Se ferozmente o capital e sua gula continuam tentando calar os que lutam, o povo também, teimosamente, continua com pés firmes no caminhar da resistência. Tem gente organizada em todo canto: acampamento, ocupação, estradas paradas, gritos altos dizendo ‘não’. Tem movimento, poesia, música e toda criatividade que se possa imaginar. É a prática social de resistência do povo que toma nas experiências acumuladas o ânimo para seguir e deixam para as que virão o seu legado. A luta, quando entendida, assimilada e incorporada passa a ser parte fundamental daquilo que nos compõe.
(Por Coletivo de Mulheres do MAB | Imagem: Joka Madruga)
Nisso, o mundo novo vai virando uma grande casa a ser construída. Os que chegam começam a aprender a preparar a massa e logo, logo já posicionam os seus tijolos. A casa começa a ganhar forma, e é casa coletiva, onde cada tijolo é parte fundamental. Às vezes é preciso ir mais devagar, a preparação vai mal e o trabalho tende a ser mais difícil. Mas tem horas que novos arquitetos dessa utopia chegam e já se reanima a empreitada. É trabalho árduo, duro, alvo de muitos ataques. A braveza de nosso inimigo é por vezes cruel e parece nos derrubar, mas quando tudo aparenta estar destruído, resistente permanece a base de nossa casa-vida, e lá se voltam os joão-de-barro ao trabalho doloroso, mas bonito, que é continuar acreditando na justiça social.
Há muitos que no caminho dão sua vida na edificação dessa obra. Esses que se vão, na verdade nunca vão por completo, porque seus tijolos, ensinamentos e cada pedacinho dos seus sonhos coletivos, permanece. É oxigênio para os que chegam e para os que ainda virão.
Dessa gente que sonha, luta, vive e foi na vida operário fiel dessa empreitada, e pela força do tempo, do acaso ou pela própria ação feroz do nosso inimigo, acabam nos deixando, fica muito mais do que a saudade, a dor e o desespero. O povo que sofre e resiste sabe, desde muito tempo, que quando perdemos quem luta, o que fica é a lembrança companheira, que é movimento e esperança, é a memória que é resistência, de continuar marchando pelo Novo Mundo, de fazer valer a luta dos que se foram antes de nós, dos que dão sua vida por sonhos coletivos.
É assim a história que ouvi falar de uma mulher e um rio.
Nilce de Souza, a mulher. Madeira, o rio. Ela não era uma mulher fora do comum, era mesmo como a gente, que é mãe, avó, lava roupa, arruma a casa, cuida dos filhos, do marido, anda de bicicleta, chora, se cansa, faz de um tudo, sonha aos montes, vai à luta, é militante. Ele, o rio, era fartura, riqueza muita, mundaréu de peixe, vegetação nativa, correnteza mansa, mas brava também, açaizeiro, castanheira, cupuaçu, beira-rio de riqueza, muita gente ao seu entorno.
A mulher tinha cinquenta e tantos anos – meio século de vida. O rio, muito mais. Mas os dois tinham uma ligação de muito tempo. Nicinha nasceu beirando rio, viveu nele a vida toda. Pescadora que era, entendia seus quereres, suas águas mansas e violentas, a época da piracema, os gostos do rio, entendia dele como entende de qualquer membro do seu próprio corpo, como entende dos entes queridos, como entende da vida.
Um rio para quem nele nasce, vive e pesca, é como se fosse uma entidade, parte de si, parte de tudo que tem significado. É dele, que não só Nilce, mas toda gente dali tira o seu sustento, nas suas margens constroem sua história feita de risos e lágrimas. Da mulher e do rio que contamos, há algo em comum aos dois, além da ligação longínqua: foram atingidos por barragens.
As usinas Jirau e Santo Antônio, dos consórcios Energia Sustentável do Brasil e Santo Antônio Energia, respectivamente, não represaram somente o Rio Madeira em Rondônia, mas também construíram barreiras às gentes que existiam ali e às histórias vividas e construídas por esse povo.
O estrago foi grande, destruição para todo lado, alagamento, inundação, o rio morto, a vegetação também, a meninada nas ruas, nas drogas, na prostituição, as moças pegaram bucho, os pais das crianças são barrageiros sem destino, logo as abandonaram, as casas foram tomadas por água, a terra foi-se junto. Arrebentaram-se todas as redes: as de pesca e as da vida. Mas o povo não é de aguentar calado tanta injustiça. Mesmo que o poderio político, econômico, jurídico e midiático dos barões da energia seja grande, o esperneio do povo não para, a luta aumenta e se fortalece, reacende-se a chama: os atingidos não abrem mão dos seus direitos.
Em Velha Mutum Paraná, novo local de morada de Nicinha, após sua comunidade antiga ter sido atingida, o sol é quente, 37 pescadores, condições de sobrevivência mínimas. Gente que ganhava bem e tinha trabalho diário e pescado farto. Hoje não! A Usina tirou tudo, só não tiram, de nenhum modo, os sonhos e a vontade cada vez maior de lutar. E é lá onde Nicinha esteve, lá sua militância, lá seu barraco, lá sua busca por sustento e sobrevivência, lá os rastros de uma vida nova que ela não pediu, que a ela não interessava.
Mas danada que era, desbocada, risonha e esperançosa, construiu-se na luta, na resistência ribeirinha, contra as injustiças de que nosso povo nas barrancas do rio, na cidade, em cada canto desse mundo, continua sendo alvo.
Uma mulher. Pescadora, filha do rio, nasceu lá dentro, tinha profundidade no olhar, e não só nele, mas na fala, no riso, no sentimento e na revolta também, revolta contra o que fizeram o rio transformar-se.
Uma mulher. Resistência-Amazônia. Resistência ribeirinha. Resistência feminina. Um corpo encontrado no rio. Pés, mãos amarradas, pedras e nós para nos segurar. Chorou o rio Madeira, que corre bravamente, como se a correnteza brava procurasse a filha que perdeu. São histórias submersas, relatos de uma guerra. Mas um corpo que luta pelo rio e pela sua gente, torna-se também correnteza de esperança, o rio guarda as histórias de resistência de seu povo, não esse rio morto, barrado, mas o seu rio, Nicinha, o rio do mundaréu de peixe, da fartura e da beleza. Porque já sabe toda nossa gente: Usina não é rio. Usina é indústria. E como toda indústria nesse sistema, serve apenas para dar lucro a alguns.
A luta prossegue em Rondônia. Perder uma operária fiel na construção da casa, que é o Novo Mundo, não é fácil. Mas os atingidos resistem, ocupam novas terras, fecham estradas. Ao novo acampamento deram o nome de Nicinha, ela está presente, nos cartazes que pedem justiça, na Arpillera bordada pelas mulheres companheiras, nas memórias bonitas do nosso povo, se mistura ao balançar da bandeira, aos gritos de resistência, na saudade doída e fatigada, mas ao mesmo tempo cheia de esperança de que a luta, por mais difícil que seja, vale a pena.
É bem verdade que os que vão sempre deixam mais do que levam. As sementes plantadas por eles germinam e logo dão novos e bons frutos. Isso nos ajuda a lembrar que resistir é costume antigo de nossa gente. Por mais duro que seja essa lida, o que mantém a marcha viva até hoje é essa mania que o povo tem de transformar a dor em luta, feito arte de continuar acreditando em uma nova sociedade, onde os sonhos não custarão nossas vidas e a luta não se manchará de sangue.
“Nesse momento triste”, Francisco manda seu recado ao povo brasileiro. Ele sabe exatamente o que se passa. Suas palavras são para o povo, apenas para o povo. Elas foram dirigidas às duzentas pessoas que acompanhavam a colocação de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida nos jardins do Vaticano:
(Por Roberto Malvezzi – Gogó)
“Convido-vos a rezar para todo o povo brasileiro, neste momento triste, para vigiar os pobres, os rejeitados, os abandonados, crianças, idosos, moradores de rua, para vigiar os descartados que estão nas mãos dos exploradores de todos os tipos, para salvar seu povo com justiça social e no amor de Jesus Cristo, seu Filho”.
O homem que lançou a Laudato Si é contra a sociedade escravizada pela técnica e dirigida para o mercado. Para Francisco tudo tem que ser dirigido para o bem das pessoas e de toda a comunidade da vida, incluindo as mais simples formas de vida existentes.
Ele é homem que propõe aos movimentos sociais do mundo inteiro o mínimo de ter “um teto, uma terra, um trabalho”. Já disse claramente que as mudanças que a humanidade precisa “só podem vir dos debaixo”. Portanto, não espera nada dos mercados, dos donos do mundo.
O argentino é, obviamente, um latino-americano. Os argentinos com os quais convivi por anos numa equipe de “Terra, Água e Meio Ambiente” do Conselho Episcopal Latino-americano (Monsenhor Lozano e Frei Eduardo Agosta), já contavam da vida desse homem, perambulando pelas periferias de Buenos Aires, visitando as “Villas”, formando padres para estar com essas populações mais excluídas.
Portanto, os usurpadores do poder do Brasil não precisam interpretar o que Francisco disse. A única dúvida é se ele está desistindo de vir ao Brasil no ano que vem – trezentos anos de N. S. Aparecida – em função do golpe instalado. Porém, o momento triste é do povo brasileiro. Os golpistas estão felizes, ao menos por hora, e se lixando para o Papa. Ao menos por hora.
*Imagem: Reuters
Confira artigo da atriz Letícia Sabatella e de Roberto Malvezzi, o Gogó, sobre a conjuntura política atual, a consumação do golpe e o que esperar de Michel Temer.
Leticia Sabatella / Roberto Malvezzi*
O Golpe se consuma.
E a herança mais amaldiçoada que o governo com Dilma deixará para o povo brasileiro é exatamente seu sucessor, Michel Temer.
Recuaremos duzentos anos na história. Um governo de homens pálidos, hipócritas, ricos e obsoletos.
É a volta ao Império, à política do café-com-leite, governo dos paulistas da Paulista com alguns capachos espalhados pelo Brasil. O pior é para o povo. O congelamento dos investimentos em saúde, educação e saneamento por vinte anos vai gestar uma geração de analfabetos, de insalubridade permanente e até de cadáveres pelas portas de hospitais. Nenhum serviço público de qualidade sobreviverá com esta política.
Se com Dilma no governo o futuro dos bens naturais do país, das nossas tribos indígenas, quilombolas, já era preocupante, com Temer não há mais sombras, é tenebroso: é para devastar, saquear e entregar.
Eles riem e podem rir. O povo está sendo inundado de informações falsas ou duvidosas e alijado das decisões. Essas decisões foram articuladas dentro dos conchavos e ligações do Congresso, referendadas pela conivência do judiciário e divulgadas pela mídia corporativa. Esse sentimento de impotência e irrelevância do voto se abateu sobre grande parte do povo brasileiro.
Não esperem que esses políticos golpistas temam pela história, porque eles não têm história. Não esperem que eles temam por suas biografias, porque eles não têm biografia. Não esperem que se sintam envergonhados, porque não se tira a vergonha de onde ela não existe. Existe o poder e eles estão no poder.
A ignorância toma o poder de salto alto, sem argumentos legítimos e a arrogância é seu veículo de disseminação.
Mas, a melhor herança de Dilma também ficará. A dignidade tem um rosto e um nome neste país. Sua coragem, convicção e a observação ampla de que somente o povo e o voto popular podem consertar as injustiças deste processo fraudado, são marcas deste momento. O enfrentamento de tanto ódio fomentado por distorções e manipulações, com garra e crescimento pessoal, é exemplar para muitas gerações futuras. Não vamos nos suicidar, nem renunciar ao que é justo, nem fugir da luta.
O resto só a história dirá.
* Atriz e assessor da CPT.
"O Brasil está namorando a ditadura há quase dois anos. O golpe é uma ditadura civil. Logo, a reação de Gilmar Mendes é porque a Lava Jato bateu à sua porta, não porque ele seja um defensor da democracia", confira artigo de Roberto Malvezzi, o Gogó.
Roberto Malvezzi (Gogó)
Quando a Lava Jato investigava só o PT – particularmente Lula e Dilma – era um sucesso, como se diz aqui pelo sertão.
Depois chegou à Câmara dos Deputados e ao Senado. Cunha reagiu, articulou seus 200 deputados, tão comprometidos quanto ele, e derrubou Dilma do poder.
Do mesmo modo, 45 senadores já estão comprometidos com a punhalada final porque tem o pescoço na corda da Lava Jato, ou o rabo preso nas empreiteiras, o que dá no mesmo.
Quando a mídia acusava levianamente, numa verdadeira execração pública, inúmeras pessoas, só porque eram ligadas ao governo anterior, as calúnias eram debitadas na conta do direito da livre expressão.
Porém, agora, a Lava Jato chegou ao Supremo Tribunal Federal, citando o ministro Dias Toffoli. Pode ser que a delação seja leviana, que a revista sem credibilidade mais uma vez esteja caluniando pessoas. Porém, o clima gelou.
Agora vem a acusação dos laivos autoritários do MP pelo ministro Gilmar e os perigos totalitários do que está em andamento no Brasil. A CNBB, quando examinou a proposta de lei anticorrupção do MP, percebeu logo os laivos autocráticos e autoritários e não embarcou na proposta. Nesses momentos de caça às bruxas, tudo parece ser válido.
Houve a tentativa de prender Lula, mas que se acabou numa sala de Congonhas. Uma das versões é que um coronel da aeronáutica se recusou em leva-lo preso à Curitiba.
Nos grampos vazados da conversa de Lula e Dilma por Moro, houve a tentativa de criar um clima hostil para “depor” Dilma naquele momento. Todos sabiam, menos Gilmar Mendes.
Portanto, o Brasil está namorando a ditadura há quase dois anos. O golpe é uma ditadura civil. Logo, a reação de Gilmar Mendes é porque a Lava Jato bateu à sua porta, não porque ele seja um defensor da democracia.
Portanto, os amantes dos regimes autoritários pensem bem, pois hoje a vítima é o outro, amanhã pode ser vocês.
Neste artigo, Roberto Malvezzi faz uma leitura crítica sobre a abordagem da novela “Velho Chico”. Confira:
(Por Roberto Malvezzi, Gogó | Imagem: Nascente do São Francisco/João Zinclar)
Quando surgiu a notícia que haveria uma novela chamada “Velho Chico”, nós por aqui ficamos de orelha em pé. Nossa pergunta era: que abordagem irão fazer do rio São Francisco? Depois os autores passaram por aqui – Edmara Barbosa e o filho Bruno -, conversaram com muita gente, inclusive comigo por umas cinco horas, e pareciam dispostos realmente a ouvir, a fazer uma novela que transparecesse a realidade do Velho Chico.
Tempos depois, por indicação de Letícia Sabatella, ainda fiz a oficina inaugural no Rio de Janeiro para atores, diretores e produtores.
Ali, no intervalo, fiquei surpreso com a procura de vários atores querendo informações, detalhes, do que poderiam fazer pela causa. Notei particularmente o interesse dos atores e atrizes nordestinos, muita gente jovem, como Lucy Alves, Irandhir Santos, mas também Domingos Montagner, Marcelo Serrado, Rodrigo Lombardi, além da própria Letícia.
O detalhe é que, na fala de seus personagens, eles podem colocar uma palavra, uma frase por decisão própria. É nesse momento que as informações precisas são fundamentais.
Depois do processo de Impeachment fiquei com tamanha aversão ao jornalismo político da Globo – e da mídia corporativa em geral – que já não suporto ligar na emissora. Além do mais, a última novela que tinha visto na vida foi Roque Santeiro.
Entretanto, por respeito a esses autores, atores e atrizes, vez em quando vejo a novela.
Boas surpresas apareceram. Uma cena do pescador (José Dumont) derramando uma lágrima nas correntezas do Velho Chico foi uma das mais belas que vi. Boas discussões sobre o saneamento, o uso do veneno na irrigação, a tentativa de alargar o papel do São Francisco para o contexto do paradigma da Convivência com o Semiárido, são questões que não esperávamos aparecer.
Não seria honesto negar que esse conjunto de pessoas – incluindo o diretor, Luiz Fernando – não estejam fazendo um esforço de trazer um quadro mais real do Velho Chico.
Um senão é a figura do coronel Afrânio. A transição do personagem não foi bem feita. Os coronéis modernos vestem Armani, andam de jatinho, tem apartamentos e mansões sofisticadas, dominam os meios de comunicação e sempre são ministros de Estado, senão eles, seus filhos. Mas, diante da expectativa, está melhor que o esperado.
Poderiam também ter incorporado a musicalidade nativa do São Francisco, particularmente a música Boato Ribeirinho, a expressão máxima da dramaticidade do Chico. Foi declamada uma vez por Yolanda – Christiane Torloni -, há uma bela música de Paulo Araújo (há um rio afogando em mim), além de outra de Geraldo Azevedo. A trilha sonora é belíssima, mas poderia ser mais nativa.
Os atores e atrizes – aí é o talento brasileiro – são excelentes em sua maioria.
Por fim, claro que uma novela é um folhetim. Não se pode esperar dela a profundidade de uma obra de arte. Porém, como diz uma jovem jornalista da CPT da Bahia, “não menosprezem a força dos folhetins”.
Artigo publicado no IHU-notícias no dia 19/07/2016 refere-se ao 10º Encontro Nacional de Fé e Política ao abordar a dificuldade de a esquerda assumir uma posição crítica em relação ao pragmatismo político dos governos Lula e Dilma.
(Por Pedro A. Ribeiro de Oliveira* | Imagem: Página Fé e Política)
Embora os seus autores só tenham tomado por mote a dramatização do episódio da reanimação de Lázaro (Jo, 11: 17-53), quando cada dupla fazia variações sobre a frase “Se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”, é certo que o problema existe. Também o painel inicial, dedicado à análise da conjuntura (O cenário que se desenha hoje) e a Nota pública só abordam o problema com muita cautela. (Cfr. http://fepolitica.org.br/category/textos-do-painel-e-grupos-tematicos/. Ao retomar aqui a questão, o faço a título pessoal e não como membro da Coordenação nacional, para esclarecer os propósitos do Movimento Fé e Política e para apontar um encaminhamento para essa reflexão.
Desde o 1º Encontro nacional, em Santo André-SP, em 2000, os Encontros têm dedicado espaço à análise da conjuntura. Isso inclui, evidentemente, a apreciação crítica das experiências petistas de governo municipais, estaduais e federal, embora não se possa falar propriamente de autocrítica porque nem todo participante do Movimento identifica-se com o PT. Como as e os militantes são incentivados a assumir cargo eletivo nos poderes executivo e legislativo, normalmente são evitadas críticas que venham a desanimá-los. Nossa prática tem sido a correção fraterna: falando com jeito, quem discorda de alguma posição ou atitude de outro deve deixar isso claro. Esse modo de agir tem permitido grande pluralismo de posições político-partidárias, desde que sejam respeitados os princípios da Ética e da nossa Carta de Princípios. Esse respeitoso diálogo entre diferentes posições políticas foi fundamental para o êxito dos Encontros durante os governos Lula e Dilma, quando havia membros do Movimento inclusive no núcleo do governo e outros membros em franca oposição pela esquerda.
No 10º Encontro, porém, foi menor essa abertura à crítica, devido ao fato de ter ocorrido na semana em que a Câmara ofereceu o vergonhoso espetáculo da votação favorável ao impeachment da Presidente Dilma. A exibição da politicagem que tem em Eduardo Cunha sua expressão mais acabada, e que infelizmente vai muito além dele e é acobertada por respeitadas figuras da República, criou um clima de tanta tristeza e dor, que não seria justo tocar nas feridas abertas em quem participava ou apoiava o governo comandado pelo PT. Era preciso cuidar da militância sofrida, e foi essa a opção que fizemos naquele momento, com resultados muito positivos. É preciso, agora, esperar as feridas se cicatrizarem para serenamente fazer a apreciação crítica do que foi a experiência do PT à frente do governo federal.
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No presente momento, reafirmamos nossa rejeição ao golpe do impeachment por sua ruptura do pacto constitucional de 1988, por reforçar o ajuste fiscal, por enfraquecer as políticas sociais, por atentar contra os direitos dos povos indígenas, por ferir os interesses nacionais e por vários outros motivos. Mas seja ou não triunfante o golpe, deveremos mais tarde refletir seriamente sobre a participação dos cristãos na experiência histórica do PT. De um modo ou de outro, grupos cristãos foram importantes na criação e na consolidação do PT e devemos tirar lições da história para não repeti-la.
Há que se considerar o messianismo próprio à nossa tradição religiosa, pois Cristo é o Messias. Esse viés histórico acarreta a dificuldade de lidar com as conquistas limitadas e provisórias que se pode realizar no interior do sistema capitalista: a promessa do Reinado de Deus na história humana com frequência nos faz desprezar as mediações possíveis em cada momento. Certas pessoas chegam ao extremo de colocar defeito em todas as realizações políticas, não validando qualquer experiência de gestão popular, sem prestar a devida atenção à correlação de forças sociais em conflito. É difícil encontrar o equilíbrio entre opções pragmáticas ou oportunistas, e opções políticas que mirem no horizonte o Reinado de Deus, mas tendo os pés no chão da história, realizem o possível. E sem culpabilizar-se por não alcançar a perfeição.
Há que se considerar, também, as mudanças ocorridas no campo religioso desde 1989, quando foi fundado o Movimento. Ele tornou-se cada vez mais uma rede de grupos, pastorais, projetos e iniciativas locais empreendidas por cristãos na luta pelo Reino de Deus, agora com a efetiva parceria das Escolas de Fé e Política e o Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara. Seus Encontros têm antes o caráter de fóruns de debate e reflexão do que espaço de tomada de posição conjunta frente à conjuntura. Hoje, talvez mais do que no momento de sua fundação, os Encontros nacionais e os grupos de Fé e Política devem ser espaço de partilha, formação e animação da espiritualidade política.
Enfim, diante das dificuldades da crise atual que atinge a todos nós, o Movimento Fé e Política vem desenvolvendo as propostas políticas, econômicas e culturais que têm como eixo a utopia ou sabedoria do Bem Viver. A isso se dedicaram os Grupos Temáticos realizados no 10º Encontro durante toda a tarde de sábado, sendo um momento muito bem avaliado pelos participantes. Ali foi possível avaliar autocriticamente nossa participação enquanto movimentos sociais e pastorais na perda do horizonte utópico, mas também nossa contribuição para as conquistas hoje ameaçadas pelo golpe. Para ir mais longe nessa reflexão, pensamos desde já em realizar um seminário de aprofundamento sobre o tema já em 2017.
Para concluir: percebemos que a crise atual é bem maior do que o golpe do impeachment. Nesta crise mundial de acumulação do capital, são os povos da periferia do sistema os que mais sofrem a opressão. Mas afirmamos que deles vem a proposta do Bem-viver, que poderá salvar a humanidade da catástrofe que se anuncia.
* Membro da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política