COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE.
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Edição: Comunicação CPT Nacional

Foto: Enterro de vítimas do Massacre do Abacaxis. Crédito: Divulgação / Conselho Nacional das Populações Extrativistas

Ao citar “um sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo”, o Papa Francisco denuncia o “verdadeiro flagelo moral; como resultado, perde-se a confiança nas instituições e em seus representantes, o que desacredita totalmente a política e as organizações sociais”. No fim, observa com lucidez, “os povos amazônicos não são alheios à corrupção e tornam-se suas principais vítimas”. Infelizmente, o alerta do pontífice na Exortação Querida Amazônia é bastante atual e concreto. Referida deterioração alarmante das instituições públicas, estaduais e federais, se verifica na longa e interminável investigação do episódio conhecido como o Massacre do Rio Abacaxis, na já tão violentada região amazônica.

Histórico do Massacre

Em plena pandemia de covid-19, mais especificamente em 23 de julho de 2020, o então secretário do Fundo de Promoção Social (FPS) do governo do estado do Amazonas, Saulo Moysés Rezende Costa, acompanhado de outras pessoas e em embarcação privada, invadiu a região do Rio Abacaxis com o intuito de praticar pesca esportiva, sem licença ambiental ou autorização da população local. Na mencionada área vivem comunidades indígenas e ribeirinhas, que firmaram um acordo sobre a prática da pesca esportiva, não observado pelo grupo em questão.

Mesmo com a oposição das comunidades, o ex-secretário desrespeitou as lideranças locais e, em meio à confusão, teria sido supostamente ferido de raspão por um tiro, o que nunca foi comprovado. Conforme relato dos presentes, Saulo retirou-se ameaçando voltar e “matar todo mundo”. No dia 3 de agosto daquele ano, quatro policiais à paisana, posteriormente identificados como pertencentes ao Comando de Operações Especiais retornaram ao território, no mesmo barco privado usado pelo ex-secretário. Na desastrosa ação, dois agentes foram mortos e outros dois feridos.

Na ocasião, a Secretaria de Segurança Pública do governo Wilson Lima autorizou, sob a justificativa oficial de combate ao tráfico de drogas, a realização de uma megaoperação com dezenas de policiais na região dos Rios Abacaxis e Mari-Mari, entre os municípios de Borba e Nova Olinda do Norte. No dia 4 de agosto, com a chegada das forças de segurança instalou-se o terror nas comunidades locais. A operação foi pessoalmente liderada pelo próprio Comandante-Geral da Polícia Militar do Amazonas, Coronel Ayrton Norte.

O resultado, conforme denúncias das organizações sociais que atuam na região, foi catastrófico, sendo provavelmente a maior violação dos direitos humanos dos últimos anos do estado do Amazonas. Além da execução de quatro ribeirinhos, um deles menor de idade, e dois indígenas do povo Munduruku, houve a prática de tortura, incêndio de comunidade indígena e outras arbitrariedades.

Os relatos de violações de direitos humanos são chocantes e para preservar os sobreviventes, os nomes devem ser omitidos. Um deles afirma que o presidente da associação comunitária ribeirinha teria sido torturado com saco plástico na frente do comandante da operação. Outro diz sobre uma mulher que teve gasolina jogada sobre o corpo e foi ameaçada de ser queimada. Há ainda uma denúncia de uma criança que foi colocada em um freezer e quando foi retirada de lá estava congelada, à beira da morte.

Conforme uma cacica do Povo Munduruku, a Polícia Militar invadiu as comunidades originárias, sem qualquer autorização das lideranças e em total descumprimento da lei. Ademais, por ser Terra Indígena apenas a Polícia Federal possui competência para atuar. Por outro lado, os Maraguá esperam há décadas que suas terras sejam devidamente reconhecidas e protegidas pela União. De acordo com a Constituição Federal, o Estado brasileiro deveria ter demarcado o território indígena até 1993. Todavia, até o presente momento, sequer o Grupo de Trabalho, primeira etapa do longo processo de demarcação, foi instituído pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Casas foram invadidas e queimadas, comunidades inteiras proibidas de circular pelos rios, principal meio de sustento dessa região, levando um clima de tensão e pavor a uma população inteira que se viu sitiada por semanas. Os danos físicos, psicológicos e morais foram consideráveis, tendo deixado marcas profundas nas famílias vítimas de toda a violência policial. E, mesmo apesar de repercussão do primeiro momento, lamentavelmente muito pouco se avançou na punição e reparação dessa barbárie.

Estava-se no pleito eleitoral de 2020, em pleno governo Bolsonaro, mas graças a contundente mobilização das organizações sociais com forte apoio da Igreja amazônica, o caso foi divulgado. Dentre as entidades, deve se ressaltar a participação ativa do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da própria Arquidiocese de Manaus, com o envolvimento pessoal do Cardeal Dom Leonardo Steiner.

Eleições 2024 e a "bancada da bala"

Quatro anos depois do massacre, a bancada da bala saiu ainda mais fortalecida das últimas eleições municipais. Segundo o levantamento do Instituto Sou da Paz1 (disponível nesta reportagem da Deutsche Welle), 856 agentes foram eleitos no primeiro turno, entre eles, 759 vereadores, 52 prefeitos e 45 vice-prefeitos. O maior número da série histórica! De acordo com Carolina Ricardo, diretora-executiva da entidade, trata-se de "uma agenda que se baseia no medo e em um discurso beligerante”, com candidatos que se "baseiam mais na violência policial do que no planejamento para a segurança pública”.

Tristemente, o país nunca enfrentou seu passado de violência, desde a mais distante escravização das pessoas negras e indígenas até a mais recente ditadura civil-militar, época em que tortura era uma estratégia permanente das forças de segurança. Será que se pode dizer que algo efetivamente mudou nesse cenário autoritário? Ou as polícias seguem agindo com truculência e arbítrio, principalmente com os empobrecidos das periferias e dos rincões do Brasil profundo? Basta pesquisar sobre as recentes “operações” Escudo e Verão da Polícia Militar de São Paulo, autorizadas pelo governo Tarcísio de Freitas.

Vale destacar que, para tentar trazer alguma segurança às vítimas do extermínio policial do Abacaxis, houve a determinação judicial para que se instalasse uma base móvel da Polícia Federal na região. Tal medida nunca foi devidamente cumprida por parte do governo federal, seja o anterior ou a atual gestão. Nesse sentido, a ausência dos órgãos do estado brasileiro contribui para aprofundar a situação de insegurança e fragilidade a que foi relegada a população afetada.

A impunidade nas idas e vindas da investigação

Entre idas e vindas, tramitando na 2ª Vara Criminal da Justiça Federal no Amazonas, o inquérito da Polícia Federal foi presidido por seis delegados diferentes, estando sujeito a grande interferência política das autoridades do estado, considerando a magnitude do caso. Finalmente, no dia 28 de abril de 2023 houve o indiciamento, como supostos mandantes do massacre, do ex-secretário de Segurança Pública do estado, Coronel Louismar Bonates e do ex-comandante da Polícia Militar, Coronel Ayrton Norte. Vale destacar que o governador Wilson Lima (União Brasil), em maio de 2022, havia condecorado ambos pelos relevantes serviços prestados.

Desde então se aguarda que o 9º Ofício Criminal do Ministério Público Federal do Amazonas ofereça a denúncia das autoridades já indiciadas no inquérito, o que transcorridos um ano e meio ainda não aconteceu. Seria fundamental ainda, considerando a relevância e as circunstâncias especiais, que a própria Corregedoria do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) pudesse, inclusive, acompanhar de perto o deslinde das investigações, para garantir que o procurador federal não sofra pressões indevidas e tenha as condições necessárias para cumprir com seu papel institucional.

Como se não bastasse toda a demora para o encerramento das investigações, em setembro de 2024, em um ato unilateral e sem qualquer fundamentação, o inquérito foi transferido de Brasília para a Superintendência da Polícia Federal no Amazonas e o Delegado Francisco Vicente Badenes Júnior foi inexplicável e arbitrariamente retirado do caso. Deve-se esclarecer que o caso foi levado à capital federal para permitir que as investigações fossem efetivas e seguissem sem ameaças ou perseguições de qualquer tipo.

O Delegado Badenes também era o responsável pelas investigações dos assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira (05/06/2022) e do servidor da FUNAI Maxciel Pereira (03/08/2019). Importante frisar que sob sua presidência, o inquérito avançou razoavelmente e uma troca agora seria no mínimo temerária. Como afirmou o Coletivo Pelos Povos do Abacaxis, em carta divulgada aqui, a medida “lança sombras sobre o real motivo destas mudanças, e faz crer na possível interferência política nessa conjuntura”. O que pretende a Polícia Federal com essa constante mudança de delegados?

Assim, cabe ao diretor-geral da PF e ao seu chefe, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, darem as devidas explicações sobre o ocorrido. Caso contrário, a situação dará ensejo para que se acredite na tese de que políticos influentes do estado estão negociando com o governo federal a obstrução das investigações, para assegurar que o massacre siga impune.

Conforme nota de 17 de maio de 2023, o Coletivo Pelos Povos do Abacaxis reforçou que “só haverá justiça se os atuais indiciados forem regularmente responsabilizados na forma da lei e da Constituição”. “Só haverá justiça”, continua a manifestação, “se os demais violadores forem identificados, individualizados e também indiciados na investigação que continua”. Além da responsabilização criminal, “a indenização das vítimas e a proteção das testemunhas que presenciaram os fatos” é fundamental, alegam as organizações que integram o coletivo.

Nos últimos anos, inclusive como reflexo da impunidade e do abandono da população da região dos Rios Abacaxis e Mari-Mari, cresceu a invasão de garimpeiros, madeireiros e do tráfico de drogas.

As comunidades indígenas e ribeirinhas vivem em estado de grande vulnerabilidade, encurraladas pelo crime organizado de um lado e ameaçadas pelas forças de segurança estaduais de outro. Apesar de duas visitas realizadas pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), uma ainda em 2020 e outra em abril desse ano, poucas medidas efetivas foram tomadas pela administração federal.

É imperioso que os Ministérios dos Direitos Humanos e dos Povos Indígenas possam colocar as suas estruturas a serviço dos Povos Maraguá e Munduruku, além dos demais moradores de Borba e de Nova Olinda do Norte. Ademais, existem testemunhas que devem ser – na verdade, já deveriam ter sido – incluídas no Programa de Proteção, com aquilo que o estado brasileiro tem de mais avançado na área, considerando que seus supostos algozes ocuparam a alta cúpula de segurança pública do Amazonas.

A terceirização de responsabilidades é inaceitável para um governo que se diz comprometido com os direitos humanos e os povos indígenas. Já passou da hora de assumir uma postura mais assertiva, mediante uma resposta articulada nas mais variadas frentes. Entre elas, o Ministério do Meio Ambiente deve determinar a imediata mobilização do IBAMA para que realize operações de combate aos crimes ambientais que assolam a região.

Como muito bem reconhece o Relatório de Violências contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2023 (Cimi, p. 20), é preciso mais do que boas intenções e representatividade para romper com os desmandos do governo anterior e reverter os crimes que ameaçam as populações tradicionais do país:

“Saímos de um projeto anterior de morte aos povos. Mas as comunidades agora têm de enfrentar estruturas engessadas, sem recursos, influenciadas e negligenciadas por atores políticos mais preocupados em não se indispor com uma parcela do latifúndio que é predadora, disseminadora de agrotóxicos e de venenos, poluidora de rios, matadora de abelhas (nossas grandes aliadas na natureza), aliciadora de mão de obra escrava, queimadora de casas de reza. Matadora de gente; mas não da luta”.

O Brasil é signatário dos principais tratados internacionais de Direitos Humanos que exigem rigor no enfrentamento de uma situação sensível como essa. Entretanto, muitas perguntas permanecem sem respostas por um tempo longo demais. O país não possui os mecanismos suficientes para solucionar uma grave violação dos direitos humanos como essa?

Será preciso acionar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e aguardar mais uma vergonhosa condenação internacional?

Além do mais, o governo Lula vem insistindo em se colocar como líder internacional na área ambiental, garante de uma especial proteção ao território amazônico. Por isso, seria um vexame inaceitável que as forças lúcidas que ainda habitam o atual governo não se empenhassem para promover uma investigação rigorosa do Massacre do Rio Abacaxis, bem como não acionassem todos os instrumentos disponíveis de reparação das vítimas ribeirinhas e indígenas, que há mais de quatro anos estão esquecidas pelo poder público.

Aproximando-se do fim do segundo ano de seu mandato, é chegada a hora de se verificar o real engajamento do governo Lula com a pauta dos Direitos Humanos, a proteção da Amazônia e o cuidado com os empobrecidos.

O espaço para as promessas vazias e as meias palavras se esgotou. Agirá o atual governo para colocar fim à impunidade dos mandantes e executores do Massacre do Rio Abacaxis, promovendo as devidas políticas públicas de proteção social das populações atingidas? Ou seguirá inerte, omisso e conivente com os senhores do crime que trabalham incansavelmente para que a força dos poderosos da região prevaleça sobre a justiça e os direitos humanos?

Fiéis às palavras do Papa Francisco, seguirão as organizações sociais e eclesiais na sua rebelde aliança com o povo sofrido dos Rios Abacaxis e Mari-Mari. Afinal, “nos dias de hoje, a Igreja não pode estar menos comprometida, chamada como está a ouvir os clamores dos povos amazônicos, ‘para poder exercer com transparência o seu papel profético’”2. Se Brasília não for capaz de escutar o grito sufocado das vítimas, se irá até os confins do mundo para que a justiça e a vida prevaleçam sobre o crime e a violência atroz.

A memória dos que pereceram sob o arbítrio e dos sobreviventes das torturas policiais não será esquecida!


Notas

[1] ANDRADE, Matheus Gouvêia de. O que está por trás do aumento de policiais eleitos em 2024? DW Brasil, 11 out. 2024. Disponível aqui. Acesso em 12 out. 2024.

[2] FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia. nº 19.

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