A Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP) surgiu em 1995 e possui integrantes em todas as regiões do País. A organização tem como objetivo dar suporte técnico, agilizar e otimizar a prestação da assessoria jurídica aos movimentos sociais “e resgatar a utopia da advocacia voltada para os interesses das causas populares”, afirma a Rede. Confira o artigo:
“A violência tem sido o soneto indissociável do latifúndio e da grilagem intocados na Amazônia Legal”. Confira artigo do advogado e professor de Direito em Rondônia, Afonso das Chagas, sobre os 10 assassinatos registrados até o momento em conflitos no campo no estado.
Afonso das Chagas*
A história de colonização do Estado de Rondônia, desde o início, conforme sustenta Octavio Ianni (IANNI, Otávio. Colonização e contra-reforma Agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979), caracteriza-se como contra reforma agrária, ou seja, em momento algum, desde o Programa de Integração Nacional (1970), da época dos militares, a Reforma Agrária foi tratada como política pública de Estado. A década de 1980 caracterizou-se, no recém-criado Estado de Rondônia, como um dos períodos mais sangrentos no que se refere à violência ligada à questão agrária. De lá para cá, infelizmente, a violência no campo, tem sido permanentemente associada à desorganização fundiária, a reconcentração da terra, a inércia do Órgão responsável pela Reforma agrária e ainda, de forma específica, à complacência da justiça frente ao tratamento da questão, com as variáveis da notória criminalização dos movimentos sociais e os equívocos no tratamento das terras públicas.
Recentemente criado, em 2009, o Programa Terra Legal, objetivava, ainda que retoricamente, resolver a questão da Terra Pública e do secular problema da grilagem em terras amazônicas. Com uma tarefa de regularizar mais de 67 milhões de hectares e seis anos depois, o Programa governamental não deu conta de resolver o caos fundiário na Amazônia. Em outro rumo, tem servido muito mais à “legalização” de grandes áreas de terras públicas irregularmente ocupadas (grilagem), do que promover uma justa distribuição fundiária na região.
Assim, a violência tem sido o soneto indissociável do latifúndio e da grilagem intocados na Amazônia Legal. Em Rondônia, pela análise preliminar dos dados da violência, compreende-se claramente, que esta violência é bem localizada na região onde a questão das terras públicas não foi resolvida (Região de Ariquemes, Machadinho d’Oeste e Buritis). Trata-se, ou de áreas irregularmente ocupadas por grandes especuladores imobiliários e áreas de antigas concessões de terras. Com a manutenção da pecuária, como fonte primária de produção de matéria-prima (carne e leite), esta região tende a uma reconcentração de terras e, sob as lacunas e equívocos de um Programa feito para “não funcionar”, a grilagem mantém-se como estratégia do latifúndio. E este latifúndio tem na violência sua alma-gêmea. A justiça estadual e federal, de forma generalizada, não compreende nem a questão agrária como uma questão social, nem a histórica questão dos bens públicos, no caso a terra pública, sua retomada e destinação, como uma questão a ser discutida e resolvida por esta instância. O grileiro, não raras vezes, é tratado como proprietário, o especulador imobiliário como legítimo destinatário de terras públicas e os movimentos sociais como vilões, invariavelmente.
A inicial vocação agrícola do Estado de Rondônia há duas décadas foi redefinida como vocação à pecuária. Isso demanda mais terra, aquece a grilagem e incentiva a especulação imobiliária. O Estado, como desde sempre, tem chegado sempre depois, e muitas vezes, apenas assumindo a legitimação do fato consumado. É mais de 13 milhões de cabeça de gado, o rebanho bovino, para uma população de aproximadamente 1,7 milhão de habitantes. O ciclo da pecuária ainda tem seu fôlego, mas a época da soja se aproxima. No Estado a cada ano avança a área de produção do grão, que já passa de 200 mil hectares, sobretudo avançando em região onde em regiões de pastagem degradada, o gado vai dando lugar à soja.
A frustação e o desencanto cada vez mais crescente quanto aos Programas e promessas governamentais (Programa de Regularização fundiária na Amazônia legal), a falta de oportunidades de trabalho nos núcleos urbanos (Em Rondônia o que mais emprega e gera renda no PIB é o setor de serviços), reanima as organizações e movimentos sociais no que se refere às ocupações de terras como instrumento legítimo de promover a distribuição de terras (sobretudo as públicas) e garantir meios de sobrevivência e dignidade aos camponeses.
Mas também a fragilidade dos movimentos sociais, a ausência de formação e debate político em sentido amplo da questão agrária, facilita também a procura por estes grupos de muitos que veem em tais movimentos a oportunidade da “terra fácil”, criando, por vezes, um ambiente de contendas internas, despreparo e, até, situações associadas a interesses particulares, terreno propício para especuladores imobiliários, madeireiros e, inclusive a reprodução da grilagem. Sem a compreensão política do processo, pode ocorrer, em certas situações, até a utilização da pretensa organização das pequenas posses por parte de grandes interesses.
Na região, onde ocorreu a maioria dos crimes, no Estado de Rondônia, o diagnóstico policial de qualquer assassinato ou tentativa de assassinato, localizado em área rural, possui destaque na cartilha militar como crime ligado aos sem terras. Mandantes, fazendeiros e grileiros nunca figuram no polo passivo desta relação jurídica. Os Inquéritos Policiais que investigam a morte dos trabalhadores são relegados ao esquecimento. Assim, uma vez mais, a questão agrária é tratada como questão de polícia e não de política. Assim, inclusive para a região onde ocorreu a maioria dos assassinatos, o esforço uníssono de governo e outras autoridades públicas têm clamado por patrulha rural ao invés de políticas públicas que resolvam a questão fundiária.
Historicamente, o Estado tem se feito presente indiretamente através de políticas equivocadas. O próprio Tribunal de Contas ao fiscalizar o Programa Terra legal constata o baixo índice de atingimento das metas, alertando inclusive para o fato de que, a maioria dos beneficiários não se enquadra nos critérios previstos do próprio programa. Dessa forma, a revisão do próprio programa é medida de necessidade indiscutível, e isso, a partir dos próprios resultados. Igualmente, nos poucos casos de retomada de terras públicas irregularmente ocupadas, por parte do programa, não encontra ressonância por parte da Justiça Federal que precisa legitimar a imissão na posse da União em tais áreas. Por último, se não houver um esforço concentrado e conjunto por parte dos Órgãos federais em uma estratégia de fiscalização e efetivação das medidas necessárias, objetivando uma “higienização” nos cartórios de registros de imóveis e outros setores governamentais, incluindo autarquias, a “legalização da grilagem” perdurará, perdurando igualmente a violência como instrumento de sustentação explícita destes esquemas de apropriação de terras públicas e especulação imobiliária.
A fim de romper com o império da impunidade do latifúndio, compete às próprias instâncias superiores do Judiciário uma força tarefa no sentido de acompanhar de perto e monitorar o funcionamento da Justiça no Estado de Rondônia.
*professor de Direito da Universidade Federal de Rondônia (Unir), já foi coordenador da CPT Rondônia e hoje é colaborador da Pastoral no estado.
“A Reforma Agrária seria e é um grande instrumento à disposição da classe política, dos governantes, que não a usam, pois dividir a fatia do lucro é algo inimaginável”. Confira artigo do advogado Marcelo Belarmino, ao analisar um caso do advogado da CPT no Tocantins, Silvano Lima, em que ele defende o direito de posseiros da região.
Marcelo Belarmino*
Antes de adentrarmos especificamente ao que fora proposto, é de bom conselho conceituar o que seja Estado Democrático de Direito e Reforma Agrária.
O Estado Democrático de Direito é uma condição de relacionamento político em que nenhum cidadão no país, está acima das determinações, ou seja, a lei é igual para todos, inclusive para quem a fez.
Independentemente do que diz a Constituição em seu Artigo 184 “que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos de dívidas agrária, com cláusula de preservação do valor real...”, o Estatuto da Terra “considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificação no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”.
Em dicotomia, forçoso é dizer que a Reforma Agrária só é justa se tivermos em primeiro plano o Estado Democrático de Direito, tendo leis justas, tribunais justos, juízes justos e decisões justas. Essa falta de Justiça tem sido um grande entrave para a distribuição de terras de forma equânime. As leis existem, são leis “modernas”, mas o que povoa o inconsciente coletivo de quem julga é que a função social é para a elite, é para quem pode comprar trator e equipamentos de última geração, quem detém o capital. O homem simples do campo, mesmo tendo o traquejo com a terra, vivendo dela, não é merecedor de ter terra para viver dignamente.
O homem do campo, sempre oprimido, no transcorrer dos séculos, vem agora respirando mais aliviado, pois o regime ditatorial é letra morta. Mas nem tudo são flores. O regime ditatorial, onde o Estado Democrático de Direito era ficção, saiu, mas ficaram os resquícios da política de privilegiar o latifúndio em detrimento da distribuição adequada da terra.
A Reforma Agrária no Brasil é uma miragem longe, o horizonte não está nada claro, e sim carregado de nuvens negras. A Reforma Agrária não é encarada como meio de o homem ter cidades mais seguras, com menos gente, menos violência e disparidade social, com melhor distribuição de renda.
A Reforma Agrária seria e é um grande instrumento à disposição da classe política, dos governantes, que não a usam, pois dividir a fatia do lucro é algo inimaginável. Ora, a Reforma Agrária, com assistência de técnicos, com incentivo dos bancos com linhas de créditos, menos corrupção, iria fixar o homem no campo, estancando o êxodo rural: - a grande praga que assola o Brasil.
É consabido que é a União quem pode desapropriar terras para Reforma Agrária, entretanto, o que se vê é uma inércia fenomenal para o propósito. As terras estão aí sendo apenas usadas para especular, para que o produtor que planta em grande escala saqueie os cofres públicos com a política de amarrar cachorro com linguiça. Os bancos além de liberarem dinheiro sem rigorosos critérios, quando a dívida está impagável, ou se anistia ou se prorroga por 10 anos, 20 anos.
No Brasil infelizmente o Estado Democrático de Direito, por incrível que pareça, depois de ultrapassarmos o limiar do século XXI, ainda é apenas uma ficção jurídica, pois sabemos que a lei ainda não é feita para todos, e sim para grande maioria, apenas. É claro que muitos avanços aconteceram, mas muito está por acontecer. Hoje com advogados competentes, não se paga dívidas contraídas para financiar a agricultura. Mas sabemos que o homem de parcas letras e terras é quem paga dívidas com assiduidade. A inversão de valores no Brasil, nesse quesito, é abissal, deixando o Estado de Direito apenas nas bibliotecas.
Jurisprudência selecionada: APELAÇÃO CÍVEL N.º 00075105220148270000 ORIGEM: COMARCA DE ARAGUAÍNA-TO REFERENTE: EMBARGOS DE TERCEIRO N.º 0003215-02.2014.827.2706 2ª VARA CÍVEL APELANTES: WESLEY ANDRADE PEREIRA E OUTROS ADVOGADO: SILVANO LIMA REZENDE APELADOS: BENEDITO VICENTE FERREIRA JÚNIOR E FRANCISCO LOURO DA COSTA RELATOR: Desembargador RONALDO EURÍPEDES EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS DE TERCEIRO. INDEFERIMENTO DA INICIAL. DEFESA DE POSSE VIA INADEQUADA.
1. Os apelantes pretendem, através dos embargos de terceiro, defender a continuação da posse da área em litígio, sob o fundamento de que exercem posse velha e de boa-fé e não foram incluídos no polo passivo da ação de reintegração de posse proposta pelo proprietário do imóvel rural. 2. A sentença recorrida reconheceu e declarou que os posseiros podem e devem defender a alegada posse legítima da área, mas no bojo da ação possessória e não através de embargos de terceiros. 3. Depreende-se dos autos que os posseiros/apelantes foram todos incluídos no polo passivo da demanda possessória, sendo determinada pelo magistrado a quo a citação pessoal de todos, restando integralmente atendida a pretensão dos mesmos, qual seja, a de defender judicialmente as respectivas posses. 4. Recurso a que se nega provimento. (AP 0007510-52.2014.827.0000, Rel. Des. RONALDO EURÍPEDES, 4ª Turma da 2ª Câmara Cível, Julgado em 8/10/14) 1/1
O Julgado acima, em outras palavras, diz que se alguém é posseiro de determinada área e que sobre essa área pende ação possessória, é parte legítima para aforar embargos de terceiros para defender a posse. Claro que para ser parte legítima nos embargos de terceiro o posseiro não pode ser parte no processo possessório.
* É advogado. Foi procurador de município por oito anos e defensor público no Tocantins. Além de advogado, é jornalista e técnico agrícola.
Confira artigo de Leonardo Daroncho, procurador do trabalho no Mato Grosso, sobre o uso excessivo dos agrotóxicos, em especial no estado, que é o maior consumidor dessas substâncias no país. Amanhã, dia 4 de agosto, será realizada em Campo Verde (MT), a primeira de uma série de audiências públicas sobre o impacto dos agrotóxicos no estado.
Leomar Daroncho*
Em meio à pressão e à urgência econômica pelo crescimento da produção agrícola, a sociedade brasileira precisa discutir um grave problema que ameaça tanto a presente quanto as futuras gerações: os agrotóxicos. Os dados disponíveis acerca do colossal volume utilizado, e suas consequências para a saúde pública, especialmente em Mato Grosso, recomendam que o tema seja enfrentado imediatamente.
Há farta produção científica e acadêmica indicando a correlação entre a exposição a agrotóxicos e o surgimento ou elevação dos índices de doenças crônicas. É assustadora a projeção de 500 mil novos casos anuais de câncer no Brasil, sendo o contato com agentes cancerígenos importante fator do agravamento dos números.
No início de 2015, o Instituto Nacional do Câncer – INCA publicou um alerta indicando os malefícios do uso intensivo de agrotóxicos. Além das intoxicações agudas, que afetam principalmente as pessoas expostas em seu ambiente de trabalho, causando irritação da pele e olhos, coceira, cólicas, vômitos, diarreias, espasmos, dificuldades respiratórias, convulsões e morte; o estudo assinala a relevância das intoxicações crônicas, que também prejudicam toda a população.
A exposição crônica decorre do consumo de alimentos ou da contaminação do ambiente em dose baixas, porém constantes. O INCA alerta que os efeitos adversos resultantes dessa exposição podem aparecer muito tempo depois, dificultando a correlação com o agente. Dentre os efeitos associados, o instituto cita infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer.
As informações, de extrema gravidade, foram confirmadas em março de 2015 pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC). A agência publicou estudo indicando que, após a avaliação do potencial cancerígeno (carcinogenicidade) de cinco ingredientes ativos de agrotóxicos, pesquisadores de 11 países classificaram alguns dos herbicidas e inseticidas mais utilizados no Brasil como prováveis agentes carcinogênicos para humanos.
De outro lado, o Brasil detém, desde 2009, o indesejável título de maior consumidor de agrotóxicos do mundo, com o índice de 5,3 litros por habitante/ano. Mato Grosso, por sua vez, é o principal consumidor dentre os estados brasileiros: o índice é de45 litros por habitante/ano. Em algumas regiões de nosso estado, esse número se aproxima do consumo anual de 400 litros por habitante!
Outro fato extremamente preocupante é que o Brasil ainda realiza pulverizações aéreas. Essa técnica, por vezes utilizando agrotóxicos já proibidos em outros países, ocasiona a dispersão de substâncias tóxicas pelo ambiente, contaminando amplas áreas e atingindo populações indefesas, inclusive urbanas.
Também chama a atenção a isenção de impostos que o país continua a conceder à indústria produtora de agrotóxicos, um grande incentivo ao seu fortalecimento, que vai na contramão das medidas protetivas adotadas por outros países.
O problema é complexo. E é urgente conhecê-lo e discutir medidas de proteção e alternativas ao modelo, que passam pela reorientação da pesquisa e do financiamento, que devem incorporar o princípio da precaução e da redução de danos.
Nesse contexto, é de vital importância a difusão de conhecimentos proporcionada pelo Dossiê da Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva, que realizou dois eventos em Mato Grosso no mês de julho de 2015 (Cuiabá e Rondonópolis), com pesquisadores do INCA, da Fiocruz e da UFMT.
Na mesma linha, muito oportuna a mobilização do Comitê Multi-Institucional do Sistema Judicial de Mato Grosso, que elegeu a cidade de Campo Verde, um dos locais de mais intenso consumo no estado, para a realização da primeira de uma série de audiências públicas sobre o impacto dos agrotóxicos em MT. É grande a expectativa para o evento, programado para o dia 4 de agosto de 2015, às 8h30, no Plenário do Júri do Fórum da cidade.
O silêncio em relação aos impactos dos agrotóxicos, como alertado pela pioneira Rachel Carson, em 1962, na obra Primavera Silenciosa (Silent Spring), atua contra as chances de que todos nós tenhamos a possibilidade de uma vida saudável.
*Procurador do Trabalho em Mato Grosso
“O conceito de tráfico de pessoas atualmente vigente no Brasil é muito mais amplo e complexo do que as imagens que a maior parte da população associa de forma imediata a esse fenômeno”. Confira artigo de Renan Bernardi, procurador do trabalho em MT.
Renan Bernardi Kalil*
O tráfico de pessoas é, no imaginário popular, normalmente associado a duas situações em que há a travessia de fronteiras pelo ser humano: a primeira é contemporânea, em que a vítima é explorada sexualmente; a segunda é vinculada ao transporte de escravos em navios que saiam da África e iam para diversas partes do mundo, cujo ápice ocorreu no século XIX no Brasil. Trata-se de uma visão muito restrita do fenômeno, influenciada pelo enfoque de determinadas campanhas em somente uma das facetas do tráfico de pessoas, pelo tratamento dado pela legislação brasileira à essa matéria e pelo passado do nosso país.
A definição mais difundida de tráfico de pessoas é oriunda do Protocolo de Palermo, ratificado pelo Brasil junto à ONU em janeiro de 2004 e internalizado em março do mesmo ano, com o Decreto n. 5.017. Por ser um tratado internacional de direitos humanos, considerando a hierarquia das normas, o Protocolo está abaixo da Constituição mas acima das leis e normas inferiores do texto constitucional.
O conceito de tráfico de pessoas estabelecido no Protocolo de Palermo demanda a coexistência de uma ação, de um meio e de uma finalidade de exploração para a sua caracterização. As ações elencadas são: recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas. Os meios listados para a execução da ação podem ser: ameaça, uso da força, outras formas de coerção, rapto, engano, abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade. As finalidades da exploração indicadas são: a prostituição, outras formas de exploração sexual, trabalho forçado, escravatura, servidão e remoção de órgãos. Deve-se destacar ainda que não se pressupõe a saída de um país e a entrada em um outro, uma vez que o tráfico de pessoas pode ser internacional ou interno.
Assim, nota-se que o conceito de tráfico de pessoas atualmente vigente no Brasil é muito mais amplo e complexo do que as imagens que a maior parte da população associa de forma imediata a esse fenômeno. Isso produz diversas implicações negativas, sendo que a principal é a dificuldade do reconhecimento de outras faces do
tráfico de pessoas, fato que cria obstáculos tanto para a identificação do problema, como para a adoção de políticas de prevenção e repressão.
Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o tráfico de pessoas movimenta aproximadamente 32 bilhões de dólares por ano. Ainda, a OIT coloca que se trata de uma violação de direitos humanos que já atingiu 2,5 milhões de pessoas no mundo, sendo que 57% esteve envolvido com o tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.
Em 2014, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicou dados a respeito dos procedimentos judicias e extrajudiciais do Ministério Público Brasileiro relacionadas ao tráfico de pessoas a partir da consolidação de informações dos anos 2000 a 2013. Dos 1.758 procedimentos identificados, 1.348 tratavam do tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.
É importante pontuar que a menção a trabalho escravo feita nos dados apresentados pelo CNMP não abrange somente o caso de restrição de liberdade, mas todas as situações previstas no art. 149 do Código Penal, que são as seguintes: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva. Considerando que essas quatro hipóteses são consideravelmente identificadas a partir do recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de trabalhadores, nota-se uma grande inter-relação entre os conceitos de tráfico de pessoas e de trabalho escravo. Outra questão que os aproxima é que, normalmente, em ambos os casos o trabalhador está em situação de vulnerabilidade.
Apesar da mencionada inter-relação, a associação entre tráfico de pessoas e trabalho escravo contemporâneo não está disseminada pela sociedade. Corroboram essa afirmação os dados do Disque-Denúncia de Direitos Humanos da Presidência da República, que aponta a realização de 266 registros de trabalho escravo e 28 de tráfico de pessoas no ano de 2012. Portanto, percebe-se que há um grande caminho a ser percorrido para o combate ao tráfico de pessoas no Brasil.
Hoje, 30 de julho, Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a principal tarefa colocada é a difusão do conceito desse ilícito para a população, de forma viabilizar a sua identificação e a realização de denúncias para o Poder Público. Desta forma será possível mensurar a dimensão do problema no país e, consequentemente, conceber políticas públicas adequadas com o objetivo de resguardar a dignidade da pessoa humana e de não permitir que o trabalho seja tratado como mercadoria.
*Procurador do Trabalho em Mato Grosso (MPT/MT) e Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP)
Artigo de Mieceslau aborda a realização da 11º Feira de Sementes Crioulas, que ocorreu neste fim de semana. E foi nesta feira que aconteceu o lançamento do Banco Comunitário de Sementes Crioulas Lucinda Moretti. Confira: