Por equipe CPT Tucuruí/PA
Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Imagens: Sirlei Carneiro/CPT
Uma verdadeira vitória para 47 famílias residentes no Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) João Canuto, no município de Tucuruí, no sudeste do Pará. Na última terça-feira (25), foi publicada a Portaria nº 543, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), criando o assentamento a partir da destinação da área de 2.400 hectares, para as famílias viverem e cultivarem com segurança, respeitando a área de preservação ambiental.
Uma das lideranças do assentamento, o agricultor Raimundo Valdemir, afirma que as famílias estão felizes, com o direito de acesso a politicas públicas e de melhoria de vida.
“Essa é uma terra fértil e muito próspera. Eu sou uma das peças pequenininhas que ajudou e deu sequência ao trabalho dos primeiros que começaram. Muitos já não estão mais conosco, mas ficou o legado, ficou a semente plantada, que agora está germinando bons frutos. É um imenso prazer poder falar um pouco da nossa história, e dizer que a luta que começou em 2002 se concretiza aqui, depois de 22 anos de espera, paciência e qualificação. Muitas pessoas passaram aqui e contribuíram pra que acontecesse esta graciosa vitória, tão esperada, a gente conseguir hoje dizer que está criado o nosso tão sonhado projeto”, afirma seu Raimundo.
O agricultor acrescentou sua gratidão ao poder público, Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR), universidades como a Unifespa, IFPA, UEPA, a Federação de Trabalhadores e Trabalhadoras (Fetagri), Contag e muitas outras entidades parceiras. “Essas parceiras estão diariamente conosco, contribuindo com a nossa preparação pra se manter dentro da área de preservação ambiental”, acrescentou.
A história do assentamento começou em 2002, quando um grupo de aproximadamente 60 famílias de trabalhadores rurais sem-terra ocuparam a antiga área da Fazenda Arumathewa Agropecuária Bom Jesus e Palmares, sendo terra pública federal inserida na Área de Proteção Ambiental do Reservatório de Tucuruí (APA). Após diversas situações de conflitos com o pretenso proprietário da localidade, as famílias sofreram despejo e uma parte foi assentada pelo INCRA no Assentamento Ararandeua, no município de Jacundá/PA. As demais continuaram resistindo, ocupando, produzindo e preservando as áreas de pastagem e de mata, fortalecidos através da criação da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.
Presidente da associação, o trabalhador João Rodrigues de Souza também demonstrou sua alegria: “Eu quero dizer que o que eu acho mais lindo no mundo foi a criação do nosso assentamento João Canuto, e a felicidade dessas famílias que estão dentro dessa área é imensa, de cada companheiro que lutou esse tempo todinho pra nós hoje estar com a portaria do nosso assentamento baixada até no Diário Oficial. Minha palavra é que a gente seja feliz, em primeiro lugar dando glória a Deus, e em segundo lugar agradecemos a CPT, pela grande ajuda que ela nos deu, toda a equipe”, comemorou.
“As famílias do tão sonhado PDS João Canuto celebram uma grande vitória. São 22 anos de espera, e graças a Deus, hoje há muitos motivos a se comemorar, pois graças ao protagonismo e persistência das lideranças, homens e mulheres que lutaram, buscaram, pressionaram as instâncias do governo até a vitória. Ressalto o grande papel de liderança do Sr Raimundo nessa conquista!”, conclui Sirlei Carneiro, agente da CPT Tucuruí.
Da Coluna de Guilherme Amado
Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional) e equipe CPT Itaituba/PA
Indígenas de diversos povos protestam contra o projeto da Ferrogrão (Foto: Raissa Azeredo/Arquivo pessoal/Repórter Brasil)
Mais de 20 entidades representantes de povos indígenas, agricultores, movimentos sociais e comunidades tradicionais da região do Tapajós e do Xingu, elaboraram uma Carta Aberta ao diretor-presidente da empresa Estação da Luz Participações (EDLP), empresa responsável pelo projeto da Ferrogrão com o apoio de multinacionais do agronegócio como a ADM, Amaggi, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus.
A ferrovia, com dimensão aproximada de 933 quilômetros, planeja ligar as cidades de Sinop (MT) e Miritituba (PA), transportando soja, farelo de soja e milho, a partir do porto no Rio Tapajós, para a China, Europa e Oriente Médio. Em seu trajeto, os vagões pretendem cortar com os trilhos de ferro Unidades de Conservação e 16 Terras Indígenas, incluindo algumas ainda não demarcadas, além de assentamentos e inúmeras propriedades de agricultores e agricultoras familiares.
Tomando forma em 2017, ainda o governo de Michel Temer, o projeto da Ferrogrão atravessou o mandato de Jair Bolsonaro e foi incluído no Programa de Aceleração do crescimento (PAC) do governo do presidente Lula, como obra para realização de estudos. As comunidades afirmam que não foram ouvidas sobre o empreendimento, e que, antes mesmo da construção, a obra já intensificou casos de grilagem, invasões, desmatamento, destruição e poluição de igarapés e ameaças contra os povos e comunidades, agravando os impactos que já existem com a construção da rodovia BR-163.
A falta de coerência apontada pelas entidades populares é de que, além da chefia da EDLP, Guilherme Quintella é vice-presidente do conselho diretor do Instituto Terra, organização fundada pelo fotógrafo Sebastião Salgado, que junto com a esposa, Lélia Deluiz Wanick Salgado, atuam como ativistas ambientais. A posição de destaque do executivo nesta organização ambientalista iria na contramão dos próprios valores do instituto.
Leia a carta na íntegra:
Prezado Guilherme Quintella,
Escrevemos essa carta juntos, povos indígenas, agricultores e agricultoras, movimentos sociais e comunidades tradicionais da região do Tapajós e do Xingu, depois que você procurou algumas de nossas lideranças. Como não sentamos sozinhos para conversar com empresas e seus representantes, te convidamos para uma reunião durante o Acampamento Terra Livre, mas, depois de aceitar, você disse não poder participar. Então agora nós te escrevemos para que não tenha dúvidas da nossa posição e esperando que você tome a decisão certa: abandone e denuncie o projeto da Ferrogrão e pare de ajudar na destruição dos nossos territórios e do futuro do planeta.
É isso mesmo. Na contramão da missão e valores do próprio Instituto Terra, você e sua empresa já estão promovendo essa destruição antes mesmo de uma decisão sobre a Ferrogrão ter sido tomada: só a possibilidade dessa ferrovia da morte ser construída já faz com que exista ainda mais pressão sobre nós e sobre os nossos territórios. É muita grilagem, é muita especulação, é muita invasão, é muita ameaça, é muito desmatamento, é muita poluição e destruição dos nossos rios, dos igarapés… E tudo isso em cima de um monte de problemas que a gente já enfrenta há muitos anos!
Muitos de nós já sofremos muito com a construção da BR 163 e com o complexo portuário já instalado na região do Tapajós, que não trouxe benefícios e sim muitas violações de direitos. O povo Panará quase acabou, e muitos morreram. Desde então, as plantações de soja e milho só aumentaram e vão aumentar ainda mais, se você e sua empresa continuarem apoiando esse projeto da Ferrogrão. Vão derrubar mais floresta para plantar mais soja e milho, vão jogar veneno, e o veneno vai descer e vai envenenar mais os peixes. Vão destruir mais o rio para fazer hidrovias para as barcaças, e vão fazer ainda mais portos que não deixam a gente pescar.
E tudo isso para quê? Para dar mais dinheiro para empresas estrangeiras gigantescas? Para facilitar o lucro da Cargill, ADM, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi, enquanto a gente não tem terras demarcadas, não tem direitos respeitados? Nós nem fomos consultados! Você e todos os empresários, políticos e financiadores têm a obrigação de ouvir a nossa voz e respeitar os protocolos de consulta e nosso direito a veto. Deveriam fazer isso pelo bem de vocês, pois a Ferrogrão ameaça todas as gerações que ainda vão vir. O futuro de todos vai ser destruído se a destruição da Amazônia e do Cerrado continuar.
O fato de um trem soltar menos fumaça do que uma frota de caminhões não significa que a Ferrogrão seja boa. Se tivessem feito estudos direito e ouvido os povos e as comunidades afetadas, vocês talvez soubessem disso. Pois saibam: nós não vamos aceitar que a soja e o milho engulam ainda mais os nossos territórios. Não vamos permitir que a Ferrogrão faça ainda mais mal para a natureza para dar mais dinheiro para empresas estrangeiras. Nós já sofremos demais e isso tem que parar. Você e sua empresa podem escolher estar do lado certo da história e em linha com os princípios do Instituto Terra do qual você é vice-presidente do conselho diretor. Pense em nós, e pense nos seus filhos, nos seus netos e na saúde do planeta.
Assinam esta Carta:
Itaituba, 24 de junho de 2024.
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Foto: Júlia Barbosa
“Presença, Resistência e Profecia
Na certeza de um novo dia
Romper cercas, tecer teias
Vai, CPT, com o povo em Romaria…”
(Banda Filhos da Mãe Terra)
Entre os dias 19 e 22 de junho, a Comissão Pastoral da Terra realizou a sua tradicional Semana Nacional de Formação, reunindo mais de uma centena de agentes no Centro Pastoral Dom Fernando, em Goiânia (GO), local em que a CPT foi criada, há exatos 49 anos. O momento foi de imersão nas pautas da pastoral, olhares sobre os desafios da realidade e um aquecimento dos corações e das forças para o início da comemoração dos 50 anos da CPT e a realização do V Congresso Nacional, a ser celebrado em julho de 2025, em São Luís (MA), sob o tema/lema “Presença, Resistência e Profecia – Romper Cercas, Tecer Teias: A Terra a Deus pertence.”
Presença junto aos povos: Os Rios da Vida da CPT
“Moço, Vamos subir o Rio, vamos subir o Rio, vamos subir o Rio…”
A programação começou com a mística da “Construção dos Rios da Vida da CPT”, organizada pelas muitas mãos de agentes de cada grande região, que trouxeram diversos símbolos da memória da caminhada e os mártires da terra. Confira detalhes dos Rios da Vida na Carta do Encontro Nacional de Formação.
Diversas experiências de presença, resistência e profecia vividas nestes 49 anos foram compartilhadas e celebradas, como a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais (Grande Região Norte), a resistência das comunidades ribeirinhas (Noroeste), a luta e concretização da Reforma Agrária (Centro-Oeste), o enfrentamento aos grandes projetos de desenvolvimento e transição energética (Nordeste), a luta quilombola no Sudeste e a resistência da agroecologia no Sul.
“O encontro todo está sendo um momento de muita força e energia para a gente. Também fico muito feliz por encontrar gente jovem, que está continuando na luta e caminhando junto com o povo do campo,” afirmou Neide Martins, agente da CPT Ceará.
A agente Neide Martins (no centro), representando a CPT Regional Ceará. Foto: Heloísa Sousa
“Onde a CPT está? No lugar em que os pobres do campo sentem sede, junto das pessoas sem rosto, escravizadas e consideradas indigentes ‘pelo poder do latifúndio e ambição do capital’, a CPT bebe na fonte do Evangelho de Jesus de Nazaré. Essa é a espiritualidade da CPT – a espiritualidade da cruz, do martírio, do Jesus que teve sede, junto com as pessoas crucificadas na história. A CPT está lá, não para ficar na cruz, mas para testemunhar, junto com os povos e comunidades que ‘as forças da morte não vencem as forças da vida’”, destacou Muria Carrijo, documentalista do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc-CPT).
Foto: Júlia Barbosa
A Resistência na luta de classes
“Traga a bandeira de luta, deixa a bandeira passar
Essa é a nossa conduta, vamos unir pra mudar…”
O segundo dia da formação foi dedicado à análise da conjuntura em que se encontra a CPT, um olhar político de reflexão, estudo e debate. Facilitaram o momento o prof. Bruno Lima Rocha, cientista político e pesquisador na Universidade Federal Fluminense (UFF), e Michela Calaça, do Movimento de Mulheres Camponesas e atualmente no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
A reflexão foi principalmente para um contexto de Brasil entre dois blocos de poder (EUA e China), mas que, mesmo com a mudança para um governo de orientação popular, continua investindo muito mais na produção do agronegócio direcionada para as commodities, com exportação de grãos para a produção de ração para animais, beneficiando o mercado financeiro, enquanto o país está no mapa da fome.
Foto: Carlos Henrique Silva
“Internamente, os desafios são da consolidação de uma direita militante diante de um governo em tensão constante, que mesmo cedendo e beneficiando o agronegócio, precisa sempre negociar com as bancadas do agronegócio, das armas e religiosa conservadora – as bancadas do boi, da bala e dos fariseus”, afirmou o prof. Bruno.
Tânia Maria, agente pastoral da CPT em João Pessoa (PB), também participou de um momento de análise junto com Isidoro Revers (Galego), ex-coordenador nacional da CPT. “O que a gente pode fazer para que a igreja se comprometa, uma vez que ela está cada vez mais apática à situação do campo? Há expressões de padres, até, que dizem que ‘não devemos lutar pela terra, devemos lutar pelo céu’, uma linguagem que está se dando dentro das comunidades. A essência da Pastoral da Terra é levar a esperança evangélica para o povo camponês, a mulher e o homem camponeses”, afirmou Tânia.
Foto: Everton Antunes
A Profecia: denúncia e anúncio a partir do olhar teológico
“No Egito, antigamente, no meio da escravidão,
Deus libertou o seu povo, hoje ele passa de novo
Gritando a libertação!”
O último dia de formação contou com uma análise teológica e profética da caminhada da CPT, iniciando com apresentação da análise feita pelo educador popular Ranulfo Peloso, na Semana de Formação anterior. O texto traz a história da CPT nesses 49 anos, seu serviço prestado aos povos, seus desafios para “nascer de novo” como entidade relevante na luta junto ao povo de Deus e no cumprimento de sua missão. O momento também contou com a facilitação do assessor Jadir Morais e da pastora e assessora Nancy Cardoso.
Foto: Heloísa Sousa
Em sua análise, Nancy destacou a forte presença das mulheres e juventudes no espaço de formação, e as mudanças nesses 49 anos de CPT. “Pedro Casaldáliga, citando santo Agostinho, diz: ‘Nós somos o tempo.’ Sejamos o jubileu com toda a nossa vida, um solene ciclo de festividades, celebrando esse ano que temos em comum. Os tempos mudaram, muita coisa mudou, mas nós, irmãos e irmãs, não perdemos o paradigma. Nos atualizamos, mas não perdemos o prumo do que é a CPT. Vamos nos fortalecer junto com os sindicatos, partidos, movimentos, escolas.”
De acordo com Jadir Morais, o desafio para os/as agentes é ouvir e estar com o povo, dialogar com as comunidades, em um trabalho consolidado. “Os próximos 50 anos, como vai ser daqui pra a frente? Nós temos que estar permanentemente reforçando aquilo que é nossa base, aquilo que nos constituiu. Pra a gente saber qual o lado certo, vamos precisar de muita lucidez, clareza, estudo e leitura. Eu não consigo pensar em um(a) agente da CPT que não lê, não estuda, e vou ainda mais longe: precisa ser um pesquisador e pesquisadora”.
Foto: Everton Antunes
A tarde terminou com a apresentação das rodas de conversas formadas por grandes regiões, que refletiram sobre os desafios e rumos aos próximos 50 anos, apontando caminhos que sejam protagonizados e também construídos pelas vozes das mulheres, juventudes e pessoas LGBT+ presentes no campo, mostrando que, fora da luta e da organização popular, não há saída para essa conjuntura.
“Precisamos debater de forma ampla, unindo este contexto com as questões de gênero e raça, valorizando, estimulando e potencializando ainda mais a sabedoria e o fazer dos povos e das comunidades”, afirmou Larissa Rodrigues, agente que integra a coordenação eleita recentemente na CPT Rondônia.
Consagração dos Tambores e envio aos regionais
Foto: Heloísa Sousa
“Eu tava no alto da floresta
Foi quando o tambor me chamou
Ê não bota fumaça, vovó, ê não bota fumaça, vovó
Eu acordei no batuque do tambor…”
Símbolo da cultura e religiosidade maranhense, o tambor também foi escolhido como instrumento para guiar a preparação do V Congresso Nacional e dos 50 anos da CPT. Para celebrar esse início, um ritual no final da tarde marcou a consagração e entrega de 21 pequenos tambores às equipes regionais e à Coordenação Nacional.
Fotos: Heloísa Sousa
Os instrumentos foram produzidos pelo grupo coletivo Coró de Pau, de Goiânia (GO), que desenvolve há mais de 20 anos trabalhos com percussão musical, blocos de percussão de rua, bandas, produções de instrumentos de percussão, entre outras atividades.
“No Maranhão, a gente costuma dizer que o tambor é feito a machado, afinado a fogo e tocado a coice. É algo muito forte e intenso, que remete à ancestralidade e à resistência do povo”, afirmou Raniere Roseira, agente da CPT Maranhão.
Foto: Heloísa Sousa
A Semana de Formação encerrou com energia para uma caminhada rumo aos 50 anos de comprometimento com as causas populares, representada pelo compartilhamento de anéis de tucum e a inspiração da voz de Dom Pedro Casaldáliga.
“Ai dos que dizem que o mal é bem e o bem é mal, dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas, dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo! Ai dos que são sábios aos seus próprios olhos e inteligentes diante de si mesmos!” (Isaías 5, 20-21).
Recentemente, no dia 9 de junho, Dom João Justino de Medeiros Silva, primeiro vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e arcebispo de Goiânia, presidiu uma missa no Santuário Nacional de São José de Anchieta, a convite do reitor do Santuário, em comemoração aos dez anos da canonização do jesuíta.
Conforme notícia no site da CNBB: “Um dos momentos mais marcantes da festa de encerramento foi a apresentação do Grupo de Xondaro, da aldeia indígena Guarani Nova Esperança, de Aracruz”. Neste contexto, em uma entrevista, Dom João Justino associou os desafios que acometiam os povos originários assistidos pelo missionário no século XVI aos enfrentamentos feitos por seus descendentes nos dias de hoje. O arcebispo citou a importância da reforma agrária e, em especial, a urgência da demarcação dos territórios indígenas, posicionando-se contra o projeto de lei do Marco Temporal, aprovado pelo Congresso.
Suas palavras, Dom João, refletem o pensamento da Igreja Católica em relação à questão agrária brasileira, evidenciada em vários documentos, a exemplo de “A Igreja e a questão agrária brasileira no início do século XXI”, “Nordeste: a missão da Igreja no Brasil” e “A Igreja e problemas da terra”. Consta deste último: “A situação dos que sofrem por questões de terra em nosso país é extremamente grave. Ouve-se por toda parte o clamor desse povo sofrido, ameaçado de perder sua terra ou impossibilitado de alcançá-la” (CNBB, 1980, p. 1).
Esse pronunciamento alegra e encoraja os povos e suas lutas em defesa da terra e do território. As mesmas palavras, no entanto, incomodaram ao deputado Evair Vieira de Melo, integrante da bancada do agronegócio e vice-líder da oposição, que resolveu protocolar uma moção de repúdio na Comissão de Agricultura da Câmara, alegando que “Dom João Justino, ao expressar visões políticas sobre o marco temporal para a demarcação de terras indígenas durante uma celebração dedicada a São José de Anchieta, não só foi inoportuno, mas transgrediu a sacralidade do evento e desrespeitou a expectativa de devoção dos participantes” (Fonte: O Estado de São Paulo).
Questionamos o deputado Evair sobre o que ele buscava naquela festa religiosa: escutar superficialmente os feitos do santo no passado, ignorando o sofrimento e as lutas contemporâneas? Não é assim que os ministros da Igreja dialogam com as comunidades – desvinculados do contexto em que vivem.
Seu posicionamento, Dom João, contrário ao Marco Temporal, está em sintonia com a mensagem do Papa Francisco, em “Querida Amazônia” (2020), na qual adverte: “Os interesses colonizadores que, legal e ilegalmente, fizeram – e fazem – aumentar o corte de madeira e a indústria minerária e que foram expulsando e encurralando os povos indígenas, ribeirinhos e afrodescendentes, provocam um clamor que brada ao céu”.
A denúncia do Papa Francisco anuncia a realidade em que a população brasileira vive, estarrecida, nos últimos anos, com desastres naturais em várias regiões do país. Enchentes e deslizamentos de terra em estados litorâneos, secas severas seguidas de enchentes em estados amazônicos, o Pantanal novamente incendiado. Ser contra o Marco Temporal representa, portanto, a contrariedade a todo este contexto devastador que sacrifica vidas humanas e a natureza.
Sua voz, Dom João, reverbera a angústia de cerca de 90% da população brasileira que, segundo pesquisa conduzida pela PwC e pelo Instituto Locomotiva, reconhece os impactos destes eventos como resultados do desequilíbrio climático mundial. Na contramão da crise anunciada, um levantamento do MapBiomas mostrou que as terras indígenas perderam menos de 1% de sua área de vegetação nativa nos últimos 38 anos, enquanto nas áreas privadas a devastação foi de 17%.
Isso se deve ao entendimento dos povos originários como pertencentes à integralidade do meio natural em que vivem. Por isso, cuidam da natureza como sua mãe e entendem seu território como um espaço de vida em comunhão. Os povos indígenas são exemplos ancestrais e presentes do cuidado com a Casa Comum.
Por sua voz e vida colocadas a serviço da luta por uma terra sem males, agradecemos o seu compromisso, Dom João, ao anunciar o Reino de Deus, fiel ao evangelho, levando alegrias e esperanças aos empobrecidos da terra.
Goiânia, 21 de junho de 2024
Comissão Pastoral da Terra
*A carta foi lida e entregue à Dom João Justino durante a Celebração Eucarística de abertura do Ano Jubilar da CPT, em 22 de junho, em Goiânia/GO.
Foto: Júlia Barbosa
CPT rumo aos 50 anos: presença, resistência e profecia
“A terra a Deus pertence” (cf. Levítico 25)
Para dar início à celebração dos seus 50 anos, a Comissão Pastoral da Terra – CPT reuniu 102 de seus/suas agentes, de todos os cantos do país, com parceiros e assessores e assessoras, no Encontro Nacional de Formação, de 19 a 22 de junho de 2024, no Centro de Pastoral Dom Fernando, em Goiânia, onde ela foi criada há exatos 49 anos. O tema e o lema do encontro, acima enunciados, foram os mesmos do seu V Congresso Nacional, a se realizar em São Luís – MA, de 21 a 25 de julho de 2025, quando serão concluídos os 50 anos.
O percurso histórico-geográfico da CPT foi recordado e revivido com a dinâmica dos “rios da vida”, na qual agentes das suas seis Grandes Regiões – Norte, Noroeste, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul –, trouxeram símbolos, imagens, fotos, artesanatos, nomes, falas e cânticos que plasticamente contaram dos vários serviços prestados aos diversos campesinatos brasileiros nestes decênios. Nestes rios correram e correm as águas de inúmeras e incansáveis lutas, das várias organizações e movimentos sociais criados e incentivados, rearticulados em “teias”, de tanta vida generosa doada, dos sangues derramados nos martírios e lágrimas vertidas nas derrotas, das alegrias das conquistas celebradas nas festas, das rezas em todos os momentos, pedindo e agradecendo ao Deus de Jesus, a Nossa Senhora, aos Santos e Santas, aos Encantados e Orixás. As bases bíblico-teológicas, as espiritualidades, as religiosidades e as eclesialidades subjacentes a tanto feito foram o segredo e a marca. O olhar para trás nos encantou, emocionou e fortaleceu, mas é o agora e o amanhã que nos desafiam.
A CPT foi criada em 1975, sob a Ditadura Empresarial-Militar, no enfrentamento ao latifúndio que massacrava posseiros e peões “aprisionados por promessas”, na fronteira agrícola da Amazônia. Logo estava espalhada por todo o país, onde se manifestava a questão agrária brasileira com suas várias e recorrentes violências contra os povos da terra e seus territórios, essencial à manutenção do poder dominador do Capital, a despeito da formal democracia. E este processo não para.
As cercas de sempre hoje estão multifacetadas, com a mesma usura avassaladora, agora fazendo-se também “economia verde”. Quer seja sob a socialdemocracia ou o ultra-neoliberalismo, sob governos de Direita ou ditos de Esquerda, as corporações capitalistas-financistas do agro, que não é pop nem é gente, se tornam hidro-minero-econegócios, ampliam a invasão de territórios, campos, florestas e bacias hidrográficas, incorporam o sequestro de carbono e a exploração dos ventos e da luz solar, numa ilusória transição energética e insuficiente enfrentamento das emergências climáticas. Mais difícil do que ontem está em identificar os inimigos e traçar as estratégias corretas da luta de sempre, pela vida, a justiça e a dignidade na “terra de Deus, terra de irmãos”.
Diante de passado tão frutuoso e do presente tão inquietante, impõe-se para nós reinventar-se e redizer-se com a mesma e renovada presença no meio das comunidades camponesas e povos tradicionais, no serviço educativo e transformador junto a eles, reafirmando a memória subversiva do Evangelho da vida e da esperança, germinal da CPT. Fortalecer, na expectativa da ressurreição, a espiritualidade da cruz, em diálogo com todas as legítimas expressões religiosas.
Reconhecemos a necessidade de retomar e aprimorar nosso modo de atuar, a metodologia do trabalho de base, a prática precípua do respeito e reconhecimento do protagonismo dos povos e comunidades, das mulheres e das juventudes. Colaborar na recriação das estratégias para democratizar o acesso e a permanência na terra, o trabalho digno e a produção agroecológica e agroflorestal. Aperfeiçoar as táticas de formação de agentes e de lideranças e de comunicação que enfrentem o assédio, tão brutal quanto sedicioso, da concorrência desinformativa e deformativa que grassa no mundo atual. Reaproximar-nos das nossas Igrejas e de novo comprometê-las na solidariedade com os povos e comunidades destinatários da nossa missão evangelizadora comum, restituindo nosso ecumenismo cristão enfraquecido.
Nesta caminhada jubilar, a CPT precisa reassumir, revigorada, as causas da vida nos campos, águas e florestas, contra as ameaças e mortes engendradas pelos velhos e novos projetos do Capital. Insistir na denúncia de tudo o que fere e mata os povos e comunidades e a Mãe Terra. Empenhar-se pela recriação e revitalização dos movimentos sociais do campo e por novas articulações entre eles, como as Teias dos Povos. Reforçar as incidências para a construção de políticas públicas de enfrentamento e combate à violência no campo e de erradicação do trabalho escravo. Abraçar para valer a “conversão ecológica” e a “economia da vida”, proposta pelo Papa Francisco.
No sábado, dia 22, aniversário da CPT, externamos publicamente o início da nossa celebração jubilar, com uma caminhada, sob o toque dos tambores-símbolos deste jubileu, da Praça Universitária à Catedral Metropolitana de Nossa Senhora Auxiliadora, no centro da cidade, onde uma celebração eucarística deu graças a Deus por esta trajetória sofrida, virtuosa e vitoriosa dos 50 anos da CPT.
“Lutar e crer, vencer a dor, louvar ao Criador! Justiça e paz hão de reinar e viva o amor!” (Zé Vicente)
Goiânia, 22 de junho de 2024.
Com informações de Luis Miguel Modino (Comunicação CNBB Norte 1) e REPAM-Brasil
Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
Crédito das imagens: CNBB Norte 1
De 17 a 23 de junho de 2024, a Comissão Episcopal Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano (CEPEETH) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), está realizando uma missão no Estado de Roraima, na fronteira com a Guiana e a Venezuela. Uma comissão que segundo seu presidente, dom Adilson Pedro Busin, bispo da diocese de Tubarão (SC), tem entre seus objetivos “a conscientização, a incidência política e eclesial”. Representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) também se fazem presentes na missão.
Tráfico de pessoas, uma realidade escondida
A missão ajuda a “trazer a temática do tráfico humano, que ele é escondido, inclusive as vítimas são escondidas”, ressalta o bispo. Estamos diante de um problema social mundial, que o Papa Francisco tanto insiste. A incidência deve ser dupla, segundo dom Busin, “ad intra da própria Igreja, para nós tomarmos consciência desse problema grave, dessa chaga da humanidade, como diz o Papa Francisco, e da sociedade”.
Diante da realidade de Roraima, com uma ebulição migratória e tantas “fronteiras porosas”, a visita da comissão quer com que “essa temática do tráfico humano seja exibido, visibilizado, seja sentido, que chegue ao coração, à mente das pessoas, no mundo da política e na sociedade, com políticas públicas que venham a enfrentar o tráfico de pessoas”, destaca o presidente da comissão.
Fronteira Brasil-Guiana-Venezuela: vulnerabilidades comuns
A migração é uma situação que marca a vida do Estado de Roraima nos últimos anos, até o ponto que atualmente 30% da população de Roraima é formada por migrantes venezuelanos. Anualmente entram mais ou menos 200 mil venezuelanos por ano pela fronteira de Pacaraima.
Na fronteira entre o Brasil e a Guiana, o fluxo de venezuelanos, cubanos e haitianos é constante. Os migrantes chegam muitas vezes em situação de extrema pobreza, sendo muito grande a demora para conseguir documentação, que é tramitada em Boa Vista, com uma lista de espera de mais de cem migrantes em Bonfim, que pelo fato de não ter documentação são vítimas fáceis das redes de exploração.
O tráfico de pessoas é algo sobre o que se está começando a falar entre os povos indígenas, segundo Davi Kopenawa, que afirma ser algo antigo entre os brancos. Nessa perspectiva, o líder yanomami destaca que “é bom que vocês acordarem para falar conosco”. Ele denuncia a exploração das mulheres yanomami pelos garimpeiros, insistindo em que cada vez são mais as indígenas grávidas de garimpeiros.
Os migrantes em Roraima são vítimas do tráfico humano, que se concretiza de diversos modos, no trabalho escravo, a servidão doméstica, o aluguel de crianças para mendicância, para as pessoas serem atendidas em primeiro lugar nas filas, a exploração sexual de crianças e adolescentes, inclusive o roubo de crianças do colo das mães. Pode ser falado abertamente de falta de respeito aos direitos das pessoas, muitas vezes com a conivência do poder público e da própria sociedade.
Uma realidade que também se dá nos abrigos de acolhida, superlotados, com poucas pessoas para realizar o atendimento e cuidado, que em muitos casos têm se tornado territórios sem lei, tendo acontecido assassinatos dentro desses abrigos. De fato, muitos migrantes não querem entrar nos abrigos, preferem dormir na rua, até o ponto de que Boa Vista é a cidade com maior porcentual de população de rua do Brasil.
Em parceria com outras instituições que acolhem os migrantes, a cada dia a Igreja distribui pelo menos 1.500 cafés da manhã e 1.500 almoços, fora o serviço de documentação e acolhimento, com o projeto Sumauma, sediado na paróquia da Consolata de Boa Vista, a mais próxima à rodoviária da cidade, onde grupos de migrantes mais chegam à procura de ajuda.
“Todos os que chegaram aqui trouxeram a sua cultura, o seu jeito de ser, a sua história, e cada um trouxe um pouquinho mais de enriquecimento a nossa sociedade, a visão do mundo, a culinária. A migração não é um problema, a migração é uma riqueza, que torna a sociedade mais plural, mais acolhedora, uma sociedade de fato aberta a todas as pessoas que possam aqui chegar”, ressaltou o bispo de Roraima e presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil), dom Evaristo Spengler.
No enfrentamento ao tráfico de pessoas, uma realidade muito ligada à migração, se faz necessário juntar forças para que as autoridades possam efetivar essa política, algo que não está acontecendo no Estado de Roraima, para descobrir luz para fortalecer nossa caminhada, segundo Socorro Santos, diretora do Programa de Direitos Humanos e Cidadania, da Assembleia Legislativa de Roraima. Ela reflete sobre a realidade do tráfico humano, que é dinâmico, multifacetário, ele muda de acordo com a realidade local e o momento histórico.
O tráfico humano também é campo de pesquisa na Universidade, constatando o grande crescimento do contrabando de migrantes, sua perda de cidadania, que vai além do fato de ter documentos, abordando a questão do migrante como assistido e não como protagonista de direitos. Essas pesquisas levam a enxergar o problema da interiorização, visto muitas vezes como projeto de se livrar dos migrantes, igualmente o feminicídio.
Essa realidade leva a olhar as pessoas como objetos, como “a carne mais barata do mercado”, o que coloca em vulnerabilidade as mulheres, os povos indígenas, os negros, no Brasil. Um fato que deve levar a se questionar onde estamos errando como sociedade, a tomar consciência de combater os crimes que são cometidos diante da vulnerabilidade das pessoas.
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