Por Comunicação CPT Juazeiro/BA
Fotos: Thomas Bauer – CPT Bahia/ H3000
Joaquim, Chico, Odezina, Maria, José Antero e Jorge. Esses foram alguns dos nomes lembrados, na manhã da última terça-feira (19), em uma Celebração no território de Areia Grande, em Casa Nova (BA). A memória desses e outros trabalhadores/as e de suas lutas em defesa do território se fez presente nas falas, fotos e ornamentação do espaço durante todo o encontro comemorativo.
A decisão do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), de maio deste ano, reconhecendo que o território de comunidades tradicionais de fundo de pasto de Areia Grande é composto por terras devolutas do estado da Bahia e, portanto, alvo de grilagem de terras, motivou a celebração de terça.
Moradores/as das comunidades de Areia Grande, da vizinhança e de outras regiões do município se reuniram na sede da associação do território para celebrar essa vitória judicial dos trabalhadores/as rurais. O encontro contou ainda com a participação de representantes de organizações de trabalhadores/as, entidades populares, Diocese de Juazeiro e órgãos públicos municipais.
Resistir para existir
A celebração teve início com uma breve linha do tempo sobre o histórico de resistências de Areia Grande, território com cerca de 400 famílias das comunidades Melancia, Riacho Grande, Salinas da Brinca, Jurema, Tanquinho, Ladeira Grande, Lagoado, Lagedo, Lagoinha, Pedra do Batista e Pilão.
Nesses 48 anos de “re-existência” – como estava escrito em uma faixa na entrada do local -, as lutas em defesa do território se deram a partir de três marcos: década de 1970, com a construção da Barragem de Sobradinho; de 1980 a 1984, grilagem da Agroindustrial Camaragibe; e de 2008 até o momento atual, ameaças de empreendimentos agrícolas e energéticos no território.
Dona Laurita Santos, comunidade Riacho Grande
Em quase 50 anos de lutas, as comunidades de Areia Grande tiveram que resistir para continuar existindo, através da organização em comunidades eclesiais de base (CEBs), enquanto território tradicional de fundo de pasto e fortalecendo a união das comunidades presentes no território.
Dona Laurita Santos, do Riacho Grande, comentou que o momento mais difícil enfrentado pelas comunidades foi a partir de 2008, quando o conflito chegou ao extremo, culminando, em 2009, no assassinato do trabalhador rural José Campos Braga (Zé de Antero).
“Esse conflito trouxe muito sofrimento em nossa vida, vocês tão vendo a foto do nosso companheiro Zé de Antero, foi tirada a vida dele dentro de nossa área, porque ele não queria dar as nossas terras para os grileiros. Mas Deus continuou nos dando força, fé e união pra nós estarmos todos juntos e firmes em nossa luta e ficar com nosso território abençoado para o resto de nossas vidas”, afirmou Dona Laurita.
Jeová Almeida, comunidade Jurema
Jeová Almeida, da Jurema, destacou ainda a importância produtiva do território de Areia Grande e o quanto o conflito agrário prejudicou não só a população local, mas toda a região. “Quando ficamos 15 dias sem poder entrar no território [em 2008], o povo de Petrolina, Bonfim, Casa Nova ficava perguntando cadê o povo da Areia Grande? Cadê a farinha, o beiju, os bodes? Foi difícil para todos. Só diz que o nosso lugar não presta quem não tem conhecimento daqui”, ressaltou o trabalhador rural.
Celebração eucarística
Após esse histórico das resistências comunitárias, o bispo da Diocese de Juazeiro, Dom Carlos Alberto Breis, presidiu a celebração eucarística, acompanhado dos padres José Benedito Rosa, João Borges e Aluísio Borges.
Durante a Missa, Dom Beto lembrou de quando conheceu Joaquim Rocha (Seu Quinquim, falecido há seis anos), no ano de 2016, quando esteve no território de Areia Grande pela primeira vez.
“Eu fiquei impressionado com a liderança de Seu Quinquim, uma liderança que brota exatamente da fé e de como ele fazia a relação da luta pela terra do povo de Deus, que era escravo no Egito, com a luta do povo de Areia Grande. Com um pé na bíblia e um pé nessa realidade, ele ia animando a comunidade”, disse o bispo.
Padre Aluísio Borge, Pe. Benedito Rosa, Dom Beto Breis e Pe. João Borges
Dom Beto também destacou que a história de Areia Grande serve de inspiração para outras comunidades dos municípios da Diocese de Juazeiro que estão enfrentando conflitos territoriais, a exemplo das comunidades atingidas por mineradoras em Campo Alegre de Lourdes e Sento Sé. “Essa vitória de Areia Grande vai trazer muita luz, coragem e ânimo para as comunidades que estão sendo ameaçadas”, comentou.
Parceiros/as de caminhada
Depois da Missa, pessoas que estiveram junto às comunidades de Areia Grande nessas décadas de lutas, a exemplo de advogadas, agentes pastorais e pesquisadores, utilizaram o espaço celebrativo para relembrar momentos marcantes da caminhada e expressar o carinho pelo povo de Areia Grande.
A professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Tatiana Dias Gomes foi uma das advogadas que acompanhou as comunidades de fundo de pasto na primeira década dos anos 2000. Ela lembrou dos diversos desafios no âmbito do poder judiciário, da violência contra os camponeses/as e afirmou que a vitória no TJ-BA só possível por conta da organização das comunidades rurais.
Tatiana Dias Gomes, professora da UFBA
“Os lírios não vão nascer das leis, a gente vai fazer com que os lírios nasçam justamente da nossa luta, Areia Grande sempre foi uma grande escola e uma grande família”, disse Tatiana.
A organização das comunidades de Areia Grande em defesa do território também foi citada como inspiração pelo integrante da coordenação nacional da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) Cícero Félix. Em 2008, Cícero atuava como agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e viveu de perto o conflito em Areia Grande.
Cícero Félix, coordenação nacional da ASA
“Essa vivência toda de vocês é uma grande escola, quem quiser aprender sobre luta em defesa do território, tem que aprender com Areia Grande”, destacou Cícero.
A integrante da coordenação da CPT Bahia, Maria Aparecida de Jesus, agradeceu por todo o processo de aprendizado e trocas de saberes entre a Pastoral e as comunidades de Areia Grande, em espaços de lutas e formação regionais e nacional, e pela “esperança e profecia que semearam na CPT e no coração de cada um”.
Marina Rocha, agente da CPT
A agente da CPT, nascida e criada no território da Areia Grande, Marina Rocha, encerrou os depoimentos dizendo que a história de Areia Grande vai sempre “animar a caminhada e a esperança das comunidades de fundo e fecho de pasto”.
Por CPT Rondônia,
com edição de Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Foto: Odair Leal
Diante do Projeto de Lei do Senado nº 2.757/2022, de autoria do senador Confúcio Moura (MDB/RO), votado nesta terça (19) e agora em tramitação em regime de urgência na Câmara Federal, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) Regional Rondônia chama a atenção para a grave insegurança que este projeto representa para a questão agrária na Amazônia Legal, ao fazer uma ampla anistia para fazendeiros e empresários que receberam grandes áreas de terras da União e não pagaram as parcelas e deixaram abandonadas as terras, sem cumprir os contratos com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Dentre as condições estão a observação da legislação ambiental e o respeito as normas trabalhistas, além do cumprimento da função social da terra, com a criação de empreendimentos pelos licitantes originários.
Diante do diversos descumprimentos destes contratos, o Governo Federal ajuizou mais de 100 ações judiciais de retomadas destas terras apenas no estado de Rondônia, com o objetivo de retomada ao patrimônio público e a consequente destinação à reforma agrária e regularização fundiária, em favor de famílias de trabalhadores rurais.
Esta insegurança é responsável pela maioria dos conflitos agrários na região, principalmente na região do cone-sul do Estado de Rondônia, onde aproximadamente 2 mil famílias se encontram nesta situação.
Diante da gravidade da matéria, a CPT, junto a organizações sociais parceiras e de defesa dos Direitos Humanos publicaram nota alertando para os graves riscos do projeto.
Confira a nota publicada pela CPT Rondônia e entidades parceiras:
IMPACTOS POTENCIAIS DA ANISTIA AOS DESCUMPRIMENTOS DE CONTRATOS DE TERRAS PÚBLICAS REPRESENTADO PELO PLS 2757/2022
As informações aportadas nesta Nota são resultado da observação do atual cenário da situação jurídica das diversas glebas, objetos de concessões de terras públicas durante os esforços de colonização empreendidos pelo Governo Federal, principalmente, durante a década de 1970, especialmente na Amazônia Legal.
O conjunto de imóveis objetos das concessões celebradas na década de 1970 entre o INCRA e os licitantes originários, do qual resultou os Contratos de Alienação de Terras Públicas – CATPS e segundo dados esparsos do INCRA, perfazem cerca de 3 milhões de hectares de terras no Estado de Rondônia. Estes imóveis possuem como característica de licitação originária o tamanho de 2000 ha (dois mil hectares).
O descumprimento das condições resolutivas levou ao ajuizamento de mais de 100 (cem) ações judiciais Declaratórias de Resolução de Contrato de concessão apenas na Justiça Federal no Estado de Rondônia, além de indefinido número de procedimentos administrativos de cancelamento, muitos parados por diversos fatores, tais como a falta de servidores das mais diversas áreas nas Superintendências Regionais do INCRA, em toda a Amazônia Legal.
Tais imóveis públicos, com situações jurídicas diversas, concentram a grande maioria dos conflitos agrários na Amazônia Legal. Apenas da região do cone-sul de Rondônia, aproximadamente 2.000 (duas mil) famílias se encontram em situação de conflito agrário em imóveis com estas características.
Anistiar genericamente o descumprimento de condições resolutivas afronta o paradigma Constitucional adotado a partir de 1988 no que diz respeito à defesa do patrimônio público e na proteção infraconstitucional atribuída aos contratos. Ademais, agrava severamente a insegurança jurídica e social no campo.
A proteção do patrimônio e a segurança jurídica no campo, REQUEREM vasta análise das condições de cumprimento das condições resolutivas pelos licitantes originários e por terceiros adquirentes de imóveis em condição resolutiva objeto de concessão por parte da União
Assim fazendo, o Estado Brasileiro fará a defesa do seu patrimônio e a identificação do que são terras de seu acervo para as destinações legais que cada caso exige, em especial a reforma agrária e a regularização fundiária com cumprimento da função socioambiental da propriedade, com a efetiva separação do que veio a se tornar propriedade privada.
“Nenhum agricultor sem terra. Nenhum trabalhador sem trabalho. Nenhuma família sem teto!”
Porto Velho-RO, 19 de setembro de 2023.
Seminário contou com a presença de mais de 80 pessoas, com representações de outros seis países
Por Arlla Xavier e Wesley Lima*
Fotos: Júlia Barbosa | CPT Nacional
Entre os dias 14 e 17 de setembro, a Via Campesina Brasil realizou o 3º Seminário sobre Diversidade Sexual e de Identidade de Gênero, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), localizada em Guararema (SP), com o objetivo de discutir temas relacionados a luta contra a LGBTI+fobia e a organização do debate nos movimentos populares que constroem a Via.
O seminário contou com a participação de mais de 80 pessoas, com representantes de outros seis países, e na programação constou debates sobre “Território, orgulho e resistência LGBTI+ no campo, nas Águas e nas florestas”, “Conceitos Chaves e Contribuições do Feminismo Camponês e Popular para a dimensão da Diversidade Sexual e Identidade de Gênero”, “Colorindo a Luta Camponesa Internacional: Os desafios da diversidade sexual e de gênero na CLOC e LVC Internacional” e “Sem LGBTI+ não há revolução: Combatendo às violências contra as existências e resistências LGBTI+ no campo, nas águas e nas florestas”.
De acordo com Dê Silva, do Coletivo LGBTI da Via Campesina Brasil, o Seminário termina de maneira positiva, destacando desafios e organizando uma agenda de iniciativas das organizações que compõem a Via Campesina no Brasil e internacionalmente.
“O seminário foi um espaço riquíssimo de construção coletiva, de muita formação, debate e troca de experiências. Trouxemos para centralidade o debate nos territórios do campo, das águas e das florestas, na tentativa de desmistificar que os territórios são espaços hegemonicamente hetero e cisgênero”, explica Dê.
Afirmações
No ponto de vista da produção de alimentos saudáveis e a construção de bandeiras de luta, que seja mais um ponto interseccional das lutas dos movimentos e organizações da Via, ela sinaliza que é central posicionar algumas afirmações. Primeiro, “nossos territórios só produzem a diversidade alimentar, cultural, porque são espaços compostos pela diversidade sexual e de gênero”.
Segundo Dê, uma outra afirmação é a necessidade de enfrentar as violências e a LGBTI+fobia como uma forma importante de garantir a participação de todas, todos e todes na organização das lutas e das estratégias políticas. Nesse sentido, foi debatido a construção de uma Campanha na Via Campesina contra todo tipo de violência, garantindo o protagonismo dos povos do campo, das águas e das florestas nesta construção.
Por fim, ela explica que a terceira afirmação se encontra na perspectiva da coletividade. “Encerramos com uma avaliação positiva, porque são nesses momentos que podemos vivenciar a nossa diversidade e construir coletivamente os territórios que nós queremos, a partir da discussão das novas relações humanas, a partir do nosso conhecimento coletivo, para enfim construir a sociedade que tanto queremos, sem opressores e oprimidos”.
Para Dê, o seminário conseguiu apontar diversos desafios e “só teremos capacidade de enfrentá-los com organização, formação e luta coletiva”.
Participação
Participaram do Seminário alguns movimentos importantes para construção do debate da diversidade sexual e de gênero na Via Campesina, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimentos dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento por Soberania Popular na Mineração (MAM), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Coletivo LGBTQIA+ Tibira da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Pastoral da Juventude Rural (PJR), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
*Arlla Xavier é comunicadora popular no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e Wesley Lima integra o Coletivo Nacional de Comunicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Investigação no Maranhão, principal estado de origem de pessoas resgatadas no Brasil, expõe trabalhadores e empresas reincidentes em casos de escravidão contemporânea
Por Manuela Rached Pereira e Caio Castor | O Joio e o Trigo
“O trabalho escravo ainda não conseguimos erradicar porque o bicho é grande e o bicho muda”. Durante um encontro realizado em maio no município maranhense de Açailândia, trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão ouviram de uma das organizadoras do evento a frase que parece sintetizar o que a reportagem do Joio constatou durante quase três meses de investigação.
Ao longo da viagem de mais de dois dias e 2.800 quilômetros de estrada, percorridos da capital paulista ao norte do Maranhão, o contexto por trás da afirmação já dava sinais de presença.
Marcado pelo tráfego de caminhões de carga pesada, o caminho se revelou um percurso majoritariamente seguro, via Transbrasiliana, uma das maiores rodovias do país. Nele, horizontes de monocultura, que ora davam lugar a enormes usinas de cana-de-açúcar e grãos para ração pecuária (nas fachadas, lia-se “nutrição animal”), ora a pastos, porteiras de fazendas com bandeiras do Brasil hasteadas e leilões de gado, expunham a dimensão territorial do agronegócio e ajudavam a indicar as fronteiras entre São Paulo, Minas, Goiás, Tocantins e Maranhão.
Já os trechos finais, percorridos pelas extensões maranhenses da BR-222 e MA-342, introduziram a reportagem a um outro tipo de cenário, que parecia alertar: “até aqui, o Estado não chega”. Afastado do perímetro urbano, com muitos buracos e animais silvestres nas vias, o trajeto é o que dá acesso à pequena cidade de Monção, primeiro destino da reportagem.
“Faz vergonha até de passar na televisão essas estradas. No nosso Maranhão, nessas regiões aqui, tudo é dependioso e quem mora pra cá é sofrer, viu?!”, resume Sebastião de Oliveira Cunha, um morador do município monçonense, onde vivem 27.751 mil pessoas, segundo o Censo 2022 do IBGE.
Aos 53 anos, ele é um dos 9.153 maranhenses que, nas últimas duas décadas, foram resgatados de condições análogas às de trabalho escravo no Brasil, onde o Maranhão figura como o principal estado de origem dos 61.711 trabalhadores encontrados nessas condições desde 1995, segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas (SmartLab) e do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil (Radar SIT).
Assim como Sebastião, Gildásio Silva Meireles, de 42 anos, foi encontrado há mais de dez anos pela fiscalização trabalhista e relata vivências comuns entre a maior parte dos trabalhadores de Monção escutados pelo Joio.
“Desde pequeno, aprendi a trabalhar na lavoura com os meus pais. Eles sempre me botaram pra trabalhar e eu fui aprendendo na lida do dia a dia. Como eu não tinha uma profissão e não tinha estudo na época, já estava acostumado ao trabalho braçal pesado”, inicia o monçonense.
Em 2007, Gildásio vivia com a esposa e dois filhos pequenos no município de Pindaré Mirim, próximo a Monção, quando recebeu uma proposta para trabalhar junto a alguns colegas da região em uma fazenda na cidade de Santa Luzia, que integra a parte maranhense da Amazônia Legal. Desempregado e endividado, ele aceitou a oferta.
“A gente foi e conversou lá com uma pessoa que era o ‘gato’ [nome popular dado ao aliciador de trabalhadores rurais]. Ele disse que estavam precisando de vaqueiro pra ajudar no controle do gado, que precisavam de mão de obra, que pagavam bem e, além disso, que se a gente tivesse necessitando muito, ele deixava certa quantia em casa pra você já ir saldando algumas dívidas”, relembra.
Logo que chegou à propriedade em Santa Luzia, Gildásio percebeu que havia sido enganado. “O trabalho era roço de juquira, o alimento era só arroz e feijão misturado e a água que a gente pegava pra beber era do igarapé, onde o gado, o porco e todo mundo bebia do mesmo lugar. O alojamento era só um barracão de lona coberto, cheio de rato e cobra”.
Mesmo diante das condições degradantes do local, ele afirma que só entendeu que estava sendo explorado quando fez o “acerto” do primeiro mês e foi avisado que era ele quem estava devendo ao dono da fazenda, onde uma espécie de cantina era mantida dentro da propriedade. No local, eram comercializados materiais de trabalho e alimentos não perecíveis a preços superfaturados.
“Por isso, quando eu perguntava por que estava devendo, me diziam: ‘Ah, tu não lembra?! Olha aqui, a foice, a bota, a garrafa de água, tudo tá aqui anotado. Tu acha que isso é de graça?’. E o que eu fazia não dava pra suprir, não dava pra pagar”, explica.
Para impedir a fuga de trabalhadores, a propriedade rural era fiscalizada por funcionários armados que ameaçavam quem pretendesse fugir, conta o maranhense. “Eram ameaças constantes e pessoas com fome obrigadas a trabalhar assim mesmo, desmaiando e se queixando de dores e fraqueza”.
Gildásio e seu pai, Zózimo Meireles, naturais de Monção. Foto: Caio Castor
Ainda assim, após cinco meses e meio de trabalho no local, Gildásio colocou em prática uma fuga planejada com os companheiros mais próximos para buscar socorro fora dali. Depois de duas denúncias e quase 150 dias de espera, ele conseguiu levar até a fazenda o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, composto por auditores do trabalho acompanhados de agentes da Polícia Federal e de outros órgãos públicos. Lá, as autoridades inspecionaram o local e resgataram 14 trabalhadores que haviam permanecido na propriedade.
Sobre a situação dos colegas resgatados, o monçonense conta que só encontrou com alguns deles tempos depois, quando “já estavam passando por necessidade novamente e indo para outros locais, mais uma vez como mão de obra escrava”.
Trabalhadores reincidentes
Dados divulgados em 2018 pela Organização Internacional do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) indicam que, entre 2003 e 2017, 613 pessoas foram resgatadas de trabalho análogo ao de escravo ao menos duas vezes no país. Porém, de acordo com a própria OIT, esses registros estão subdimensionados.
“Os dados disponíveis se referem à concessão de seguro desemprego na modalidade trabalhador resgatado, a última fase de um longo processo. Para ser incluído nessa estatística, o trabalhador deve ter passado pelas etapas de aliciamento, exploração, denúncia, investigação, operação de fiscalização, resgate e, por último, acesso ao seguro desemprego”, reconheceu a Organização, em nota.
Já nos últimos anos, apesar da reincidência ter sido reiterada por pesquisadores, entidades civis e autoridades federais como um fator presente na trajetória de grande parte dos trabalhadores resgatados, o governo brasileiro assume não monitorar estatisticamente esses casos.
Em resposta à solicitação da reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI), o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) afirma que não existem dados oficiais sobre o número de trabalhadores resgatados mais de uma vez, pois “os sistemas disponíveis atualmente permitem cruzamento de dados em algum nível”, mas “existem inconsistências que poderiam levar a erros de resultados”.
“Quem não trabalha com o tema, pensa que houve o resgate e a situação se resolveu, mas nós sabemos como o resgate, embora seja uma política fundamental e um momento essencial, não basta para retirar essas pessoas de um ciclo de vulnerabilidades que as colocam suscetíveis a reiteradas relações abusivas de trabalho e à cooptação para o trabalho escravo”, reconheceu Isadora Brandão, secretária nacional dos Direitos Humanos e integrante da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae/MDHC).
A análise da secretária, exposta durante o seminário “Inclusão Social de Vítimas Resgatadas do Trabalho Análogo à Escravidão”, promovido em junho pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é corroborada pela história de quase todos os trabalhadores ouvidos pela reportagem no Maranhão.
Homens negros de até 60 anos, eles foram submetidos, uma ou mais vezes, a serviços em condições degradantes, jornadas exaustivas, trabalho forçado, restrição de locomoção e servidão por supostas dívidas com empregadores – elementos que, em conjunto ou isolados, configuram o trabalho análogo ao escravo, de acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro.
“Desde quando formei família, todo tempo era eu saindo de casa atrás de serviço, porque a gente não tinha um sustento. E o que a gente encontrava era só o serviço braçal, o roço de juquira [corte manual da vegetação que cresce no campo e é derrubada para virar pasto]”, relembra Sebastião, que foi resgatado três vezes pela fiscalização trabalhista em diferentes fazendas de produção de gado, primeiro no Pará, em 2009, e depois no Maranhão, em 2010 e 2012.
Responsável por quase um quarto (24,8%) do PIB do Brasil em 2022, de acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo (Cepea/USP), o agronegócio é o principal setor econômico envolvido nos flagrantes de trabalho análogo ao de escravo pela inspeção trabalhista desde 1995.
No Brasil, onde 62% das pessoas resgatadas entre 1995 e 2022 trabalhavam na agropecuária, segundo o observatório do SmartLab, a criação de bovinos foi o setor específico em que mais trabalhadores (16.847) foram encontrados em situação análoga à de escravidão no país e no Maranhão, envolvida em 29% dos resgates em território nacional e 71% dos casos estaduais.
Na avaliação de Brendah Rocha, socióloga e coordenadora da equipe de Ações de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular do Maranhão (Sedhpop), os dados acima se relacionam a raízes históricas que ajudam a explicar por que o estado maranhense se tornou o principal local de origem dos trabalhadores resgatados no século 21.
Com mais de 40% do território ocupado pela agropecuária, o Maranhão é a unidade federativa brasileira com o maior índice Gini de concentração fundiária desde 1995 com 0,888 pontos registrados pelo IBGE em 2017 (quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade apresentada em cada região).
Além disso, diante de um cenário nacional em que 64% das pessoas resgatadas de condições análogas às de escravo são negras ou pardas, segundo o SmartLab, a socióloga ressalta que o Maranhão possui a segunda maior população negra do Brasil, “grande parte dela em situação de vulnerabilidade muito grande”.
Com o menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do país (0.676 pontos) e uma população negra e parda estimada em 80,3%, o território maranhense também abriga o maior número de pessoas em situação de extrema pobreza (21,1% da população) e pobreza (57,5%) entre todos os estados brasileiros, de acordo com o IBGE e o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (PNUD).
É por esse contexto histórico que o Maranhão convive com o êxodo e o tráfico ilegal de populações em busca de trabalho fora das cidades de origem, explica Brendah. “Às vezes, só existe uma igreja ou uma prefeitura [com vagas de emprego] no município, onde não tem trabalho para a maioria. Por isso, esses trabalhadores costumam migrar em busca de uma qualidade de vida melhor, não só para si, mas para as famílias também”.
Dado o histórico de desigualdades locais, a coordenadora afirma que o governo maranhense investe há mais de cinco anos no Programa Estadual de Enfrentamento ao Trabalho em Condições Análogas à de Escravo, assinado em 2018 pelo então governador Flávio Dino, além de políticas integradas de geração de emprego.
Nesse contexto, a recente alta de fiscalizações e resgates no país, onde 2.575 trabalhadores foram resgatados em 2022 e outros 1.443 até junho deste ano, é verificada também no Maranhão. Segundo dados enviados à reportagem pela Coordenação de Ações para o Combate ao Tráfico de Pessoas e Trabalho Escravo da Sedihpop, 131 pessoas foram resgatadas no estado só nos primeiros seis meses deste ano, enquanto em todo ano passado foram 195.
“A estimativa [de resgates] para este ano é muito mais alta do que nos anos anteriores, mas a gente percebe que não é porque havia menos trabalho escravo no passado, mas porque as políticas de denúncia e fiscalização vem sendo fortalecidas aqui”, conclui Brendah.
Empregadores reincidentes
Um levantamento realizado pela reportagem, a partir de dados fornecidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego via Lei de Acesso à Informação, atesta que o fator de reincidência também está presente entre as partes responsáveis pelos casos de escravidão contemporânea.
De acordo com o MTE, de 1997 a 2023, ao menos 228 estabelecimentos empresariais foram flagrados mais de uma vez – de duas a quatro ocasiões distintas – com práticas de trabalho escravo. Do total dos locais, a maioria (180) são fazendas e 48 estão no Maranhão, que é o segundo estado brasileiro com o maior número de empregadores reincidentes, atrás apenas do Pará.
O caso da fazenda denunciada por Gildásio em Santa Luzia, cujo nome ele prefere manter anônimo por medo de retaliação, é representativo das repercussões sociais e criminais do trabalho escravo contemporâneo no Brasil.
Em relação aos fazendeiros fiscalizados em 2007, o monçonense relata: “No mês passado, fui chamado para ser testemunha do caso dessa fazenda. Aí, foi adiado para o próximo mês. Então, no caso, ainda não houve o julgamento dela”.
“Tarrafa furada”
“Mero descumprimento de normas de proteção e segurança do trabalho”, “situação típica da realidade rural” e “ausência de provas de que os trabalhadores se sentiam como escravos” foram alguns dos fundamentos apresentados por advogados de defesa de empregadores processados criminalmente com base no artigo 149 do Código Penal, segundo uma pesquisa publicada em 2020 pela Universidade Federal de Minas Gerais.
“Eu não sei se existe outro crime no Brasil com tantas possibilidades argumentativas de absolvição como existe no trabalho escravo”, ironizou Carlos Henrique Borlido Haddad, juiz federal, coordenador do estudo e professor da UFMG, durante o seminário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em junho deste ano.
Intitulado “Raio-x das ações judiciais de trabalho escravo”, o estudo foi produzido pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP) em parceria com o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP), ambos da UFMG, que analisaram em dezenas de tribunais federais e do Trabalho sentenças relativas a julgamentos de casos de escravidão contemporânea no país de 2008 a 2019.
Durante o período analisado pela pesquisa, 2679 empregadores foram acusados e 1752 foram a julgamento, mas apenas 112 deles, ou 4,2%, foram condenados em tribunais de segunda instância, onde não cabem mais recursos ao réu.
“Então é possível estabelecer uma pequena regra aqui no país, que de cada 100 réus acusados criminalmente de trabalho escravo, quatro serão definitivamente condenados”, disse Carlos Henrique, antes de ressaltar que a condenação final, na maioria dos casos, não resulta em prisão, uma vez que grande parte dos empregadores é condenada a penas de até quatro anos de reclusão, que podem ser substituídas por “restrição de direitos” em liberdade.
Como no caso da fazenda denunciada por Gildásio há mais de 15 anos, os processos criminais envolvendo flagrantes de trabalho escravo contemporâneo também são caracterizados pela demora dos julgamentos. Segundo o mesmo levantamento da UFMG, da fiscalização à decisão judicial definitiva, o tempo médio de duração das ações é de mais de sete anos.
“Qual seria, então, a repercussão criminal do trabalho escravo? É próximo de zero. No sistema de Justiça Criminal brasileiro, ele funciona como uma tarrafa furada, aquela rede de pescar que tem furos e, por esses furos, os grandes peixes fogem. Talvez, aqueles peixes pequenininhos fiquem presos nas tramas das redes e não consigam se libertar, mas os grandes sempre conseguem. E, quando falamos em trabalho escravo, em crimes envolvendo sistemas financeiros e corrupção, nós estamos falando de peixes grandes”, concluiu o jurista na ocasião.
Informalidade e precisão
Resgatado em 2007, Gildásio recebeu, além da rescisão trabalhista, uma indenização por danos morais, paga apenas em 2023. Hoje, ele trabalha como taxista autônomo e agente de cidadania do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humano Carmen Bascarán (CDVDHCB), organização da sociedade civil com sede em Açailândia (MA), que promove há quase três décadas ações de prevenção e inserção social de trabalhadores resgatados e familiares.
Diferente de Gildásio, a maioria dos maranhenses resgatados entrevistados pela reportagem ainda não foi indenizada e sobrevive de serviços braçais esporádicos nas cidades onde vivem, como no caso de Antônio Correias Campos Júnior, de 39 anos, e Adailton Lima Costa, de 40, ambos de Monção.
Ex-companheiros de juquira, os dois foram resgatados juntos duas vezes em fazendas de gado no Maranhão. Na primeira delas, em 2012, eles trabalhavam em uma propriedade afastada em um povoado de Santa Inês, onde passaram seis e dez anos, respectivamente, trabalhando de domingo a domingo com condições de moradia, alimentação e trabalho degradantes.
“Depois [do primeiro resgate], recebemos cada um só três salários do governo. Foi só o que nós recebemos. A indenização, ainda não recebemos não”, afirma Antônio Júnior sobre a situação dele e do colega, que aguardam há mais de dez anos pelas reparações travadas na Justiça.
Entre as principais garantias legais voltadas aos trabalhadores resgatados no país, está o pagamento, previsto nos termos da Lei 10.608/02, de três parcelas do seguro-desemprego, equivalentes a um salário mínimo cada, logo após o resgate, além de indenizações requeridas por meio de processos judiciais e acordos firmados entre MPT e empresas flagradas com trabalho escravo.
“Essa visão de que as instituições cumprem o seu papel fazendo o resgate dos trabalhadores e pagando o seguro desemprego é muito limitada. Só com isso, você não completa o ciclo”, avalia Jorge Souto Maior, chefe do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (USP) e desembargador do Tribunal do Trabalho da 15º Região.
Ao lembrar que o Brasil foi o último país do mundo a proibir oficialmente a escravidão sem ter investido em políticas de reparação e inclusão social de pessoas escravizadas até a Abolição, o jurista afirma que, enquanto os empregadores não são devidamente responsabilizados, “o Estado mantém essas pessoas na mesma condição social e econômica que as levaram a aceitar trabalhar naquelas condições”.
Os três salários mínimos que Ântonio e Adailton receberam em 2012 duraram apenas alguns meses. Depois disso, os dois precisaram voltar a “andar no mundo atrás de serviço” para não deixar as famílias “sofrendo precisão [necessidade]”, conta Antônio.
Pouco depois, eles se reencontraram em outra fazenda que submetia trabalhadores a formas análogas às de escravidão, em São Francisco do Brejão (MA), onde foram resgatados pela fiscalização trabalhista seis meses depois.
Hoje, com os “bicos” que conseguem na região, os dois ganham cerca de R$50 pelo dia todo de trabalho braçal, geralmente em diárias de pedreiro, carregamentos de carga, roço de juquira ou peneiração de areia para a construção civil. Assim, eles integram mais uma estatística do Maranhão, que abriga o maior percentual de trabalhadores informais do país, com 64,3% da população total ocupada em serviços sem carteira assinada ou registro de CNPJ. Dessas, 65,9% são pessoas negras e pardas, segundo um levantamento divulgado no ano passado pelo IBGE.
Assim como nos recentes flagrantes de repercussão nacional envolvendo centenas de trabalhadores resgatados em vinícolas do Rio Grande do Sul e em grandes produções de cana-de-açúcar em São Paulo e Goiás, o jurista Jorge Souto Maior diz que a grande maioria dos casos de escravidão contemporânea que acompanha tem envolvimento com a contratação de trabalhadores por meio de terceirizadas.
Na avaliação do desembargador, tal dinâmica, legalizada e ampliada com a aprovação da Reforma Trabalhista (Lei 13.467) e da Lei da Terceirização (Lei 13.429), em 2017, dificultou ainda mais a responsabilização dos empregadores e o ingresso na Justiça por parte dos trabalhadores.
“Se você contrata outra empresa que contrata pessoas para trabalhar para você, mas você paga um valor que já sabe de antemão que não será suficiente para que aqueles trabalhadores tenham salários dignos e direitos garantidos, no valor que você paga já está embutida a compreensão de que algo muito ruim vai acontecer naquela relação de trabalho. Só que, com a terceirização, você faz isso e diz: ‘o problema não é meu, eu paguei a empresa e é ela, a contratante, a responsável”.
A análise do desembargador é corroborada pela maioria dos trabalhadores escutados pela reportagem, entre eles Marinaldo Santos, de 51 anos, morador de Pindaré Mirim, resgatado duas vezes de propriedades de criação de gado no Pará e no Maranhão.
“Nessas fazendas, a gente nem conhecia o dono mesmo. Eles entregavam a fazenda pro gerente, que conseguia uma pessoa pra ser o ‘gato’, e o contato que a gente tinha era só com ele”, relembrou Marinaldo durante o 10º Encontro de Sobreviventes do Trabalho Escravo, realizado nos dias 12 e 13 de maio pelo Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos, em Açailândia.
“O que os empregadores fazem agora é, por exemplo, propor [ao trabalhador] um contrato de 15, 20 dias, e não manda mais o gato ir atrás. Vai um outro trabalhador, para quem ele pede, por exemplo, para conseguir cinco trabalhadores para ele. Aí, a pessoa trabalha os 15, 20 dias e é mandada embora, antes de um outro grupo entrar pra poder continuar o serviço”, afirmou Gildásio, durante o encontro.
Na mesma ocasião, outro trabalhador resgatado, que acompanhou casos recentes de parentes e colegas aliciados para trabalhos em condições degradantes, completou a fala do colega: “E, agora, eles tão deixando de roçar juquira no verão para roçar no inverno, que é quando chove e o carro não entra, quando a fiscalização não chega”.
Apesar do trabalho de conscientização dos sobreviventes realizado pelo Centro, muitos deles ainda se submetem a situações de trabalho precarizado. “A gente ainda se sujeita por precisão, você tá entendendo?! Tá com precisão, então, fica caladinho. Só que a escravidão ainda existe”, concluiu um dos maranhenses no encontro.
Os relatos apresentados pelos trabalhadores foram incorporados a uma carta produzida pelo Centro de Defesa, com reivindicações a órgãos nacionais e internacionais de prevenção e enfrentamento à escravidão contemporânea. No documento, a equipe da organização aponta falhas na aplicação do 2º Plano Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, produzido em 2008 pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Segundo Mariana de la Fuente, responsável por ações de reincidência sociopolítica do Centro, o Estado precisa, entre outras ações, mapear as cadeias produtivas do agronegócio brasileiro.
“A carne que é vendida para cá e para fora, a grandes empresas. Vem de onde? Será que não é do trabalhador que está roçando juquira e sendo escravizado?! Está tudo nos bastidores e, se a gente não mapear essas cadeias, não vai mudar nada. Não é só responsabilidade do fazendeirinho, porque atrás do fazendeirinho tem o grande empresário”, argumenta ela.
No próprio Plano Nacional elaborado pela Conatrae há 25 anos, consta que “o Brasil caminhou de forma mais palpável no que se refere à fiscalização e capacitação de atores para o combate ao trabalho escravo, (…) mas avançou menos no que diz respeito às medidas para a diminuição da impunidade e para garantir emprego e reforma agrária nas regiões fornecedoras de mão-de-obra escrava”.
Durante um seminário sobre direitos humanos realizado na Câmara dos Deputados, em Brasília, em março deste ano, o ministro de Direitos Humanos e Cidadania, Silvio de Almeida, reconheceu a necessidade de uma “revisão” do atual plano nacional para verificar a necessidade de um terceiro planejamento “que possa cumprir os desafios do tempo presente”.
Além de ressaltar a importância do pagamento das indenizações e de políticas de transferência de renda a pessoas resgatadas de condições análogas às de escravidão, juristas e representantes de instituições voltadas ao enfrentamento da escravidão contemporânea defendem a efetivação da Proposta de Emenda Constitucional nº81.
Aprovada em 2014, a PEC define que propriedades rurais e urbanas onde for identificada exploração de trabalho escravo “na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular”.
À espera de uma regulamentação defendida principalmente por parlamentares ruralistas que compõem a Frente Parlamentar Agropecuária, a proposta conhecida como “PEC do trabalho escravo” consta há quase dez anos no artigo 243 da Constituição, sem nunca ter sido efetivada.
Diante do atual impasse institucional, um projeto concebido pelo MPT em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) busca colocar em prática a iniciativa de reinserir trabalhadores rurais resgatados por meio da aquisição ou capitalização de terras destinadas à produção orgânica de alimentos.
Financiado com recursos de indenizações por danos morais coletivos de ações movidas contra empresas flagradas com trabalho análogo ao de escravo, o “Vida Pós-Resgate” começou a ser implementado há cerca de dois anos em municípios baianos e hoje busca ganhar escala nacional com o apoio de órgãos do Executivo.
Assim como outros moradores de Monção, Antônio Júnior, que espera há mais de dez anos para receber as indenizações e sobrevive na informalidade, acredita que projetos que garantam autonomia aos trabalhadores resgatados e as famílias são fundamentais na região.
“Eu tenho um sonho muito alto, de mudar muito a minha vida, um plano de não sair mais assim para trabalhar pros outros. Nós que fomos resgatados, se tivéssemos um benefício ou um projeto para poder trabalhar aqui e não precisasse mais sair, seria muito bom. Porque, aqui, a pessoa procura e não tem, aí, é o caso de se desertar em algum lugar, procurando serviço pra trabalhar, né?!”, conclui ele, que sonha um dia conseguir tocar um negócio próprio de venda de queijos.
Os desafios da luta LGBTI+ a nível internacional é tema no 3º Seminário sobre Diversidade Sexual e de Gênero na Via Campesina Brasil
Por Arlla Xavier e Wesley Lima*
Foto: Júlia Barbosa | CPT Nacional
A participação internacional tem sido fundamental para o aprofundamento do debate da diversidade sexual e de gênero na Via Campesina. Essa afirmação foi a linha condutora da mesa “Colorindo a Luta Camponesa Internacional: Os desafios da diversidade sexual e de gênero na CLOC e LVC Internacional”, que aconteceu na manhã deste sábado (16), no 3º Seminário sobre Diversidade Sexual e de Gênero na Via Campesina Brasil.
O Seminário teve início na última quinta-feira (14) e se estendeu até domingo (17), na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema - SP, com a presença de 80 LGBTI+ dos movimentos e organizações populares que constroem a Via Campesina.
Um ponto de partida para reflexão sobre a diversidade sexual e identidade de gênero na Via Campesina Internacional, tem sido a construção desse debate conectado ao acúmulo das mulheres na Via Campesina, a partir do Feminismo Camponês Popular. Este elemento esteve no centro da análise Jeongyeol Kim, da Coreia do Sul, ela falou sobre os principais desafios para se pensar a construção da pauta LGBTQIA+ na Coreia do Sul, por conta da “hegemonia binária” presente na forma de organização social e o avanço do conservadorismo.
Nessa perspectiva, olhando para dimensão feminista, Kim explica: "o feminismo é para todas as pessoas que são oprimidas e exploradas. Isso quer dizer que as questões das mulheres estão ligadas às questões da diversidade. Nesse sentido, devemos empoderar uns aos outros e seguir de mãos dadas. Estabelecemos um feminismo camponês popular, porque existimos, temos nossos valores e entendemos que a luta nos fará avançar".
Jeongyeol Kim. Foto: Júlia Barbosa | CPT Nacional
A representante da África do Sul, Constance Adziambei, falou sobre o processo de construção da luta contra a LGBTQIA+fobia no país e os principais desafios desta luta. Sobre a necessidade de avançar no protagonismo e conquistas para população LGBTI+, ela sinaliza: "Ninguém pode falar por nós. Estamos aqui e afirmamos que iremos ficar, porque somos livres".
Essa concepção de liberdade esteve presente durante sua intervenção todo o tempo. Constance explica, que na África do Sul, existem duas estruturas principais que organizam o pensamento conservador em seu país, a religião e as tradições. Ela conta que essas duas dimensões legitimam o avanço do conservadorismo, a não liberdade para o amor e anulam a possibilidade de construção de políticas públicas.
Nesse sentido, ela explica que somos todos seres humanos e “o que sinto no meu corpo é legítimo e não é apenas individual é coletivo. Ninguém pode escolher o que eu sinto dentro do meu corpo, estamos falando sobre isso nas relações governamentais, com o objetivo de avançar em políticas públicas importantes para essa população”.
À esquerda: Constance Adziambei, Kaya Thomas (centro) e Jeongyeol Kim (direita). Foto: Júlia Barbosa | CPT Nacional
Contra o conservadorismo
A luta contra o avanço do conservadorismo neoliberal também foi uma questão apontada com centralidade por representantes do Paraguai e da Alemanha.
Kaya Thomas, do Grupo de Trabalho de Agricultura Camponesa da Alemanha, conta que no enfrentamento ao conservadorismo é importante posicionar o tema da diversidade sexual e da identidade de gênero conectado com as diversas dimensões da luta por direitos. “Estamos falando sobre diversidade e não queremos que esse seja apenas o nosso foco. Nós queremos incluir todos e avançar em uma pauta unificada de direitos, a partir das nossas especificidades. É muito importante estarmos em contato com nossas forças, nossos desejos, é um tópico muito importante e a gente tem colocado isso de maneira muito bela”, diz Kaya.
“Nós precisamos ser amados e isso não é sobre nós apenas, é sobre a nossa comunidade. Assim a gente fortalece a nossa luta coletiva”, destaca.
Para Cony Gonzalez, integrante da Organização de Mulheres Camponesas e Indígenas (Conamuri), inicia afirmando que no Paraguai não existe nenhum tipo de direito para a população LGBTI+. “Não é assegurado esse direito às identidades, na constituição não se menciona nada sobre isso.”
Cony Gonzalez. Foto: Júlia Barbosa | CPT Nacional
E continua: “Nós temos mulheres trans que lutam pelo reconhecimento do nome social. Não temos cotas de trabalho para as pessoas trans. Não tem direito ao matrimônio. No geral, passamos pela invisibilização da população LGBT.”
Ela conta ainda que para viver sua sexualidade precisa sair do campo para ir para cidade. No enfrentamento a essa “invisibilização”, Cony diz que é fundamental alinhar as lutas da população LGBTQIA+ com outras lutas, construindo uma coesão política e processos que conectam as pautas em uma perspectiva popular.
*Arlla Xavier é comunicadora popular no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e Wesley Lima integra o Coletivo Nacional de Comunicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Por CPT-AT
Fotos: Ludimila Carvalho
Entre os dias 15 e 17 de setembro, ocorreu o XII Encontro de Camponeses e Camponesas acompanhados pela Comissão Pastoral da Terra Araguaia Tocantins (CPT-AT). O encontro reuniu centenas de assentados, posseiros, acampados, quilombolas e representantes de pastorais e movimentos sociais parceiros, como a CPT-Maranhão, o Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM) e o Movimento Sem Terra (MST), e órgãos públicos, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT) e Universidade Federal do Tocantins (UFT). Esse ano, o evento teve como tema "A organização social pelo acesso e permanência na terra", o que suscitou discussões fundamentais sobre a luta camponesa pela terra e o bem-viver.
Realizado no território quilombola Grotão, Filadéfia-TO, o encontro se consolidou como um momento de retomada da mobilização no pós-pandemia do COVID e dentro de uma nova conjuntura política No espaço, as comunidades presentes discutiram sobre os desafios que enfrentam relacionados ao acesso e permanência na terra, destacando a importância da organização social dos povos do campo, como elemento crucial no enfrentamento à grilagem e no fortalecimento da resistência camponesa frente à política agrária do país e do Tocantins.
Durante o encontro aconteceu ainda a Feira de Troca de sementes, produtos e artesanatos trazidos de todas as comunidades presentes, promovendo o fortalecimento das redes comunitárias, diversificação de culturas e soberania alimentar.
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