Com um adiantamento que podia chegar a cerca de 60 reais, dezenas de trabalhadores rurais foram seduzidos na década de 1990 para capinar juquira na Fazenda Brasil Verde, no Sul do Pará. Essa espécie de mato, conhecida por incomodar fazendeiros na criação de gado, foi a principal razão para um dos casos mais simbólicos de flagrante de trabalho escravo na história do País. No último mês de dezembro, enfim, a consequência: o Brasil foi a primeira nação a ser condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas.
(Por Renan Truffi — Carta Capital | Imagem: MPT)
Sobraram evidências para a responsabilização do Estado brasileiro no caso. Além de serem ameaçados caso abandonassem o emprego, os trabalhadores resgatados nesse local dormiam em barracões cobertos de plásticos e palha, sem proteção lateral, o que permitia a entrada de chuva e ventos durante a noite. Também não havia cama, o “alojamento” era de redes.
E a água, imprópria para consumo, assim como a alimentação oferecida. Isso não impedia que os trabalhadores rurais tivessem essas “despesas” descontadas de seus vencimentos, que nunca chegavam a ser pagos de fato. Ao todo, somente nessa fazenda, mais de 300 trabalhadores foram resgatados, entre 1989 e 2002.
Foi para combater situações como essa que o Brasil começou a publicar, em 2003, o “Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo”, mais conhecida como a Lista Suja do Trabalho Escravo, que reúne nomes de empresas ou pessoas que colocaram trabalhadores em situações degradantes ou forçadas de trabalho. Essa importante ferramenta, reconhecida internacionalmente, não foi publicada, no entanto, pelo governo Michel Temer no último ano, o que pode sinalizar um retrocesso maior a caminho.
A gestão peemedebista aproveitou-se de uma decisão judicial já revista para, simplesmente, ignorar a existência desse cadastro. Isso porque em 2015, durante o recesso de fim de ano, o ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu liminarmente e de forma monocrática o pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) para suspender a publicação. A Abrainc representa as principais construtoras do País e está sob comando, atualmente, da MRV Engenharia.
A medida cautelar foi cassada, entretanto, pela ministra Cármen Lúcia, em maio de 2016 e o Ministério do Trabalho foi liberado para voltar a divulgar o cadastro há mais de oito meses. Mas nenhuma lista foi oficialmente divulgada até agora. A decisão do Supremo levou em conta uma nova portaria interministerial, publicada no apagar das luzes do governo Dilma Rousseff, para driblar o impasse.
Na prática, a portaria flexibiliza as regras de manutenção do cadastro de empregados. Por essa mudança, as empresas flagradas com trabalhadores em condições análogas à escravidão passam a figurar em uma nova lista se firmarem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou acordo judicial com a União. Isso significa que, desde então, o governo poderia publicar duas listas: uma com empresas que se comprometeram a solucionar o problema e outra com as que não mostraram intenção de tomar providência alguma.
Ainda assim, desde que assumiu, o governo Michel Temer ignora essa possibilidade. A omissão deliberada fez com que o Ministério Público do Trabalho ajuizasse uma ação civil pública para obrigar o governo federal a voltar a atualizar o cadastro de empregadores envolvidos com escravidão. No dia 19 de dezembro, o juiz Rubens Curado Silveira, da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, reconheceu a importância do tema e determinou que uma nova lista fosse publicada em até 30 dias, a partir do momento em que o governo fosse notificado da decisão.
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Na decisão, Silveira lembrou justamente o caso da Fazenda Brasil Verde. “Esse foi o primeiro caso decidido pela CIDH [Corte Interamericana] sobre escravidão e tráfico de pessoas, o que acabou por colocar a República Federativa do Brasil no 'banco dos réus' do plano internacional", observa o magistrado.
"Nesse cenário, revela-se ainda mais preocupante a omissão atacada, pois sinaliza um retrocesso injustificado no trato do tema em uma quadra da história em que o Estado brasileiro deveria, em resposta à condenação que lhe foi imposta, redobrar os esforços em busca da extinção definitiva do trabalho escravo em seu território”.
Para Tiago Muniz Cavalcanti, procurador do Trabalho e um dos autores da ação, essa postura marca o retrocesso de políticas públicas até então elogiadas por órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). “A publicação da Lista Suja é uma política de Estado e não uma política de governo. O combate ao trabalho escravo tem de continuar”, critica. “Essa postura omissiva vem desde maio para cá e não existe justificativa para isso.”
Além de uma ferramenta de defesa dos direitos humanos, a Lista Suja também era uma referência para o mercado e bancos na hora de conceder financiamentos ou fazer negócios com determinadas empresas. Mesmo instituições privadas utilizavam o cadastro feito pelo Ministério do Trabalho antes de concluir operações de crédito para companhias. A decisão do governo federal de impedir o acesso a essa lista coloca todas as empresas no mesmo patamar.
“Para além dos direitos humanos e da questão de acesso à informação e liberdade de imprensa há a questão muito clara de mercado (para a publicação da lista). É por isso que as empresas sérias querem essa informação, é uma questão de risco. O mercado brasileiro aprendeu que só tem a ganhar ao gerenciar esse risco, não é fazer com que as empresas percam negócios”, alerta o jornalista e presidente da ONG Repórter Brasil, Leonardo Sakamato.
Atualmente, é a ONG presidida por ele que tem conseguido obter e divulgar a Lista Suja com a ajuda da Lei de Acesso à Informação. A última foi obtida em junho do ano passado e apresenta 349 nomes de empregadores.
Para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a postura do governo federal não encontra respaldo nem mesmo entre a classe empresarial do País. “Existe um grupo majoritário que não quer ser confundido com os escravagistas, porque isso pode fechar o acesso de um produto a determinado país vizinho ou cadeia produtiva no exterior”, enfatiza o Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da CPT.
As vozes pela atualização da lista não vêm apenas de organizações de combate ao trabalho escravo e do Ministério Público, a ONU também fez a mesma recomendação ao Brasil. No ano passado, o órgão lançou um artigo técnico de posicionamento sobre o tema, em antecipação às comemorações do Dia do Trabalho. Para evitar retrocessos nas conquistas alcançadas pelo Brasil, o documento da ONU faz uma série de recomendações, entre elas a reativação da chamada "Lista Suja" e a manutenção do conceito atual de “trabalho escravo”, previsto no Código Penal Brasileiro.
"Nota-se uma crescente tendência de retrocesso [no Brasil] em relação a outras iniciativas fundamentais ao enfrentamento do trabalho escravo, como por exemplo, o Cadastro de Empregadores flagrados explorando mão de obra escrava, comumente reconhecido por 'Lista Suja', que foi suspenso no final de 2014", registra a organização.
Nada disso comove o ministro Ronaldo Nogueira, do Trabalho, mal assumiu a pasta, avisou a interlocutores que não iria publicar a lista. A secretária Especial dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania, Flávia Piovesan, que tem capitaneado todas as ações sobre o assunto, em novembro anunciou a coordenação de um Pacto Federativo para Erradicação do Trabalho Escravo com o estado do Pará, a unidade da Federação com o maior número de casos. Nogueira enviou seu secretário-executivo, Antonio Correia de Almeida, para a cerimônia, mas a assessoria de comunicação do ministério mal registrou o fato em seu site.
Não está claro se a postura decorre de uma decisão particular do ministro, ou se há algum tipo de orientação vinda do ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. Em dezembro, uma operação das polícias Militar, Civil e Ambiental de Mato Grosso, que investiga desmatamento ilegal, encontrou em péssimas condições as acomodações de empregados em uma fazenda de Padilha, em Mato Grosso, e encaminhou as imagens ao Ministério Público do Trabalho, diante da suspeita de trabalho análogo à escravidão.
Pressões de empresas do setor da construção civil, de parlamentares ou até mesmo de ministros por conta da repercussão negativa da Lista Suja do Trabalho Escravo não são novidades no País. Esse tipo de relato também era comum nas gestões petistas e encontrava conivência, inclusive, entre parlamentares do PT e integrantes do governo Dilma. No entanto, a postura da gestão Temer, mesmo com vozes dissonantes como a de Flávia Piovesan, pode sinalizar mudanças mais preocupantes.
Há algum tempo que integrantes da bancada ruralista tentam abrandar no Congresso a definição de trabalho escravo, com o objetivo de impedir que flagrantes de trabalho em condições desumanas seja enquadrado nessa prática. Um dos patrocinadores desse ponto de vista é justamente o líder do governo no Congresso, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que foi ministro de Temer.
Em 2014, quando os congressistas discutiam a PEC do Trabalho Escravo, Jucá tentou emplacar sua tese sob o argumento de que os termos utilizados para a identificação de trabalho escravo eram “genéricos”. “O que é sumamente revoltante para alguns pode não o ser para outros”, amenizava no texto de seu projeto. “Principalmente porque as condições de trabalho em geral não são lá essa maravilha nos campos distantes, nas minas, nas florestas e nas fábricas de fundo de quintal.”
(Por Xavier Plassat, Campanha da CPT 'De Olho Aberto para não Virar Escravo')
Uma condenação histórica
Os últimos três anos têm suscitado muitas dúvidas quanto ao futuro do combate ao trabalho escravo no Brasil.
- 2014 encerrou com a suspensão da Lista Suja dos empregadores flagrados por trabalho escravo, medida decretada liminarmente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, a pedido de grandes construtoras e desde então a Lista deixou de ser publicada pelo Ministério do Trabalho, muito embora tenha sido revigorada por nova Portaria lançada nos últimos dias do Governo Dilma com a anuência do STF.
- 2015 terminou com um verdadeiro tiroteio de setores do Congresso fortemente articulados (as famosas bancadas BBB: bala, boi, bíblia) contra a política brasileira de combate ao trabalho escravo, uma construção corajosa e original iniciada a partir de 1995: no foco já estava e permanece até hoje o rebaixamento da definição do trabalho escravo (para dela retirar as referências às condições degradantes e à jornada exaustiva como constitutivas deste crime), bem como a liberação total da terceirização.
- 2016 apresenta como destaque o comparecimento do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA e sua inédita condenação, sob a acusação de omissão e negligência no combate ao trabalho escravo. Publicada em 15 de dezembro de 2016, a sentença encerra o Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde contra Estado Brasileiro, que havia sido protocolada em 1998 pela CPT e pelo CEJIL, com base em 12 ocorrências de trabalho escravo no decorrer de 10 anos, envolvendo mais de 300 trabalhadores do Piauí aliciados para aquela fazenda do sul do Pará.
Na Fazenda Brasil Verde, a imposição de condições análogas às de escravo ficou configurada em sucessivas fiscalizações quando foram constatados tráfico de pessoas e escravidão moderna, com robustos indícios tais como: endividamento pelo sistema de barracão, impossibilidade de sair da fazenda, coação física e psicológica, condições degradantes de vida e de trabalho. A Corte obriga o Estado brasileiro a retomar as investigações sobre o caso, a adotar medidas para evitar que a prescrição seja aplicada ao delito de escravidão, e a reparar as vítimas pelos danos imateriais sofridos, pagando indenizações pecuniárias a 127 trabalhadores e a uma trabalhadora.
Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA
Além dos 85 resgatados da fiscalização de 2000, que receberão 40 mil dólares cada um (mais de R$ 120 mil, cada), por terem sido submetidos a trabalho escravo e tráfico de pessoas, se somam, em razão da denegação de Justiça, outros 43 trabalhadores resgatados na fiscalização de 1997, os quais receberão 30 mil dólares cada (mais de R$ 90 mil, cada).
Trata-se de uma sentença histórica por ser a primeira vez que a Corte Interamericana julga um caso de trabalho escravo nas Américas, e assim tem oportunidade de definir com clareza o que é escravidão moderna e quais são as obrigações do Estado para acabar com ela.
A sentença é também paradigmática porque reconhece que a violação pelo Estado brasileiro ao direito de não ser submetido a escravidão está inserida em um contexto de discriminação estrutural dos trabalhadores escravizados em razão de sua situação de vulnerabilidade econômica. Uma discriminação que exige políticas públicas consistentes para erradica-la. Os juízes destacam ainda que essa discriminação foi reiterada quando as vítimas, em busca da reparação de sua dignidade violada, recorreram à Justiça, pleiteando a devida reparação, mas não receberam qualquer resposta do poder Judiciário. Ninguém foi responsabilizado criminalmente nem os trabalhadores indenizados por dano moral coletivo ou individual por terem sido submetidos a jornadas exaustivas, condições degradantes, ameaça, servidão por dívidas e cárcere privado.
A repercussão internacional da condenação e as cobranças logo dirigidas ao Estado foram amplas e imediatas. Vejamos essa manchete da BBC, no dia 22/12/2016: “Por que Brasil parou de divulgar 'lista suja' de trabalho escravo tida como modelo no mundo?”. Na mesma semana, acionada pelo Ministério Público do Trabalho e apoiando-se inclusive na decisão da Corte Interamericana (que reconheceu o pioneirismo da legislação brasileira nesta área), a Justiça do Trabalho deu 30 dias para o Ministro do Trabalho voltar a publicar a Lista Suja do trabalho escravo.
Defender a política de erradicação do trabalho escravo
Pode se esperar, neste contexto, que ficará um pouco mais complicado para o governo oriundo do golpe de maio de 2016 dar seguimento aos seus funestes projetos de retrocesso no combate ao trabalho escravo, especialmente quanto à existência da Lista Suja e à manutenção do conceito legal de trabalho escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal. Na argumentação dos seus detratores, o conceito do 149 não teria clareza e por isso provocaria “insegurança jurídica”. Eles alegam que “jornada exaustiva” e “condições degradantes” são expressões genéricas, de interpretação subjetiva, e pretendem eliminar esses caracterizadores na definição do trabalho escravo (Cf PLC 3842/12, do ex-deputado Moreira Mendes visando alterar a redação do Art.149 CPB e PLS 432/2013, do Senador Romero Jucá, visando instituir uma definição específica, diversa da do Art.149, para efeito de regulamentação da Emenda Constitucional 81 que determina o confisco da propriedade onde for flagrado trabalho escravo).
Por duas vezes, no final de 2015 e início de 2016, o PLS 432/2013 passou perto de ser submetido à votação dos senadores, em regime de emergência. A tentativa só foi barrada pela forte mobilização da sociedade, com a participação destacada de figuras nacionais, a exemplo de Wagner Moura.
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Ter em mente esse pano de fundo é mais que necessário para interpretar a evolução recente dos resultados do combate ao trabalho escravo no país.
O combate ao trabalho escravo exige ações que, no seu conjunto, dependem do real empenho do Estado nas diversas vertentes da política pública: Prevenção: contra a discriminação histórica dos trabalhadores rurais pobres, maior público alvo do trabalho escravo no Brasil (mas a PEC do Teto do orçamento público já veio anunciar a probabilidade do contrário acontecer); Repressão: implicaria suficiente disponibilidade de equipes de fiscalização (mas continua faltando mais de 1200 auditores fiscais no país); Punição: mas continua parada a possibilidade legal de confiscar a propriedade de escravagistas, e praticamente inexistente a sanção penal do crime, por meio de condenações à altura da sua gravidade; Reparação e acesso a condições decentes de trabalho (o caso Brasil Verde não é caso isolado: raras são as vítimas que acessam a reparações ou ingressam em programas que possam mudar sua situação de vulnerabilidade. Dá para falar ainda em Reforma Agrária?).
O trabalho escravo não pode cair na invisibilidade
Em tempos de penúria de recursos para a fiscalização, e de recuo no projeto político de eliminar o trabalho escravo, os números disponíveis – em recuo também – traduzem a menor visibilidade do trabalho escravo entre nós, mais que a sua efetiva redução.
Na última atualização 2016 do quadro da fiscalização móvel, especializada no combate ao trabalho escravo, disponibilizada em 20/12/2016 pela DETRAE/MT, consta a realização de 66 operações envolvendo a fiscalização de 158 estabelecimentos, de um total de 120 operações organizadas durante o ano (a diferença de 54 operações corresponde às fiscalizações cujas conclusões ainda não foram finalizadas ou relatadas à DETRAE). Por comparação, a média anual de fiscalização dos últimos 14 anos foi de 261 estabelecimentos e a dos últimos 3 anos, de 293. Foram identificadas 559 pessoas em condição análoga à de escravo (em 2015: 1.155; em 2014: 1.660); dentre elas, 545 foram resgatadas (em 2015: 857; em 2014: 1.468).
Do total de 158 fiscalizações, 65 foram realizadas por equipes regionais do MT (SRTE) e 93 pelo Grupo Móvel nacional, o que sinaliza uma queda importante das fiscalizações realizadas pelas regionais (em 2015 elas realizaram 158 fiscalizações de denúncias de trabalho escravo e o GM: 119). Os números definitivos de 2016 devem sofrer ainda várias alterações.
Computando apenas as denúncias de trabalho escravo recebidas pela Campanha da CPT e os demais casos que, quando fiscalizados, revelaram a existência de trabalho escravo, a CPT, para 2016, em contagem ainda provisória, contabiliza 98 casos de trabalho escravo, envolvendo 968 pessoas, contra 120 casos e 2.321 pessoas em 2015. Destas pessoas, 718 foram libertadas em 2016 (contra 895 em 2015), números que apresentam pequenas diferenças em relação aos da DETRAE, por incluírem dados eventuais de outras instituições ou/e dados ainda não computados pelo Ministério do Trabalho.
Geograficamente, os estados com maior número de casos em 2016 foram: BA (14), MG e PA (13 cada), MA (11), MT, PI e RJ (6 cada), SP e MS (4 cada). Em 2015, os 7 primeiros colocados eram: MG (19), RJ (16), MT (11), PA e TO (10), MA (9), SP (6). Ordenados conforme o número de libertados, temos: MG (138 libertados em 2016 contra 221 em 2015), PI (105; 29); MS (82; 25); PA (74; 36); BA (65; 6); SP (50; 76); MA (49; 107); RR (3; 1). Nos estados de RJ, CE, AM, SC e MT onde em 2015 houve resgates importantes (de 40 a 80 pessoas em cada um), os resgates foram menores em 2016: RJ(13), CE (3), AM (6), SC (4) e MT (22). E o estado de RR passou de 1 libertado em 2015 para 3 em 2016. A Amazônia Legal foi palco de 44% dos casos identificados em 2016, porém apenas 27% dos resgates foram realizados nessa área.
Trabalho escravo, 2016: n° casos por UF; n° libertados por UF; n° libertados por atividade. Dados e processamento: CPT
Os setores de atividade afetados por trabalho escravo foram majoritariamente rurais: 70% dos casos, 72% dos resgates, com predominância na pecuária (193 libertados entre: AC, AM, BA, GO, MA, MG, MS, MT, PA, PR, RO, RR, TO), na cultura do café (100; MG, BA e PA), na madeira (61; MG, PA, PI, MT, MS, SC), no extrativismo vegetal (60; PI, MG), no carvão vegetal (45; PI, MS). Nas atividades não agrícolas, predominou a construção civil (75; AM, BA, CE, MA, MG, PA, SP), comércio e serviços (100; AM, BA, CE, GO, MT, PA, RJ, RS, SP). Na confecção foi encontrado apenas um caso, em SP (4 lib.). Os estados com mais estabelecimentos fiscalizados foram PA, MG, MT, RJ, TO, BA, PR, totalizando 114 fiscalizações; nos estados do PA, MA, MT e TO, o número de fiscalizações realizadas em 2016 está entre 40 e 60% abaixo da média dos 13 anos anteriores.
A ONU recomenda ao Brasil: não desista
O Escritório das Nações Unidas no Brasil lançou em abril de 2016 um Documento sobre o combate ao trabalho escravo no país. Nele destaca que, apesar dos avanços no âmbito das políticas brasileiras para erradicação do trabalho escravo, muito mais precisa ser feito. E vê com muita preocupação o atual questionamento do conceito legal de trabalho escravo, o qual considera “como uma referência legislativa para o tema, [estando] em consonância com as Convenções [da OIT]”. “O Brasil se destacou em um cenário contemporâneo onde o termo "trabalho escravo” perpassa a noção de mera ausência de liberdade, para refletir também aquilo que é sonegado aos trabalhadores com tamanha exploração: sua condição de seres humanos, dotados de sonhos e esperanças”.
O cenário é de evidente agravação da pressão dos setores que há anos procuram flexibilizar os direitos dos trabalhadores e a legislação do trabalho, eliminando tudo aquilo que consideram ser entrave à livre exploração e à maximização da rentabilidade de seus empreendimentos: liberação incondicional da terceirização das relações de trabalho; preponderância do negociado sobre o legislado na efetivação dos direitos; redução da definição legal do trabalho escravo; fragilização da inspeção do trabalho, tanto quantitativamente quanto qualitativamente. Em resumo: abrindo a porta ao recrudescimento do trabalho escravo.
Neste contexto, as recomendações formuladas pelo Escritório da ONU no Brasil resumem de forma adequada os anseios da sociedade civil e de todos os setores empenhados na erradicação efetiva do trabalho escravo:
Com suas equipes presentes em todas as regiões, a CPT continuará assumindo e cobrando a tempo e a contratempo a defesa intransigente dos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras mais vulneráveis, no campo e na cidade. Em 2017, daremos início a um novo programa de combate ao trabalho escravo, batizado “Raice” (Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão).
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA) emitiu no último 15 de dezembro a sentença do Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Brasil, condenando o Estado brasileiro por ser internacionalmente responsável por não garantir a proteção de 85 trabalhadores de serem submetidos à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado a realização de justiça também para outros 43 trabalhadores resgatados desta condição.
Em consequência de sua condenação, o Estado brasileiro deverá retomar as investigações sobre o caso, adotar medidas para evitar que a prescrição seja aplicada ao delito de escravidão, e reparar as vítimas pelos danos imateriais sofridos, pagando indenizações pecuniárias a 127 trabalhadores e a uma trabalhadora. Além dos 85 resgatados na fiscalização de 2000, que receberão 40 mil dólares cada um, por terem sido submetidos a trabalho escravo e tráfico de pessoas, se somam, em razão da denegação de justiça, outros 43 trabalhadores resgatados na fiscalização de 1997, os quais receberão 30 mil dólares cada.
Tais valores dizem por si a gravidade das ofensas sofridas por essas pessoas.
A fiscalização de março de 2000 documentou que encontrou trabalhadores em situação de escravidão. Foram aliciados por um 'gato' no interior do Piauí e viajaram durante dias em ônibus, trem e caminhão até chegarem à fazenda. Suas carteiras de trabalho foram confiscadas e assinaram documentos em branco. As jornadas de trabalho eram de 12 horas ou mais, com um descanso de meia hora para almoçar e apenas um dia livre por semana. Na fazenda, eles dormiam em galpões com dezenas de trabalhadores em redes, sem eletricidade, camas ou armários. O teto era de lona. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e descontada de seus salários. Eles se adoentavam com regularidade e não recebiam atenção médica. O trabalho era realizado sob ordens, ameaças e vigilância armada.
A sentença ora publicada é histórica, porque é a primeira vez que a proibição da escravidão e da servidão é aplicada no julgamento de um caso concreto no Continente Americano, estabelecendo parâmetros para o conceito previsto no art. 6º da Convenção Americana, em particular na definição do que se considera responsabilidade e dever do Estado no enfrentamento à escravidão moderna e ao tráfico de pessoas.
A sentença é também paradigmática porque reconhece que a violação ao direito de não ser submetido a escravidão está inserida em um contexto de discriminação estrutural dos trabalhadores escravizados em razão de sua situação de vulnerabilidade econômica. Descreve que tal discriminação foi reiterada por parte da administração de justiça e outros setores, quando as vítimas ou seus representantes, em busca do reconhecimento de sua dignidade, recorreram à justiça para denunciar a submissão à servidão e tráfico, pleiteando a devida reparação, e não receberam qualquer resposta do poder judiciário.
O Tribunal considerou que as características específicas a que foram submetidos os trabalhadores resgatados em março de 2000 foram além da servidão por dívida e do trabalho forçado, ao configurar: “violação à integridade e à liberdade pessoais (violência e ameaças de violência, coerção física e psicológica dos trabalhadores, restrições da liberdade de movimento); os tratamentos indignos (condições degradantes de habitação, alimentação e de trabalho) e a limitação da liberdade de circulação (restrição de circulação em razão de dívidas e do trabalho forçado exigido), foram elementos constitutivos da escravidão no presente caso”. “Foi constatada a existência de trabalho exaustivo, condições degradantes de vida, falsificação de documentos e a presença de menores de idade”.
Na Sentença fica explicitada a responsabilidade dos Estados “de garantir as condições necessárias para que não ocorram violações a esse direito inalienável e, em particular, o dever de impedir que seus agentes e terceiros particulares atentem contra ele”. Os Estados devem assegurar “que nenhuma pessoa seja submetida a escravidão, servidão, tráfico ou trabalho forçado, mas também requer que os Estados adotem todas as medidas apropriadas para pôr fim a estas práticas e prevenir a violação do direito a não ser submetido a essas condições, em conformidade com o dever de garantir o pleno e livre exercício dos direitos de todas as pessoas sob sua jurisdição”.
Para Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT: “se por um lado é lamentável ter que chegar a uma sentença condenatória para assegurar que a luta contra o trabalho escravo seja estimulada a continuar, por outro lado é muito oportuno, na conjuntura política que essa sentença é proferida, que o Brasil perceba que continuará sendo monitorado pela comunidade internacional para que não deixe de ser a referência à qual chegou a ser identificado - por várias instâncias da ONU, inclusive a OIT - no combate ao trabalho escravo”.
A obstrução às garantias do sistema de justiça também foi uma das principais violações constatadas no Caso Brasil Verde, pois nenhum dos perpetradores chegou a ser efetivamente responsabilizado e nenhuma das vítimas recebeu reparação.
Nesse sentido, Beatriz Affonso, Diretora do CEJIL para o Programa do Brasil, enfatiza que “a decisão do Tribunal é emblemática porque cria um precedente importante ao declarar o caráter imprescritível do delito de escravidão segundo as normas do Direito Internacional por entender que a aplicação da prescrição constitui obstáculo para a investigação dos fatos, para a determinação e punição dos responsáveis e para a reparação das vítimas.”
O combate à escravidão contemporânea requer uma ação de caráter integral. Além de pressupor uma normativa com conceitos vigorosos, hoje no Brasil já garantida na formulação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é necessário que a atuação repressiva e judiciária seja eficiente. A sentença da Corte Interamericana reforça a tese de que combater o trabalho escravo requer políticas abrangentes que possibilitem a educação, o combate a discriminação de raça e de gênero, o acesso ao direito ao pleno desenvolvimento, acesso a terra, e a erradicação de todas as demais mazelas que caracterizam a discriminação estrutural que a Abolição de 1888 ainda não superou.
Para entrevistas:
- Beatriz Affonso – Diretora do Programa do Cejil para o Brasil
Fone: (21) 969800303
- Xavier Plassat - Coordenador da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT
Fone: (63) 992219957
*O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) é uma organização não-governamental de defesa e promoção dos direitos humanos no continente americano. O objetivo principal do CEJIL é promover a plena implementação das normas internacionais de direitos humanos nos Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio do uso efetivo do sistema interamericano de direitos humanos e outros mecanismos de proteção internacional. www.cejil.org
**A Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Igreja católica, foi constituída há mais de 40 anos para ser presença solidária e força de apoio efetivo junto aos povos do campo na sua histórica luta por terra, territórios e dignidade, frente à violência excludente do latifúndio. Com as comunidades camponesas, a CPT defende os direitos à terra e à água. Sua atuação tem sido decisiva na mobilização do Brasil contra o trabalho escravo contemporâneo. http://www.cptnacional.org.br
***CEJIL e CPT são copeticionários do Caso Brasil Verde desde 1998 quando enviaram a denúncia á Comissão Interamericana e, também em parceria, representaram o Caso José Pereira, precursor na Comissão Interamericana por denunciar trabalho escravo no Brasil, o qual culminou com uma Solução Amistosa que impulsionou as múltiplas políticas públicas de combate ao trabalho escravo no país no final da década de 90 e anos 2000.
Marinaldo, um negro vítima da escravidão contemporânea, resgatado três vezes das mãos de fazendeiros escravocratas, hoje é uma liderança em Pindaré Mirim e Monção no Maranhão. Ele recebeu no dia 14 de dezembro, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos na categoria Combate e Erradicação ao Trabalho Escravo.
Xico Cruz*
Em uma manhã banhada de chuva se deu nosso diálogo florido de anedotas, gargalhadas e reflexões. Considero que se houvesse uma “dose” também beberíamos, para brindar a vida e a chuva que há três dias regava sua roça. “A chuva é vida”, disse ele. Marinaldo Soares Santos, 44 anos, aprendeu com o pai a contar “braças de terras” e tendo esse saber, sentia-se incomodado quando percebia que seus companheiros eram enganados pelos empregadores. “Às vezes eu chegava e perguntava - rapaz tu roçou quantas braças de terra? E o cara dizia: umas 50 braças. Eu olhava pra terra limpa e na verdade ele tinha roçado mais de 100, mas não sabia. As vezes a gente tinha até medo de explicar pra eles.” Medo do patrão? Perguntei atento. ”Isso mesmo e de ser até morto pelo patrão”, respondeu pensativo.
Estar diante de um homem como Marinaldo, que passou por doze fazendas e em quase todas foi submetido às condições desumanas, chegando a ser resgatado três vezes da escravidão, ouvi-lo e olhar em seus olhos, é sentir na alma o rebuliço de nossas fraquezas diante de pequenos problemas e perceber-se ingrato perante à vida.
Na fazenda Barbosa ele escutou quando Firmino, dono da Fazenda, falou para o cozinheiro salgar a comida. “Ele mandava salgar a comida, pra gente beber muita água, a gente comia só arroz branco com ovo, o ovo era cozido de manhã, quando a gente ia comer meio dia já tava roxo, e era um pra cada. Quando dava três da tarde eu tava me tremendo de fome”. Na fazenda Terra Roxa Marinaldo também lembra um fato sobre a comida. “De longe eu vi Maria mexendo umas coisas com o pé, cheguei bem perto e vi que ela tava espalhando o feijão com o pé, perguntei - Maria porque você tá mexendo nossa comida com o pé? Ela respondeu que o pé dela era mais limpo do que aquele feijão e disse que tava espalhando com o pé porque tava com nojo de usar a mão, quando olhei pro feijão não tinha mais massa, era só as cascas e os bichos, aqueles tapuru”.
De todas as fazendas que enfrentou, a Barbosa foi a que mais lhes deixou marcas, que ele expõe com tristeza, mas vez em quando não resiste a uma boa gargalhada. É nessa hora que percebo a força desse grande homem e sua gratidão pela vida.
Ao lembrar-se de um fato sobre um rapaz que havia sido açoitado com uma vara pelo patrão, reforça-se o quanto há de senso de justiça dentro de seu Marinaldo. Ele enfrentou o carrasco. “Falei pra ele, Seu Firmino não bata no rapaz não, se o senhor não quer mais os serviços dele, se não tá gostando dos serviços dele, manda ele ir embora, mas o senhor não pode bater nele não”. O rapaz foi embora da fazenda sem receber o pagamento, foi embora pegando carona e vendeu a capivara que criava de estimação, conta seu Marinaldo. Firmino além de escravocrata era traficante, tinha em suas terras plantação de maconha, abusava sexualmente de crianças e adolescentes, especificamente meninos, e tinha porte ilegal de armas. Ameaçava os trabalhadores, torturava, jurava de morte e os mantinha em suas terras alegando dívidas, além de serem obrigados ao trabalho forçado e sem direito a receber pagamento. Ele dizia pra nós: “essa arma aqui é pra dar tiro no joelho de peão, pra secar a baba, pra ver como é que anda”. Mesmo tendo consciência de toda crueldade desse típico coronel, Marinaldo, que parece carregar consigo o próprio machado de Xangô, não lhe desejava a morte “se matasse ele, estaria perdendo nosso direto”. O machado da Justiça conduzia suas mãos, seus pensamentos e por muitas vezes lhe deu forças para enfrentar o ódio e mais ainda, aconselhar com sabedoria o covarde patrão que ameaçou de morte os trabalhadores por ter ficado sabendo que alguns queriam lhe denunciar. “O senhor não pode sair por aí dizendo, ameaçando as pessoas de morte, sem saber a verdade, primeiro o senhor tem que perguntar pra elas”.
Marinaldo, um ser-humano esperançoso, contemplativo e de sorriso largo. Liderou companheiros para denunciarem as fazendas onde estavam sendo submetidos a condições de escravidão. Ele permanecia na Fazenda, enquanto um companheiro saia para denunciar. Ficar na fazenda era também uma forma de proteger os amigos. Marinaldo é um homem destemido e protetor. Certa vez disse ao patrão: “não faça nada com nenhum dos meus parentes, é melhor me matar, porque se não...”. Os recados eram sempre claros e diretos e os fazendeiros de alguma forma temiam-no. Sobre o feijão com bichos chegou a chamar o patrão de porco e este, apesar de ter se estremecido de ódio, nada tentou contra a vida de Marinaldo.
Marinaldo, um negro, vítima da escravidão contemporânea, resgatado três vezes das mãos de fazendeiros escravocratas, hoje é uma liderança em Pindaré Mirim e Monção no Estado do Maranhão e participa ativamente de encontros e atividades organizadas pelo Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos – Carmen Bascarán.
Marinaldo recebeu no dia 14 de dezembro de 2016 o Prêmio Nacional de Direitos Humanos na categoria Combate e Erradicação ao Trabalho Escravo. O Prêmio de Direitos Humanos é a maior condecoração do Governo Federal às instituições e lideranças que lutam no enfrentamento às violações dos Direitos Humanos. Ao perguntar sobre o prêmio, ele respondeu “é meu porque foi eu que fui lá e recebi, mas sinto que é nosso”.
*Escritor e poeta
O Estado brasileiro foi considerado responsável pela violação ao direito de não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas por conta de 85 trabalhadores resgatados da fazenda Brasil Verde, no Pará, no ano 2000. O caso é o primeiro a ser denunciado e decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – órgão jurisdicional da Organização dos Estados Americanos (OEA), responsável por fiscalizar se os países cumprem as obrigações previstas nos tratados continentais nessa área.
(Blog Leonardo Sakamoto)
Dessa forma, o Brasil se torna o primeiro país a ser condenado por escravidão contemporânea pela Corte. Isso pode abrir um precedente para outros casos que apareçam para serem analisados. A sentença, proferida pelo juízes vindos de países membros da OEA em outubro, foi divulgada nesta quinta (15).
Leia a sentença do caso Brasil Verde, clicando aqui.
De acordo com comunicado da Corte, em março de 2000, dois jovens conseguiram escapar da fazenda e, após denunciarem a situação em que se encontravam, o Ministério do Trabalho organizou uma fiscalização que resgatou outros trabalhadores.
''O relatório da fiscalização indicou que eles se encontravam em situação de escravidão. Os trabalhadores foram aliciados por um 'gato' [contratador de mão de obra a serviço de empresas e fazendeiros] nos locais mais pobres do país e viajaram durante dias em ônibus, trem e caminhão até chegarem à Fazenda. Suas carteiras de trabalho foram confiscadas e assinaram documentos em branco. As jornadas de trabalho eram de 12 horas ou mais, com um descanso de meia hora para almoçar e apenas um dia livre por semana. Na Fazenda, eles dormiam em galpões com dezenas de trabalhadores em redes, sem eletricidade, camas ou armários. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e descontada de seus salários. Eles se adoentavam com regularidade e não recebiam atenção médica. O trabalho era realizado sob ordens, ameaças e vigilância armada.''
O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Comissão Pastoral da Terra levaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), outra instituição do sistema interamericano de direitos humanos, que tentou uma negociação com o Estado brasileiro entre 2012 e 2014. Mas como um acordo entre as partes não foi possível, a Comissão acabou considerando que o Brasil foi responsável pelo ocorrido e levou o caso à Corte Interamericana em 2015. Durante o julgamento, este jornalista foi convidado pela Corte, após solicitação das duas organizações sociais, para oferecer aos juízes um panorama da situação atual do trabalho escravo e do tráfico de pessoas no Brasil.
Frei Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional de combate à escravidão da Comissão Pastoral da Terra, afirmou, nesta quinta a este blog que ''o caso Brasil Verde revelou a incapacidade do Estado brasileiro de enfrentar, na sua integralidade, o problema do trabalho escravo''.
''Foi dado um tempo grande para poder negociar elementos de um acordo que, infelizmente, o Estado não assumiu. É lamentável ter que chegar a uma sentença condenatória para garantir que a luta contra o trabalho escravo seja estimulada a continuar. Nossa expectativa é que, na conjuntura politica em que ocorre essa sentença, o Brasil se lembre que está sendo monitorado pela comunidade internacional para que não deixe de ser uma referência mundial no combate ao trabalho escravo'', completa.
Xavier refere-se ao fato de que a Organização Internacional do Trabalho e outras agências das Nações Unidas consideram o sistema de combate ao trabalho escravo no Brasil, que resgatou mais de 50 mil pessoas desde sua criação, em 1995, uma referência internacional.
O blog entrou em contato com o governo federal e, tão logo obtenha uma posição, publicará neste espaço.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que o conceito de escravidão e suas formas análogas evoluiu e não se limita à propriedade sobre uma pessoa. Segundo o comunicado, o Estado brasileiro não demonstrou ter adotado medidas específicas ou atuou com a devida diligência para prevenir a forma contemporânea de escravidão à qual foram submetidas estas pessoas, nem para por fim a essa situação. Segundo ela, o descumprimento de seu dever de garantia é sério quando se leva em consideração o seu conhecimento sobre o contexto e a particular situação de vulnerabilidade dos trabalhadores.
De acordo com a Corte, nenhum dos procedimentos legais no Brasil determinou qualquer tipo de responsabilidade, nem serviu para obter reparação para as vítimas ou chegou a estudar a fundo as violações denunciadas. Nosso país decidiu aplicar a prescrição a esses processos, apesar do caráter imprescritível desse delito de acordo com o Direito Internacional. Para a Corte a falta de ação e de sanção destes fatos se deve à normalização das condições às quais as pessoas com determinadas características nos estados mais pobres do país eram submetidas. Portanto, considerou que o Estado havia violado o direito de acesso à justiça das 85 vítimas, e também de outros 43 trabalhadores que foram resgatados em 1997 na mesma fazenda, e que também não receberam uma proteção judicial adequada.
A Corte ordenou diversas medidas de reparação, entre as quais reiniciar as investigações sobre o caso, adotar as medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de direito internacional de escravidão e suas formas análogas e pagar as indenizações correspondentes aos trabalhadores.
O jurista brasileiro Roberto Caldas, atual presidente da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, não participou do julgamento em conformidade com os regulamentos do órgão.
Pesquisadores do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTE) e demais participantes da 9ª reunião científica trabalho escravo contemporâneo e questões correlatas, realizada nos dias 16, 17 e 18 de novembro, na Universidade Federal do Pará, em Belém, divulgaram Carta, na qual defendem a manutenção do conceito de trabalho análogo ao escravo, previsto no art. 149 do Código Penal.
(Anamatra)
Para o grupo, os projetos de lei que objetivam a alteração do atual conceito de trabalho análogo ao escravo: PL 2464-2015, PL 3842/2012, PLS 432/2013 (regulamentação da PEC do Trabalho Escravo) e PLS 236/2012 (Reforma do Código Penal) são inconstitucionais e tornam a “aprovação da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 81, de 05.06.2014, conhecida como PEC do Trabalho Escravo, absolutamente vazia de sentido”.
A regulamentação da terceirização, nos moldes propostos no PLC nº 30/2016, em tramitação no Senado, também é vista com preocupação pelos estudiosos. Para o os pesquisadores, o projeto legitima a intermediação de mão de obra no ordenamento jurídico brasileiro, em detrimento de garantias constitucionais, como a isonomia e a relação de emprego socialmente protegida.
Para a diretora de Cidadania e Direitos Humanos da Anamatra, Noemia Porto, que também assinou a Carta, as preocupações do grupo de estudo se coadunam com as da Anamatra. “O conceito de trabalho degradante é fundamental para a garantia do combate ao trabalho escravo. O esvaziamento desse conceito representará retrocesso na luta pela dignidade plena dos trabalhadores. De 1995 a 2015, foram mais de 50 mil pessoas libertadas, no campo e na cidade”, explicou.
Clique aqui e confira a íntegra da Carta de Belém
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https://www.change.org/p/congresso-nacional-contra-a-redu%C3%A7%C3%A3o-do-conceito-de-trabalho-escravo