Confira análise de Plácido Junior e Ruben Siqueira, ambos da CPT, sobre o X Encontro Nacional Fé e Política e a conjuntura nacional. O evento ocorreu no fim do mês de abril em Campina Grande, Paraíba.
Por Plácido Junior (CPT Nordeste 2) e
Ruben Siqueira (CPT Bahia / Nacional)
“Se o Senhor estivesse aqui, não haveria golpe!” Esta afirmação, entre outras de “não haveria” inspiradas no episódio da ressurreição de Lázaro (Evangelho de João, capítulo 11), foi feita numa das celebrações do X Encontro Nacional Fé e Política, acontecido nos dias 22 a 24 de abril de 2016, no campus da UFPB em Campina Grande-PB, reunindo cerca de 800 participantes. Houve estranhamento de alguns, o que já é boa notícia. E serve de mote para a reflexão que nos provocou aquele encontro, primeiro de que participamos, a respeito do que – parece-nos – estão devendo os cristãos na crise do que generalizadamente se chama esquerda, há muito se arrastando, em especial com a experiência dos governos petistas.
É de reconhecimento geral, na militância cristã e nos estudos sobre o assunto, a grande contribuição que as Igrejas da América Latina, postadas ao lado do povo – no caso da Católica por volta do Concílio Vaticano II (1962/65) –, deram e dão à luta política e à afirmação da cidadania neste País de “história lenta”, como dizia José de Souza Martins. Atribui-se a estes setores do cristianismo – das Comunidades Eclesiais de Base e das Pastorais Sociais, com apoio da direção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil à época – uma das três vertentes que constituíram o PT, como expressão criativa e inovadora da esquerda social e política, em feliz encontro, construído na resistência à Ditadura Civil-Militar, capaz de se impor na e como (re)democratização real. As outras duas seriam o novo sindicalismo nascido no ABC paulista e os intelectuais e militantes de esquerda retornados do exílio com a anistia em 1979. Há quem interprete o processo ocorrido desde então como hegemonização destas duas (ou mais da primeira) e alijamento ou contenção da vertente cristã, tida como “xiita” pelo Lula, sobretudo porque prezava os “núcleos de base”, onde efetivamente “o trabalhador faz política”...
O Movimento Fé e Política, criado em junho de 1989, no auge deste engajamento, “com o objetivo de alimentar a dimensão ética e espiritual que deve animar a atividade política”, “não propõe diretrizes para ação política dos cristãos, nem se comporta como se fosse uma tendência político-partidária, mas que luta pela superação do capitalismo por meio da construção de um sistema sócio-econômico solidário e respeitoso da vida do Planeta” (cf. www. http://fepolitica.org.br/historico/). Como tal, se propõe ecumênico e suprapartidário. Notabilizou-se, sobretudo pelos encontros nacionais, momentos importantes de troca de experiências, auscultação das ideias e sentimentos dos militantes cristãos e síntese animadora dos caminhos a seguir.
Neste sentido é que o X Encontro, mesmo tendo possibilitado valiosas percepções, interações e afirmações de fé partilhadas com os companheiros e companheiras de caminhada sobre a gravíssima conjuntura nacional e global, permeando também o eclesial, teve certa dose de decepção. O tema “Bem-viver: águas da solidariedade, sementes de esperança” prometia um olhar poderoso para frente, uma vez este se consolidando entre nós como um horizonte de consenso motivador da luta, dentro e fora dos meios eclesiais, em vista das cada vez mais evidentes e perturbadoras danações socioambientais do capitalismo e da resposta resistente e resiliente dos povos originários pela permanência da vida comum a todos e a tudo conectada, como reconhece e exalta a “Laudato Si”, do Papa Francisco. Algo que diz respeito, em especial, não só a católicos e cristãos em geral, mas a todos e todas, também e principalmente à coisa pública e sua gestão política. Como tal, uma resposta também à crise atual da esquerda.
O encontro contaminou-se pela precipitação absurda e inimaginável (?) da conjuntura política com o golpe “temerário” – o impedimento da presidenta Dilma sem base legal, numa evidente manobra de tomada do governo pela oposição sem votos, à mercê do neoliberalismo global, a dupla Temer / Cunha à frente, agora evidenciada como a sinistra que antes, como aliada, não era... O encontro enviesou-se também ele pela urgência da luta contra o golpe e olhou menos do que se esperava para o futuro pós-tudo isso e que depende também, sobremaneira, de como se enfrente este momento presente de difícil transição.
Evidencia-se ainda mais na conjuntura recente que a relação dos governos petistas com os movimentos sociais, ou a esquerda social em geral, permeou-se menos pela potencialização desta força poderosa de transformação social e política, mas muito mais pelo disciplinamento e canalização, cooptação mesmo em muitos casos, conforme requeria a coalização ou o pacto social garantido por Lula. Do lado de cá, somada à adesão ao projeto político petista, a necessidade de movimentos sociais acessarem ao Estado, tido também como programas e recursos públicos. Acuados pela conjuntura, ainda não nos demos à crítica e à autocrítica... Nós, cristãos na política, porém, já não temos porque não nos perguntar como aí nos portamos. Fica a impressão que também concedemos, em nome da realpolitik, pouco afeita a utopias, o que levou a perder incidência a ético-política que o Evangelho exige incondicionalmente.
Os ganhos sociais do lulapetismo – como designam alguns críticos – reais e importantes, sem dúvida, mas relativos, funcionais e compósitos com a coalização político-econômica, em que o capital concede porque mais ganha, parece que também a nós nos seduziram ou a contragosto aceitamos. Ao ruir o esquema, dada a crise econômico-geopolítica global – que derrubaram as exportações e commodities agrícolas e minerais em que se baseava afinal o “sucesso” do arranjo governista – e a eficiente manipulação da mídia empresarial, tais ganhos se tornaram em perdas e insatisfações populares. Resposta de beneficiados assistenciais e não de trabalhadores cidadãos conscientes de direitos, de quem e para o que se acreditava o PT dos primórdios.
Durante o encontro, nenhuma autocrítica foi feita. É de se estranhar, uma vez que são em momentos como esse que abrimos portas ou janelas para enxergar o velho e semear o novo. Nosso passado recente nos compele a pensar o Estado e os governos que queremos. Acreditamos que os governos petistas resolveriam nossos problemas? Aprendemos, decepcionados, a mais querer autogovernos? É por aí? Como? A fé cega é ineficiente. É momento de repensar o sal e o fermento e a massa (cfr. Mateus 5,13-14). No último Congresso da CPT, marcado pela “Memória, Rebeldia e Esperança dos pobres da terra”, realizado em Rondônia, em julho de 2015, um camponês falou e disse: "Nossas sementes são as comunidades. As lideranças transgênicas estão acabando com as comunidades”. Será que nesses anos de caminhada, não colaboramos de diversas formas para a emergência de lideranças “transgênicas”? E o que seriam hoje as “crioulas” ou “nativas”? Em vista da mesa farta e sadia do Reino que há de vir, mas já está no meio de nós (Lucas 17, 20-21).
O afastamento da Presidenta Dilma se deu pelos acertos e, também, pelos equívocos que os governos petistas cometeram ao longo de seus mandatos. Acreditar na aliança de classes, fazer para os pobres ao invés de fazer com eles e elas, conter e não potencializar a organização, a mobilização e a autonomização da base popular, priorizar o campo institucional como principal arena na luta política, não democratizar a terra, a mídia e o poder... foram alguns destes equívocos (opções deliberadas?). Se quisermos semear esperança temos que, no mínimo, refletir criticamente sobre nossas práticas nos espaços em que atuamos e nas alianças que fazemos, com quem e para que fazemos.
Aparece, então, neste momento – e o X Encontro não fugiu à regra –, como única saída, imposta sem mais a todos e todas de esquerda, a defesa do mandato da presidenta. Defesa do que mesmo? Da democracia, claro, ainda que eleitoral e viciada, mas na crença de que por ora é a possível e provisória. Mas também da volta do mesmo? Não há como não admitir que houve um “estelionato eleitoral” nas últimas eleições, o que não é motivo suficiente para impedimento da presidenta, mas é inaceitável para nós que não votamos no programa do adversário e querermos democracia substantiva, com efetiva participação e incidência popular. Um “estelionato” que já vinha acontecendo e ao qual já devíamos, nós cristãos de fé e política, ter reagido com mais coragem e ousadia. Ou conformar-se com ou mesmo compor (e agora recompor) o projeto governista do PT era (é) o único que fazer? Em vista do que mesmo depois?
Diante deste quadro – de tanta complexidade, aqui rapidamente traçado – desejávamos que, pelas virtudes do Evangelho e da militância que por ele se pauta, o X Encontro Nacional Fé e Política, ainda que impactado pela conjuntura imediata, ousasse olhar e propor mais à frente e a fundo, almejando transformação das estruturas, não mudanças consentidas, a retardar o substancialmente novo. O povo de novo sujeito, não objeto ou cliente. Com opção decidida pela retomada do trabalho de base – a exemplo da época originária do PT – e pela construção da autonomia política real dos grupos, comunidades, setores e classes populares. Além de querer que Jesus estivesse aqui (onde ele estava?) para nos ajudar a deter um golpe que já vinha sendo dado...
O trabalhador Luiz Batista Borges “ao levantar-se juntamente com outros milhares para reivindicar a terra em Santa Helena de Goiás, GO, acabou preso. Acusam-no de fazer parte de uma organização criminosa. É a primeira vez que imputam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de tal denominação”. Confira o Artigo:
(Por Patrick Mariano*)
O trabalhador rural Luiz Batista Borges é mais um daqueles homens dos quais talvez nunca soubéssemos da existência, pois excluído da sociedade de consumo, logo seria invisibilizado não fosse a sua decisão de levantar-se do chão, como um personagem alentejano de Saramago, para exigir política pública de reforma agrária.
Foi a Constituição da República quem disse para Luiz que o Brasil deveria ser uma sociedade livre, justa e solidária, que a propriedade deveria cumprir sua função social e que a dignidade da pessoa humana deveria estar no centro das decisões políticas. Levantou-se, portanto, para exigir nada mais do que aquilo que lhe prometeram. Nada mais.
E, ao levantar-se juntamente com outros milhares para reivindicar a terra em Santa Helena de Goiás/GO, acabou preso. Acusam-no de fazer parte de uma organização criminosa. É a primeira vez que imputam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de tal denominação.
Apesar de uma farta jurisprudência do STJ, STF e Tribunais de Justiça no sentido de que a luta do MST é um exercício de cidadania e que não há, portanto, que se confundir com crime, - ainda mais em um país em que grassa a desigualdade na distribuição da terra e da riqueza - a prisão de Luiz abre um perigoso precedente para as lutas sociais no Brasil.
Embora seja uma novidade a tentativa de enquadrar a luta do MST como organização criminosa, já nas manifestações de junho de 2013 este instrumento repressivo foi utilizado para conter lutas sociais.
A Anistia Internacional elaborou um relatório[1] crítico das instituições do sistema de justiça brasileiro e afirmou que_ “pessoas que nunca antes haviam se encontrado, mas que foram detidas na mesma manifestação, de modo impróprio, passaram a ser investigadas formalmente com base nessa lei, por supostamente integrarem uma organização criminosa"._
A organização fala em “mau uso das leis”, mas aqui vale o ensinamento de Marcelo Semer quando diz que você pode escolher entrar num estado policial, mas não pode escolher sair dele. O “mau uso”
ou o uso seletivo é a própria tônica do direito penal em uma sociedade de classes. De fato, a ampliação do estado policial e a entrada no ordenamento jurídico de leis como a das organizações criminosas e do terrorismo foi uma opção política que forneceu instrumentos repressivos de controle e contenção das lutas sociais.
Outro relatório, o da Comissão Nacional da Verdade, recomendou a revogação de leis que são frutos do estado autoritário, como a Lei de Segurança Nacional. O Brasil não só não o seguiu, como ampliou sua estrutura legislativa repressiva.
O erro político aqui é evidente. O discurso à época que seduziu o Poder Executivo foi o de que esta lei seria apenas para os grandes criminosos como Fernandinho Beira-Mar e não seria aplicada aos pobres.
Baseado numa visão torpe de um “republicanismo” enviesado, se permitiu soltar, ao invés de reduzir entulhos autoritários, mais um monstro punitivista.
Para voltar ao trabalhador rural, principal objeto deste artigo, é preciso sempre lembrar a frase de um camponês de El Salvador, referida por José Jesus de La Torre Rangel: “A lei é como a serpente; só pica os descalços”. Apesar de certa ingenuidade em setores da centro-esquerda com relação ao direito penal, está cada vez mais evidente que ele tem alvo certo e inequívoco.
A tentativa de criminalização do Movimento Sem Terra de Goiás com base na lei das organizações criminosas deve ser repudiada e combatida. Assim como sua aplicação a integrantes de movimentos ou ativistas dos centros urbanos.
Parlamentares e juristas, preocupados com o uso da lei de organização criminosa contra os movimentos sociais já articulam uma moção de solidariedade a Luiz Batista e de repúdio à criminalização do protesto.
Em tempos de retomada do neoliberalismo no Brasil, o uso de instrumentos repressivos contra organizações e movimentos será a tônica. A luta social, para esta visão de mundo, é caso de polícia.
Oxalá o Tribunal de Justiça de Goiás não aceite o teratológico enquadramento dos trabalhadores rurais sem terra como organização criminosa. Assim, os trabalhadores rurais poderão seguir sua sina de lutar pela terra e tentar amenizar as desigualdades sociais no sertão onde campeia a injustiça histórica. A mesma injustiça da qual foram acometidos os Mau-Tempo do romance português.
E a reforma agrária que esses trabalhadores tanto sonham e que a tanto tempo os faz caminhar pelos sertões e veredas desse país é uma promessa da Constituição da República de 1988 ainda não cumprida, como ainda não realizadas tantas outras.
Quem sabe Luiz Batista ainda possa realizar o sonho de morrer de bem com a sua própria terra, e plantar a cana, o inhame e a abóbora onde só vento se semeava outrora. Por enquanto, sem liberdade, resta esperar por justiça. E o verbo esperar tem sido a sentença da sua própria vida.
Patrick Mariano é escritor. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando.
Em Artigo, Roberto Malvezzi, conhecido como Gogó, analisa o governo federal interino e os retrocessos que chegam consigo no Semiárido. Confira:
(Por Roberto Malvezzi, Gogó)
Vários retrocessos vieram junto com o governo interino desde o primeiro dia. Um ministério do tempo do Brasil Império – só homens de bens e brancos, sem negros, mulheres e indígenas -, o anúncio do corte na saúde, na educação, encolhimento do SUS, desvinculação do salário dos aposentados em relação ao salário mínimo, eliminação do MINC, daí prá frente.
Dentre esses retrocessos, os que mais impactam o Semiárido são o da educação, saúde e a desvinculação do salário mínimo, do qual dependem aproximadamente 100 milhões de brasileiros.
Porém, há retrocessos que o Brasil em geral não vê, a não ser nós que moramos por aqui, na busca de vida melhor para a população nordestina que sempre esteve à margem dos avanços brasileiros.
O paradigma da “convivência com o Semiárido” ganhou carne com os programas “Um Milhão de Cisternas” (P1MC) e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da ASA [Articulação Semiárido Brasileiro]. O primeiro visando a captação da água de chuva para beber e o segundo para produzir.
Em aproximadamente 15 anos, um milhão de famílias recebeu a cisterna para beber e cerca de 160 mil famílias uma segunda tecnologia para produzir. É lindo, até emocionante, quando em plena seca vemos espaços tomados de verde com hortaliças ao redor de uma cisterna de produção. Essas tecnologias ainda teriam que ser replicadas ao milhões para garantir a água para beber e produzir, ofertada gratuitamente pelo ciclo das chuvas.
Junto com esses programas veio a expansão da infraestrutura social da energia, adutoras simples, telefonia, internet, melhoria nas habitações rurais, estradas, etc.
A valorização do salário mínimo e o Bolsa Família injetaram dinheiro vivo nos pequenos municípios, movimentando o comércio local, o maior beneficiário desses programas.
Houve também contradições profundas, como a opção pela mega obra da Transposição de Águas do São Francisco ao contrário de adutoras simples e a implantação das cisternas de plástico por Dilma no seu último governo. Além do mais, ela estava encerrando o programa de cisternas para beber, alegando que já tinha atingido o número de famílias necessitadas.
Detalhe, o ministro para o qual ela liberou as cisternas de plástico, orientou o filho para votar contra ela na Câmara dos Deputados e agora ele é ministro das Minas e Energia.
Mas, esse avanço pressupôs a organização da sociedade civil articulada na ASA e a chegada ao poder de governos estaduais menos coronelísticos e corruptos. Sobretudo, supôs o apoio do governo federal a esses programas da sociedade civil.
Acabou. Se perguntarem ao atual presidente onde fica o Semiárido Brasileiro, é provável que ele diga que fica no Marrocos. Como não tem base na região, vai entrar pelas mãos dos velhos coronéis ou de seus descentes.
Não é possível destruir a infraestrutura construída. Ela tornou o Semiárido melhor, sem fome, sem sede, sem migrações, sem mortalidade infantil. Mas, há muito ainda a ser construído para não haver mais retorno ao ponto da miséria. Uma delas é a geração de energia solar de forma descentralizada, a partir das casas. Dilma não quis dar esse passo.
Os velhos problemas poderão voltar? No que depender das políticas públicas federais, sem dúvida nenhuma. Quem está no poder não enxerga o Semiárido.
Tempos estranhos, quando setores da sociedade brasileira preferem retroceder aos tempos da miséria total e parte da população se alegrar com esses retrocessos.
“Nossos líderes não são mortos, mas plantados, e nós somos os frutos, continuando a luta”, afirmou uma das lideranças indígenas presente no “Encontro de Articulação das Pastorais e Povos do Campo”, realizado na semana passada no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO).
(texto Egon Heck e fotos Laila – CIMI – Secretariado Nacional)
Vários depoimentos de outras lideranças expressaram os mesmos sentimentos. “Estamos rodeados de jagunços... vivemos ameaçados... a qualquer momento podemos ser mortos”.
Num momento de profunda crise e incertezas, foi muito importante refletir e traçar estratégias de luta para evitar retrocessos nos direitos das comunidades e povos tradicionais, como os povos indígenas, quilombolas, pescadores, migrantes, dentre outros.
Ao analisar a conjuntura, a partir de cada segmento social e do conjunto das populações no campo, percebeu-se a importância de uma manifestação conjunta. No documento foram expressos os temores e compromissos dos membros das Pastorais do Campo e representantes dos povos e comunidades que vivem e lutam na terra e pela terra. “não podemos permitir que as conquistas democráticas e que os direitos civis, políticos e sociais sejam mais uma vez afrontados pela força da intolerância, do conservadorismo e da violência, física e/ou institucional... gerando um clima de instabilidade, violência e medo”. (Carta Aberta e Defesa da Democracia Brasileira). [Acesse aqui na íntegra]
Apesar das apreensões que vinham das ruas e dos corações de milhões de brasileiros, os trabalhos fluíram com a serenidade e indignação necessárias, para fazer avançar a construção de um novo projeto para o país, onde sejam respeitadas e valorizadas as diversidades culturais, as sabedorias seculares, as formas de viver e conviver com a natureza e todas as formas de vida, com justiça social e dignidade.
Nesta caminhada são fundamentais os processos formativos de militantes e lutadores, animados e impulsionados por uma espiritualidade e mística que ajude a enfrentar os interesses e poderes responsáveis por tanto sofrimento e violência. Os povos e comunidades tradicionais têm sido permanentemente espoliados de seus direitos de viver na e da terra, em paz e harmonia. Foram e continuam sendo pressionados e expulsos da terra pelo avanço do agronegócio e dos grandes projetos de mineração, hidrelétricas rodovias, hidrovias e outros tantos projetos do grande capital.
Xô Matopiba
Um dos temas analisados foi o ameaçador Plano de Desenvolvimento Matopiba o qual se insere na lógica desenvolvimentista e que põe em risco o que resta do bioma Cerrado, pois é o carro chefe da política do agronegócio implementado pela atual ministra da Agricultura, Kátia Abreu. É considerada a última fronteira agrícola do país. É neste bioma em que vivem mais de 20 milhões de pessoas, sendo uma das regiões de proporcionalmente maior população vivendo no interior. Portanto toda essa população, e com maior intensidade as populações tradicionais, povos indígenas, quilombolas, pescadores, camponeses e todos os que vivem da terra estarão fatalmente impactados e sua sobrevivência no cerrado, ameaçada.
Estudos mostram que “se toda essa devastação continuar no Cerrado terá fim o bioma e as principais fontes de água do Brasil e da América do Sul” (Manifesto dos Povos do Cerrado no Dia Mundial da Água). No mesmo documento os povos do cerrado exigem o “reconhecimento do Cerrado como Patrimônio Nacional, com aprovação da Lei 504/2010... é importante que o governo federal garanta a demarcação dos Territórios Indígenas, regularização e titulação das terras dos Quilombolas, Geraizeiros, Retireiros, Ribeirinhos, Pescadores, Vazanteiros e o assentamento dos Sem Terra”.
O grito das águas
Recentemente ouvi o clamor dramático de aldeias indígenas passando sede ou sendo obrigados a ingerir águas contaminadas pelas monoculturas do agronegócio. É cruel assistirmos cenas de sede num dos países de maior volume de água doce do planeta. O que parecia inimaginável até pouco tempo, já estamos presenciando.
“O Cerrado, berço das águas, não só está ameaçado, como tem sido assassinado dia após dia. E se ele for extinto levará consigo a água que chega às torneiras, usada para beber, banhar, cozinhar, molhar as plantações, dar de beber aos animais...”. O manifesto dos Povos do Cerrado propõe que “a proteção das águas tinha que ser questão de segurança nacional, por que se o Cerrado for extinto, leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água” (Altair Sales).
Tempos de mobilizar a esperança, articular sonhos, ampliar a união e alianças, indignar-se invocar nossos mártires e guerreiros para a grande luta pela Vida.
Quando as chuvas são abundantes após anos de seca, como no início deste ano 2016, diante de um rio transbordando ou de uma cachoeira borbulhando, com os olhos que se enchem de alegria, muitos dizem, apontando para o céu: “Tá vendo? Deus no comando!”. Perguntamos ao nosso companheiro da CPT, Roberto Malvezzi – Gogó, como você interpreta esse “Deus no comando”? Abrindo um sorrisinho inicialmente tímido, ele nos respondeu assim.
(Fonte: CPT Bahia/Por Roberto Malvezzi – Gogó)
Talvez levemos ainda algumas décadas para termos uma visão mais completa e respeitosa do ciclo das águas brasileiras.
Na escola aprendíamos um ciclo esquemático, das águas que evaporam nos oceanos, são empurradas em forma de vapor para os continentes, que caem na forma líquida ou sólida, cuja parte penetrará no chão e formará os aquíferos, outra evaporará, outra escorrerá para os oceanos ou outros corpos d’água de superfície. Mas, como é que o ciclo se faz realmente de lugar para lugar?
Quando não tínhamos a ciência tudo era explicado de forma religiosa, nas mais variadas formas das mais variadas religiões. Havia ali uma intuição, uma sabedoria, mas não a explicação objetiva da ciência.
As chuvas que caíram sobre o Semiárido Brasileiro, particularmente no mês desse janeiro último (2016), mais uma vez foram atribuídas a Deus por nossa gente. Afinal, vínhamos de uma longa seca, chovendo cada vez menos há vários anos. Nossos reservatórios estavam secos, principalmente pequenos e médios, sobrando pouca água nos grandes reservatórios.
Quando a situação assim se apresenta, não há como repor as águas a não ser pelo ciclo das chuvas. Portanto, a primeira arrogância a ser destronada é que não podemos depender do ciclo das chuvas. Todas as reposições dependem dele. Se não houver as chuvas, qualquer região do mundo se transforma em deserto, a não ser algumas margens de rios que se originam onde chove.
Esse é o problema mais grave do ciclo das águas brasileiras. Alguns cientistas como Antônio Nobre do INPE, Prof. Altair Sales da PUC/Goiânia e José Alves da UNIVASF, apresentam elementos fortes que estamos “arrebentando” com o ciclo milenar de nossas águas.
Como? Destruindo a floresta amazônica, na qual se origina grande parte do vapor de águas que vai cair em grande parte do território nacional e até na Patagônia. Elas viajam em forma de vapor d’água, como verdadeiros rios voadores, e vão cair longe de seu lugar de origem. Portanto, destruindo a Amazônia, estaremos destruindo a origem de grande parte de nossas águas.
Segundo, o desmatamento do Cerrado, nossa caixa d’água, que armazenava as águas vindas da Amazônia e depois as distribuía para as várias bacias brasileiras com origem no Cerrado. Todos os rios oriundos do Cerrado estão minguando. Um deles é o Rio São Francisco.
Assim, não estamos apenas saindo de um novo ciclo de seca, normal, principalmente na região Semiárida. Nossa dúvida é o que vai restar do ciclo de nossas águas e qual o impacto que essas mudanças terão sobre todo o ambiente, inclusive o humano.
Por isso, mais que nunca a pertinência de nossas lutas em defesa da Floresta Amazônica, do Cerrado, da Caatinga, de todos os biomas. Sem árvores não há água.
Também, continuemos nosso esforço pela cultura da “gota d’água”, aproveitando e reutilizando-a minuciosamente, com todo cuidado de uma fêmea sobre suas crias. Sem uma nova cultura da água não teremos um futuro úmido.
Em Artigo, Roberto Malvezzi, o Gogó, reflete, principalmente, sobre a escassez quantitativa e qualitativa de nossas águas. “Além de estarmos provocando a escassez quantitativa, estamos provocando a escassez qualitativa, isto é, os mananciais estão diante dos nossos olhos – Pinheiros e Tietê em São Paulo -, mas suas águas são imprestáveis para qualquer tipo de uso”. Confira na íntegra:
Quando Pero Vaz de Caminha chegou ao litoral brasileiro, além da admiração pelos índios e índias, pela exuberância da floresta litorânea, ele fica deslumbrado com a quantidade de águas. Vai escrever ao rei: “águas são muitas; infinitas. Em tal maneira graciosa (a terra) que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!”. Frase que depois, falsificada, fica reduzida a “nesse país em se plantando tudo dá”.
Quando o Brasil elaborou seu Primeiro Plano Nacional de Recursos Hídricos, participei com poucas pessoas do Nordeste para inserir no Plano a captação da água de chuva. Juntando várias fontes o Plano concluía que temos aproximadamente 13,8% das águas doces mundiais em território brasileiro.
Temos a maior malha de bacias hidrográficas do planeta, além do que somos o único país do mundo de dimensões continentais que tem chuva em todo território nacional. Outros países como China, Estados Unidos e Austrália têm imensos desertos em seus territórios.
Os dois maiores aquíferos do mundo estão em grande parte em território brasileiro, como o Alter do Chão na Amazônia e Aquífero Guarani que abrange regiões do Sul e Sudeste, além de outros países do cone sul.
Ainda mais, os rios voadores que saem da Amazônia chegam até Buenos Aires – para outros até à Patagônia – e são os responsáveis pelas chuvas que caem em todo esse vasto território da América Latina.
Nem mesmo a propalada diferença de quantidade de água de região para região pode ser alegada como problema. O Semiárido, com um milhão de quilômetros quadrados, com uma média de 700 mm/ano, tem capacidade instalada para armazenar apenas 36 dos 700 bilhões de m³ que caem sobre esse território todos os anos.
Onde está, então, nosso problema? Exatamente na abundância, nos ensinava o já falecido Prof. Aldo Rebouças. Ela nos tornou perdulários e, junto com a cultura predadora construída desde a fundação do Brasil, passamos a maltratar as nossas águas.
Aos poucos estamos perdendo não só a abundância pela destruição do ciclo de nossas águas – desmatamento da Amazônia e do Cerrado -, mas transformando nossos corpos d’água em depósitos de esgotos e de lixo. São as mineradoras – vide Samarco -, dejetos industriais, domésticos, hospitalares, agrícolas e resíduos sólidos como lixo doméstico e restos de construções. Basta olhar para o rio São Francisco.
Dessa forma, além de estarmos provocando a escassez quantitativa, estamos provocando a escassez qualitativa, isto é, os mananciais estão diante dos nossos olhos – Pinheiros e Tietê em São Paulo -, mas suas águas são imprestáveis para qualquer tipo de uso.
Nesse sentido, mais uma vez, a importância da Campanha da Fraternidade (CF) sobre o saneamento básico. Ao coletar e tratar os esgotos, manejar adequadamente os resíduos sólidos, estaremos dando a maior contribuição para superar a escassez qualitativa de nossas águas.
Alerta: cientistas e juristas que estiveram na elaboração do conteúdo do Texto Base da CF, nos alertam que o governo está focando a luta contra as doenças em evidência no combate ao mosquito, desviando o foco do fundamento básico do saneamento.