por Marília da Silva | CPT Goiás
Colheita de feijão na lavoura comunitária do Assentamento Oziel Alves, em Baliza/GO, em maio de 2023. Foto: Everton Antunes | Magnífica Mundi/UFG.
No ano agrícola 2022-2023, aproximadamente 200 famílias de 30 comunidades acompanhadas pela Comissão Pastoral da Terra Regional Goiás, em 18 municípios do interior do estado, produziram alimentos saudáveis em Lavouras Comunitárias de Transição Agroecológica.
Sem utilizar agrotóxicos, nem sementes transgênicas - condições indispensáveis para as monoculturas do agronegócio - a roças coletivas produziram toneladas de alimentos saudáveis, garantindo não apenas a segurança alimentar das famílias agricultoras, mas também alimentos para doação em ações de combate à fome em comunidades urbanas periféricas.
Em Catalão, no sudeste de Goiás, a comunidade do Acampamento Oziel Alves Pereira plantou e colheu mais de mil quilos de feijão e três mil quilos de milho. “Esse ano tivemos uma produção excelente. Trabalhando coletivamente nesse projeto, a gente tirou toda nossa alimentação, uma alimentação saudável, livre de todo agrotóxico, e também distribuímos para as pessoas que têm necessidade nas periferias das cidades vizinhas aqui, Santo Antônio do Rio verde e Catalão”, conta a agricultora Luciene Silva.
Para a comunidade, que vive na área desde 2017, enfrentando grandes desafios para garantir sua destinação para a Reforma Agrária, a produção de alimentos é um fator de fortalecimento para prosseguir rumo a este objetivo coletivo. “Com esse trabalho nós mostramos para a sociedade porque estamos na terra”, diz Luciene.
Em maio deste ano, o acampamento passou por duas visitas de inspeção da Comissão de Soluções Fundiárias do Tribunal de Justiça de Goiás (CSF TJ-GO) e foi elogiada por autoridades estaduais e federais por sua produção de alimentos. O reconhecimento de seu direito e da importância de sua produção de alimentos é uma vitória para famílias que já foram notificadas e ameaçadas a ter que pagar multas por plantar e que já tiveram roças destruídas em tentativa de despejo.
Acampamento Oziel Alves, em Catalão, recebe visitas de inspeção da Comissão de Soluções Fundiárias com cestas de alimentos agroecológicos produzidos pela comunidade**
Plantar e resgatar o valor da vida humana
Para a CPT Goiás, as lavouras comunitárias têm o sentido pastoral de fortalecer a organização das comunidades que lutam para permanecer na terra ou para conquistar um pedaço de chão. Para Saulo Reis, coordenador da pastoral, além de beneficiar diretamente famílias que estão em situação de vulnerabilidade social e econômica, sem acesso a trabalho e renda, este trabalho resgata o valor da vida humana para vítimas da violência no campo.
“Em muitos casos as famílias em situação de conflito sofrem ameaças contra a própria vida, e a produção de alimentos é um sinal profético de proteção à vida humana em si, ao corpo que resiste às ameaças da pistolagem, e também uma defesa da vida por meio da produção de alimentos saudáveis, livre de venenos”, diz Saulo Reis. “É a afirmação da permanência na terra como fonte de vida e uma forma de abrir caminhos às famílias que lutam para conquistar a terra por meio da Reforma Agrária”, completa.
Maria Aparecida de Melo, agricultora e moradora do Projeto de Assentamento Nova Jerusalém, em Planaltina de Goiás (GO), no entorno do Distrito Federal, narra como o trabalho da lavoura comunitária reanimou a comunidade, após um momento de desmotivação diante das dificuldades enfrentadas pelo direito à terra.
“Esse ano a gente tava com cansaço físico e mental, com o psicológico ruim. A gente tinha até pensado em desistir. A gente vinha há dois anos plantando feijão, um plantio lindo, mas a gente optou pelo plantio de abóbora, porque era o que a gente conseguia fazer. No primeiro momento, eu duvidei que ia dar. Mas a gente viu que tem potencial de produzir qualquer coisa que a gente quiser aqui. Foi uma alegria só essa colheita”, conta Maria Aparecida.
Colheita de Arroz do Assentamento Oziel e de abóbora no P.A. Nova Jerusalém**
Alimento na mesa e renda para famílias acampadas
Os projetos de Lavouras Comunitárias apoiados pela CPT Goiás tiveram início entre 2020 e 2021, período em que o Brasil voltou oficialmente ao Mapa da Fome. Os coletivos de agricultoras e agricultores envolvidos nos plantios priorizaram, desde o início, o cultivo de alimentos básicos de sua alimentação: arroz, feijões, milho, amendoim, gergelim, abóbora e mandioca.
O senhor Sebastião dos Santos participou da lavoura comunitária do Assentamento Oziel Alves Pereira*, em Baliza, região noroeste de Goiás, e se diz bastante satisfeito com o resultado dos trabalhos. “Temos arroz e feijão para passar o ano e ainda temos o amendoim para colher”, conta Sebastião. Ao todo, a comunidade colheu 200 sacas de 60 kg de arroz, aproximadamente 1,2 tonelada do alimento.
Senhor Sebastião durante a colheita de feijão da lavoura comunitária do Assentamento Oziel Alves, em Baliza/GO, em maio de 2023. Foto: Everton Antunes | Magnífica Mundi/UFG.
No Acampamento Dom Tomás Balduíno, em Formosa, nordeste de Goiás, além do arroz e feijão para consumo, a comunidade plantou uma grande roça de mandioca, que rendeu 600 caixas do alimento. Parte delas foi comercializada, gerando renda para as famílias que participaram dos trabalhos. Todo o trabalho nas roças comunitárias, no Dom Tomás, foi protagonizado pelas mulheres da comunidade, que também trabalham juntas em uma horta para produção de alimentos para doação.
Após as colheitas, o acompanhamento do processo de seleção e armazenamento de sementes tem colaborado para a construção de bancos de sementes locais, garantindo importantes passos para superação do desafio que é a conquista da autonomia de produção para os agricultores familiares.
Trabalho coletivo e colheita de mandioca no Acampamento Dom Tomás Balduino, em Formosa/GO**
Agricultoras e pesquisadoras das experiências agroecológicas
O grande empenho das mulheres nos trabalhos das lavouras comunitárias foi notório em muitas outras comunidades. Simone Oliveira, da coordenação da CPT Goiás, avalia os diversos aspectos das contribuições das agricultoras nas experiências agroecológicas que acompanha.
“Em nossas vivências, as mulheres demonstram mais paciência de observar e acreditar nas propostas da agroecologia, seja nas lavouras ou em seus quintais. Elas são grandes pesquisadoras das experiências agroecológicas, têm o tempo da terra, acreditam, esperam e observam os resultados. Ao identificar o que dá certo, elas fazem anotações, como em livros de receita, e trocam essas experiências entre si”, narra.
Simone afirma também que, em geral, as mulheres valorizam mais a cadeia de saúde gerada pela produção livre de agrotóxicos: “Elas observam a melhora em sua saúde quando fazem uso das plantas em seus hortos medicinais e quando se alimentam daquilo que plantam, sem ingerir veneno, então elas conseguem realmente dar valor a essas práticas”, avalia Simone.
Mulheres do Assentamento Oziel Alves na colheita de feijão da lavoura comunitária. Foto: Júlia Barbosa | Magnífica Mundi/UFG.
Produzir e compartilhar, por uma relação sagrada com a terra
Entre as comunidades que participaram das lavouras comunitárias, acampamentos da Reforma Agrária ligados ao Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST) realizaram grandes Festas da Pamonha após as colheitas de milho. Luciene Silva fala da festa como um importante momento de partilha no Acampamento Oziel Alves, em Catalão. “Colhemos 3 toneladas de milho caiano e fizemos uma bela pamonhada. Servimos para toda a comunidade e ainda convidamos a comunidade do assentamento vizinho”, conta a agricultora.
A história bíblica do Povo de Deus também narra antigos modos de relação com a terra e com a produção. Antônio Baiano, da coordenação da CPT Goiás, conta que quando a terra não tinha dono, tudo o que se produzia era para ser compartilhado. “Anualmente se faziam as festas das tendas, da colheita e da páscoa, que tinham objetivo de socializar a produção. Cada família só deveria guardar o necessário para o período de entressafra”, narra Baiano.
Ao longo da história, a terra - e o alimento que ela dá - foi se tornando mercadoria e sendo acumulada por poucos. Antônio Baiano relaciona a Reforma Agrária, no período atual, ao Ano Jubilar, descrito no livro bíblico Levítico, em que as terras eram redistribuídas ao povo. De modo semelhante, para a criação de um assentamento, divide-se um único latifúndio para muitas famílias.
Após a conquista coletiva da terra, os movimentos do campo propõem modos de produção diferentes dos monocultivos agroindustriais, voltados para o mercado de commodities. “Hoje, quando se propõe a organização de lavouras comunitárias, é na perspectiva de resgatar a união do grupo. A roça coletiva é um espaço de repensar a forma de produzir, de compartilhar a mão de obra e o que é produzido. A produção coletiva promove o encontro, fortalece a organização popular e o modelo de produção agroecológico”, explica Antônio Baiano.
O agronegócio, que desconsidera a sacralidade da terra e a vê apenas como fonte de lucro, diz Baiano, trata a terra sem nenhum cuidado, a exemplo da grande carga tóxica que é jogada nos monocultivos, sem considerar os riscos de contaminação da água e a qualidade do ar para as famílias que vivem ali em volta. “O agronegócio é um projeto de acumulação, não de partilha. Não visa a diminuição da fome, da pobreza. A Reforma Agrária, por sua vez, contraria a lógica de manter a riqueza na mão de poucas pessoas, tendo como meta garantir o que o Papa Francisco tem dito: quem tem a terra, tem o teto e tem o trabalho. Reforma Agrária significa garantir que as pessoas que vão para a terra tenham terra para trabalhar e tenham moradia, tendo também sustentação, alimentação“, conclui Antônio Baiano.
Trabalho coletivo na Festa da Pamonha do Acampamento Leonir Orback, em fevereiro de 2023** // Pamonhada no Assentamento Oziel Alves, em Baliza/GO, em maio de 2023. Foto: João Vitor | Magnífica Mundi/UFG.
*Há duas comunidades acompanhadas pela CPT Goiás em regiões distintas com nomes semelhantes: o Acampamento (ou Assentamento Popular) Oziel Alves Pereira, no município de Catalão, e o Assentamento Oziel Alves Pereira, no município de Baliza.
**Fotos: Equipes pastorais da CPT Goiás e comunidades acompanhadas.
***Este relato faz parte da série de experiências da campanha 'Fraternidade Sem Fome, pão na mesa e justiça social'
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional), com informações da CPT Rondônia
Famílias no Parque Natural de Porto Velho/RO - Foto: Rede Amazônica
Após mais de um ano acampadas de forma improvisada na frente do Incra e no Parque Natural de Porto Velho (RO), enfrentando sol e chuva, condições desumanas de segurança e higiene e dependendo da solidariedade da população, as 44 famílias retiradas à força do Seringal Belmont renovaram suas esperanças de voltarem ao território que ocupam e lutam pela regularização. Uma decisão da Dra. Úrsula Gonçalvez Theodoro de Faria Souza (Juíza do Tribunal de Justiça de Rondônia), no último dia 06 de outubro, garantiu o retorno ao local em um prazo de 05 dias, até a decisão final do processo em tramitação.
Apesar disto, as famílias continuam aguardando o cumprimento dessa decisão por parte do 1º Batalhão da Polícia Militar, que inicialmente alegou não ter recebido o despacho, e na tarde do dia 11 de outubro (já no final do prazo), informou sem justificativas que só irá cumprir a decisão no dia 19 de outubro.
Diante desta omissão, organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT Rondônia) e demais movimentos que acompanham a comunidade emitiram nota pública direcionada ao Ministério Público de Rondônia, a Secretaria de Estado da Segurança Pública, Defesa e Cidadania, Conselhos Estadual e Nacional de Direitos Humanos, reivindicando o cumprimento da decisão judicial e a devida alocação das famílias no acampamento em que residem e lutam pela regularização. (Confira aqui mais detalhes sobre este conflito)
"A CPT Rondônia manifesta profunda preocupação no desfecho do cumprimento dessa decisão judicial para as famílias, que há tanto tempo lutam por um pedaço de terra. É dever constitucional das forças policias e demais órgãos da administração pública o respeito à decisão judicial, cujo descumprimento gera a hipótese de violação de dever funcional de quem a descumpre", afirma Welington Lamburgini, da assessoria Jurídica da CPT/RO, acrescentando a urgência de uma intervenção do Ministério Público de Rondônia, como fiscal da lei e procurador da sociedade, além da atuação mais rápida do INCRA em recolocar a área na destinação par aa reforma agrária, diante da grilagem que resultou em violência e sofrimento para tantas pessoas e famílias.
NOTA PÚBLICA DAS ORGANIZAÇÕES E MOVIMENTOS SOCIAIS DO ESTADO DE RONDÔNIA AO MP-RO, SESDEC-RO, CNDH e CONSEDH
No último dia 6 de outubro de 2023, a Juíza de Direito, Dra. Úrsula Gonçalvez Theodoro de Faria Souza (do Tribunal de Justiça de Rondônia), emitiu decisão favorável às 44 (quarenta e quatro) famílias do acampamento Belmont. A decisão vinculada ao processo N.º 7043042-90.2020.8.22.0001 estipulou diversos prazos para que a decisão fosse cumprida, um deles foi o prazo de 5 dias para que o Comando Geral da Polícia Militar registrasse ciência da decisão. Ocorre que até o momento as famílias continuam aguardando o cumprimento dessa decisão.
Vários foram os atores envolvidos na tentativa de que a decisão fosse cumprida com brevidade, tais como Ouvidoria-Geral Externa da DPE-RO, Núcleo Agrário da DPE-RO, CPT-RO, Deputada Cláudia de Jesus (PT) e seu gabinete, mas todos foram ignorados pelo 1º Batalhão da Polícia Militar, que inicialmente alegou não ter recebido o despacho, e agora sem justificativa informou na tarde do dia 11 de outubro, que só irá cumprir a decisão no dia 19 de outubro de 2023.
Essas famílias foram retiradas, inclusive pela própria Polícia Militar, sem mandado de reintegração, da área localizada na Gleba Belmont em setembro de 2022. Estiveram acampadas por um ano em frente ao pátio do Incra em Porto Velho (RO) suportando diversas violações de direitos, perseguições e ameaças contra suas vidas, além da situação precária de moradia, alimentação e sobrevivência nos últimos meses.
No mês de agosto de 2023, a partir da divulgação da NOTA INFORMATIVA Nº 6497 que dispôs pelo cancelamento de certificações e validações junto ao Sigef que sobrepõe os registros públicos não reconhecidos e outros de abrangência do Seringal Belmont, às famílias decidiram aceitar o apoio de um parceiro e mudar o acampamento para ficarem em uma área mais próxima da área que estão disputando. Ocorre que essas pessoas nem ao menos conseguiram se aproximar dessa área, de maneira significativamente ágil, novamente a Polícia Militar, por meio do seu 1º Batalhão, dirigiu-se até a área e impediu que elas ficassem em terreno próximo, sob a alegação de evitar situação de esbulho.
Destaca-se que esse cancelamento demonstra que essas famílias estão lutando para ter acesso a uma terra pública, e não privada. Ressaltamos ainda que neste caso, o 1º BPM nem precisou de um despacho para atuar contra as famílias, estando a favor de um particular que está descumprindo a determinação judicial de que nenhuma parte deveria estar na área enquanto o processo estivesse em curso.
Ressalta-se que a decisão do Tribunal de Justiça em permitir o retorno dessas 44 famílias à área do lote 40B da Gleba Belmont foi tomada a partir de manifestação feita pela Defensoria Pública do Estado de Rondônia por meio do Núcleo Agrário em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos e Ouvidoria Externa da DPE-RO, assim como com a contribuição da ABRAPSO-PVH que realizou o diagnóstico psicossocial dessas famílias. Esse diagnóstico, bem como o da Ouvidoria Externa da DPE-RO, é importante porque demonstra a situação de vulnerabilidade das famílias expostas ao relento das ruas. Salienta-se ainda que tal decisão atende aos preceitos da Resolução 510/2023 do CNJ, assim como a Resolução 10/2018 do CNDH que resultou na ADPF 828/2022.
Destaca-se que a Prefeitura de Porto Velho também foi oficiada para realizar, no prazo de 72 horas, avaliação do perfil e inclusão das famílias em programas de assistência social, para aqueles que se enquadrem neste perfil. Contudo, nenhum representante do município se fez presente junto às famílias em nenhum desses momentos ao longo desses mais de 12 meses. Pelo contrário, agiu contra as famílias, potencializando o quadro de vulnerabilidade ao entrar com um novo procedimento de reintegração, apesar das famílias não estarem ocupando diretamente a área reivindicada pelo ente público em tal processo. Nenhuma assistência por parte da prefeitura de Porto Velho foi destinada a esses cidadãos e cidadãs portovelhenses.
Diante do exposto, solicitamos ao Ministério Público de Rondônia, a Secretaria de Estado da Segurança Pública, Defesa e Cidadania, da mesma forma ao Conselho Estadual de Direitos Humanos e Conselho Nacional de Direitos Humanos, considerando suas respectivas missões institucionais, urge o cumprimento da citada decisão judicial de retorno às legítimas posses e casas, de onde foram retirados ilegalmente pela Força do Estado que os deveria proteger.
Salientamos ainda que amanhã, em data de comemoração dupla, em que alguns comemoram o Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, e Dia das Crianças, nós membros e membras de organizações e movimentos da sociedade civil organizada, rogamos a Nossa Senhora Aparecida e demais espiritualidades que abençoem o povo brasileiro, assim como as crianças do Belmont que passarão o Dia das Crianças fora de suas casas mais uma vez, pela completa e, ao que se demonstra ser, intencional omissão da Polícia Militar do Estado de Rondônia.
Porto Velho, 11 de outubro de 2023
Rede Popular de Direitos Humanos de Rondônia - REPODH-RO
Coletivo Popular Direito à Cidade - CPDC-RO
Comissão Pastoral da Terra Rondônia - CPT
Comunidade Cidadã Livre - COMCIL
Núcleo de Psicologia Social de Porto Velho (ABRAPSO - PVH)
Associação Filhas do Boto Nunca Mais
Grupo das Mulheres Raízes
Coletivo LGBTQIAPN+
Coletivo Somar
Movimento Nacional de Luta pela Moradia
Ouvidoria-Geral Externa da Defensoria Pública de Rondônia
União da Juventude Comunista (UJC-RO)
Cáritas Brasileira Articulação Noroeste
Caritas Arquidiocesana de Porto Velho
Serviço Pastoral dos Migrantes-SPM -Aquidiocese de Porto Velho
Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Rondônia - FETAGRO
Movimentos dos Atingidos por Barragem - MAB-RO
Instituto Madeira Vivo - IMV
Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira - COMVIDA
Coletivo Indígena Mura de Porto Velho- COINMU
Movimento Bem-Viver RO
Conselho Indigenista Missionário - CIMI
Grupo de Agroecologia: Bem Viver RO.
Escritório Estadual do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar de Rondônia
Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos - CONSEDH/RO assina ad referendum
Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA
Grupo Amazônico de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação (GAEPPE) da Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR
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