Em semana de acentuada violência contra indígenas, comunidades Avá-Guarani, no Paraná, Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, e Kaingang, no Rio Grande do Sul, sofreram ataques armados
Retomada Fág Nor, do povo Kaingang, estabelecida às margens de rodovia em Pontão (RS). Foto: Cimi Regional Sul.
Os Kaingang da Retomada Fág Nor, em Pontão (RS), município localizado próximo à cidade de Passo Fundo (RS), sofreram dois ataques em menos de cinco dias, depois que as famílias decidiram retornar para uma área próxima ao seu território originário.
Os indígenas do povo Kaingang foram expulsos de sua terra no ano de 2014. Ruralistas da região, articulados por parlamentares de partidos extremistas como PP, Republicanos e PL, não aceitam que os povos indígenas tenham o direito de viver em suas terras originárias.
A comunidade da retomada Fág Nor, além de requerer o reinício dos estudos de identificação e delimitação de suas terras, paralisados na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), busca também dar visibilidade à realidade de absoluta vulnerabilidade dos povos indígenas no estado do Rio Grande do Sul.
O retorno dos indígenas ao seu território ocorreu na segunda-feira, dia 9 de julho. Na noite seguinte, 10 de julho, pessoas armadas passaram pela rodovia e dispararam várias vezes sobre os barracos, que estão situados às margens da estrada, num espaço de terra de domínio público, pertencente ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Ou seja, os Kaingang não ocupam terra privada, mas apesar disso são atacados.
Na madrugada de sábado (13) para domingo (14), homens armados atearam fogo num veículo da comunidade, que estava estacionado em frente aos barracos onde os indígenas se abrigavam do frio e da chuva.
Os ataques aos Kaingang da Retomada Fág Nor, apesar de reincidentes, não são isolados. Nessa mesma noite de sábado (13), fazendeiros do Paraná atacavam a retomada Avá-Guarani Arapoty, na Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá. Além de dispararem com armas de fogo sobre as famílias Avá-Guarani, os agressores queimaram os barracos e todos os seus alimentos.
Já durante a tarde de domingo (14), grupos de fazendeiros também iniciaram ataques armados contra os Guarani Kaiowá que estão em retomada no território de Panambi – Lagoa Rica, em Douradina, Mato Grosso do Sul. Durante os ataques, um indígena foi baleado no tekoha Guayra Kamby’i, que integra o território. A TI Panambi – Lagoa Rica já é uma terra oficialmente reconhecida, identificada e delimitada com 12,1 mil hectares no ano de 2011. Porém, desde então sofre com a inércia do Estado e segue com o processo administrativo de demarcação paralisado.
Judicialmente, para além da negligência estatal, o território é alvo de uma ação dominial que se encontra no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) sem resolução. De 2011 até o presente, sem poder contar com seu direito garantido, diversos grupos Kaiowá tentam retomar pequenas partes de sua terra, buscando condições mínimas de sobrevivência. O território, que deveria ser base para vida e cultura dos Kaiowá e Guarani, tem sido palco de ataques e confrontos com fazendeiros.
Em 2015, em um dos pesados ataques paramilitares sofridos pelas comunidades indígenas da região, o Ministério Público Federal (MPF) interceptou comunicações dos fazendeiros que planejavam ataques ordenados e articulados contra os indígenas. A Aty Guasu emitiu um pedido de socorro e teme um novo massacre no Mato Grosso do Sul se as autoridades não agirem rápido no sentido de garantir a integridade física dos Guarani e Kaiowá.
Sentindo-se legitimados pela vigência de uma lei inconstitucional, a Lei 14.701, os ruralistas têm atacado aos olhos de todos, à luz do dia ou na calada da noite, em qualquer tempo, sempre com certeza de impunidade
Comunidade Kaingang plantou hortaliças e mudas de bergamota na área retomada, onde sofreu dois ataques em cinco dias. Foto: Cimi Regional Sul.
O que há de comum nesses ataques, além da covardia e crueldade? Existe uma naturalização da violência que é avalizada pela inércia dos órgãos federais – que têm comprado, em boa parte dos casos, a versão do opressor – e, principalmente, pela manutenção em vigor da Lei 14.701/2023, que deturpa a Constituição Federal e foi promulgada à revelia da decisão da Suprema Corte que reafirmou os direitos dos povos indígenas.
Sentindo-se legitimados pela vigência de uma lei inconstitucional, os ruralistas têm atacado aos olhos de todos, à luz do dia ou na calada da noite, em qualquer tempo, sempre com certeza de impunidade.
A ocorrência de tantos casos de violência, com as mesmas características e num mesmo período, dá a certeza de que estas ações criminosas são conectadas e articuladas entre si, visando reprimir os povos e afrontar seus direitos.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), uma vez mais, denuncia esses casos de violência e pede a adoção de medidas políticas, jurídicas e administrativas no sentido de assegurar proteção aos indígenas e garantir que os agressores sejam responsabilizados criminalmente e que as terras indígenas sejam demarcadas.
14 de julho de 2024
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional), com informações da CPT Regional Rondônia
Moradoras e moradores das comunidades tradicionais Vila São João I e II, localizadas às margens da BR 319 em Porto Velho/RO e que estão sofrendo despejo devido a uma ação de usucapião obtida por um suposto proprietário das terras, participaram de reunião nesta segunda-feira (08) com a Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Estado de Rondônia (DPE/RO). O objetivo é reivindicar das autoridades a realização de um estudo na comunidade, a partir da sua história de mais de um século, e dos direitos que foram infringidos dentro do processo de expulsão que estão sofrendo.
As famílias já vêm denunciando as ameaças e a concretização dos despejos desde o mês de março, quando protestaram em frente ao Incra (confira a divulgação aqui).
A comunidade relata que contou com a representação de um advogado em 2015, quando se iniciou o processo, mas que não havia comunicação com a comunidade, ficando totalmente desamparadas do acesso à Justiça. A expectativa é de que, com a renúncia do mandato, a DPE junte a documentação e possa ingressar nos autos, solicitando a suspensão do processo.
Histórico - As famílias afirmam que o problema começou depois que a fazenda vizinha ganhou o direito do usucapião de uma área de 27 hectares, mas acabou averbando o total 100 hectares de forma irregular no Cartório de Imóveis, prejudicando os legítimos herdeiros do titular do local. Depois disso, teriam passado a vender a área grilada, desrespeitando a posse tradicional e direitos dos descendentes do titular da área. Ainda, contam, que quando as moradoras e moradores da Vila São João se declararam descendentes diretos do proprietário da área, foram acusados de terem falsificado os registros de nascimento e não serem descendentes legítimos do titular da área.
Uma moradora que prefere não se identificar, desabafa: "Nós estamos aqui muito antes de fazerem a ponte. Ninguém queria vir pra cá atravessando com balsa. Depois dessa ponte, o inferno começou."
Já segundo a moradora Nalva, o mais importante é atender o direito à moradia garantido na Constituição, e que foi negado nesse processo.
"Eu moro desde 2012 na comunidade São João, mas a comunidade existe há mais de 30 anos. É uma comunidade formada por pessoas de baixa renda, tem pessoas analfabetas, indígenas, quilombolas, seringueiros, pessoas idosas que nasceram e estudaram lá. Em 2015, uma pessoa adquiriu o usucapião dessa localidade e passou a cobrar dos moradores se quisessem permanecer nas suas casas. As pessoas reivindicaram, mas perderam; a Justiça não foi favorável às pessoas da comunidade, não dando direito de posse às famílias. Nosso pedido coletivo é ficar na terra que compramos de boa fé, e que escolhemos para morar. Muitos têm comprovante de que nasceram na terra, e que vivem ha muitos anos, e estamos sendo ignorados. Precisamos do nosso direito ao uso da terra e ao usucapião coletivo.”
Texto e imagens: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
A Articulação das CPTs da Amazônia esteve, entre os dias 4 e 6 de julho, em mais uma visita para analisar o impacto do assédio das empresas de crédito de carbono (REDD+) aos povos e comunidades da floresta, desta vez no Marajó/PA, uma das regiões de maior concentração destes projetos no país.
Participaram agentes pastorais dos regionais Araguaia-Tocantins e Pará e equipe CPT-Marajó. A comunidade visitada foi Santo Ezequiel Moreno, no município de Portel, uma comunidade das águas que sobrevive do extrativismo do açaí e da agricultura familiar, com manejo sustentável do meio ambiente.
A visita foi um intercâmbio de escuta da comunidade, sendo uma iniciativa encaminhada a partir o encontro de formação da Grande Região Norte, ocorrido em 2023 em São Luís/MA.
Pesquisa elaborada pela Fundação Rosa Luxemburgo e pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ) mapeou 107 projetos privados de compensação ambiental, que incluem uma área total de quase 19 milhões de hectares, em 15 estados.
O Pará é o estado com o maior número de projetos (34), abrangendo 12 comunidades, sendo 7 delas na região do Marajó. Os resultados estão publicados no relatório “Em Nome do Clima: Mapeamento Crítico – Transição Energética e Financeirização da Natureza”, lançado em março, e também no relatório Conflitos no Campo Brasil 2023, publicado pela CPT em abril.
“A região do Marajó tem 97% de suas áreas naturais, muita floresta, muita água, mangue, área natural, devido à luta e resistência das comunidades. O mercado vê agora a natureza protegida como uma forma de ganhar dinheiro e de especular em cima disso, e toda essa biodiversidade preservada chamou a atenção das empresas dessa área. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) também contribuiu muito para autodeclaração das terras, e inclusive abrindo espaço para a grilagem”, afirma Carlos Augusto Pantoja Ramos, engenheiro florestal e assessor da CPT.
Resistindo às promessas e contratos danosos ao seu próprio futuro, as 57 famílias da comunidade Santo Ezequiel Moreno se fortalecem a partir da associação e do cooperativismo, entendendo que sua maior riqueza é a natureza, o conhecimento e as maneiras de cuidar dela desde os seus ancestrais.
“A gente não aceitou o carbono porque vivemos bem, já preservamos a área onde a gente mora, e também estamos prevenindo os nossos filhos no futuro. A gente também não ia poder fazer muitas coisas nas nossas áreas de plantio, de onde tiramos a renda para a família, como fazer casas, suprir outras necessidades, tirar o açaí. Fizemos várias reuniões para conversar com as famílias da comunidade, e graças a Deus a maioria não aceitou. Tem outras comunidades vizinhas que assinaram e estão passando necessidades, sem receber ajuda dessas empresas”, lembra Maria Eliane Alves Araújo, moradora na comunidade ha 13 anos.
Na segunda década do século XXI, o discurso sobre mudanças climáticas e a transição para uma energia dita como limpa, promovido por corporações e governos, esconde um aumento crescente e devastador da exploração de territórios. Isso ocorre tanto por meio de projetos minerários quanto de produção de energia e infraestrutura. Portanto, é falso afirmar que se trata de uma verdadeira transição para energia limpa. Na realidade, trata-se de mais mineração nos territórios, causando sérios danos ecológicos e sociais em vários países, especialmente no Sul Global.
Ainda, sob a fachada de progresso e desenvolvimento, as corporações e os governos promovem falsas promessas de um futuro melhor. No entanto, a exploração de novas fronteiras minerárias e de outros grandes projetos do capital é apenas mais um capítulo de uma longa história de promessas vazias e exploração contínua. Um relatório do Banco Mundial destaca que para alcançar uma grande capacidade de “energia renovável” exigirá um aumento drástico na extração minerária de materiais como o lítio, agravando a crise de sobre- extração e seus impactos negativos inerentes, como o desmatamento, destruição de solos, perda de biodiversidade, contaminações e danos aos recursos hídricos.
O colonialismo energético está por trás desses conflitos, perpetuando um modelo econômico extrativista que beneficia poucos em detrimento das populações locais e da destruição de muitos territórios que são decepados e incorporados na “máquina do lucro”. O capitalismo em crise busca se reconfigurar, agora com o mito da energia e produção verde.
No Vale do Jequitinhonha, o chamado colonialismo energético se manifesta pela desapropriação, fragmentação e transformação de terras e territórios através de megaprojetos de mineração. Esse modelo de exploração imposto à região é o mesmo que se espalha por toda Minas Gerais. Não existe mineração verde ou sustentável. A mineração consiste em arrancar o minério da terra, exportá-lo, às vezes processa-lo e deixar um rastro de destruição. Essa prática causa profundos impactos nas práticas e valores culturais, ecológicos e agrícolas, perpetuando um modelo econômico extrativista que beneficia poucos no Norte Global, em detrimento das populações locais.
Essa é uma roupagem nova para um processo já visto muitas vezes no Vale do Jequitinhonha. Ciclos de exploração econômica têm se repetido desde o século XVIII, com as riquezas sendo constantemente extraídas em benefício de poucos. Desde a mineração de pedras preciosas, a criação de grandes fazendas e monocultivos de eucalipto e a produção de energia com a barragem de Irapé. Na atual busca pela extração minerária do lítio vemos a usurpação de terras sob os velhos pretextos de "desenvolvimento" e "progresso". Desta forma, os habitantes do Vale têm sido sistematicamente prejudicados e marginalizados.
A Comissão Episcopal Regional para Ecologia Integral e Mineração do Regional Leste 2 da CNBB e as instituições abaixo assinadas denunciam veementemente essas práticas predatórias e reitera que as promessas de desenvolvimento e riqueza para a região não mais nos convencem. As comunidades tradicionais e os povos do Vale do Jequitinhonha continuarão a resistir e lutar pela justiça e pelo reconhecimento de seus direitos.
Belo Horizonte, 04 julho 2024
Comissão Episcopal Regional para Ecologia Integral e Mineração do Regional Leste 2 da CNBB Rede Igrejas e Mineração Minas Gerais
Comissão Pastoral da Terra Caritas Brasileira
Conselho Indigenista Missionário Conselho Pastoral dos Pescadores
Comissão de Meio Ambiente da Província Eclesiástica de Mariana Serviço Interfraciscano de Justiça Paz e Ecologia
Fórum Permanente em Defesa da Bacia do Rio Doce Instituto Padre Nelito Dornelas
Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional),
com informações das regionais da CPT Rondônia e Acre
Legenda: Os montes de bancos de areia se formam no Rio Madeira, dificultando a navegação e a pesca.
Crédito: Registro da comunidade Terra Firme - Porto Velho/RO
Em meio às consequências da crise climática que afetaram mais fortemente a Amazônia em 2023, o ano de 2024 parece trazer perspectivas ainda mais difíceis para a vida das populações tradicionais e ribeirinhas. É o que acontece com as comunidades junto aos rios Madeira (em Rondônia) e Acre (no estado de mesmo nome), que estão percebendo a diminuição rápida dos níveis nos últimos meses, principalmente com o início do “verão amazônico”, como é chamado o período de escassez de chuvas e aumento nas temperaturas de junho a agosto.
O Rio Madeira, que teve recorde de cheia histórica em 30 de março, alcançando 19,74 metros de inundação (quase três metros acima da cota), chegou em junho a níveis preocupantes para especialistas e principalmente as famílias. Segundo o Boletim Hídrico do Governo do Estado de Rondônia, o nível caiu dos 4,55 metros no dia 17 para 4,09 metros na segunda-feira passada (24), menos da metade da medição registrada em 2023, quando o rio estava com 8,37 metros de profundidade. Se seguir essa tendência, o rio pode atingir a cota de escassez hídrica, abaixo de 1,70 metro.
A agricultora Maria de Fátima, presidente da associação da comunidade Terra Firme, em Porto Velho/RO, compartilha do sofrimento de 30 famílias residentes na localidade, que além da falta de água, vivenciam o aumento do calor. “A situação está alarmante, porque as comunidades dependem do rio pra se deslocar, se alimentar, pra tudo. E também não temos condição nenhuma de consumir a água nem os peixes do Rio Madeira, por causa da poluição do mercúrio dos garimpos.”
A solução da prefeitura para o acesso à água tem sido a perfuração de poços artesianos, uma medida que também encontra dificuldades para se concretizar. Depois de 16 anos de reivindicação e espera da população, os primeiros poços estão começando a ser perfurados em Terra Firme e também nas comunidades vizinhas de Papagaios e Santa Catarina, além dos distritos de Calama e Demarcação.
Na outra margem do rio Madeira, em Humaitá (AM), as comunidades ribeirinhas também têm sofrido com a estiagem. Sem contar com políticas públicas de fomento a produção, de direitos básicos, como saúde, educação, seguro para a pesca, além da falta de regularização do território, elas veem como única saída a extração do garimpo, o que traz impactos ambientais tanto em seu funcionamento quanto nas destruições das dragas realizadas pelos órgãos federais.
“O rio acaba morrendo do mesmo jeito, porque as explosões destróem tudo e também contaminam a água com os produtos químicos. Tem pessoas até com a saúde mental afetada, porque estão sem alternativa para sobreviver”, afirmam representantes das comunidades.
Estiagem deixa todos os municípios do Acre em emergência ambiental
Na mesma região, o estado do Acre sofre as consequências da crise climática apenas alguns meses após a cheia recorde que deixou milhares de famílias desabrigadas ou desalojadas, superando as expectativas e a estrutura mesmo daquelas que já conviviam com as enchentes. No sábado (29), o Rio Acre chegou a registrar 1,78 metro, um sinal dos extremos dos impactos das mudanças.
No último dia 11 de junho, o governo do Estado decretou situação de emergência ambiental em todos os 22 municípios do estado até 31 de dezembro. A Secretaria do Meio Ambiente (Sema) ficou com o encargo da coordenação e articulação interinstitucional dos órgãos e entidades estaduais, para a definição de estratégias de prevenção e de combate ao desmatamento e incêndios. Contudo, as comunidades dependem de outras ações concretas contra a poluição, que também tem atingido os cursos de água.
Manter um trabalhador em situação análoga à escravidão custa apenas R$ 4.115,89 a empregadores
Por Bianca Pyl e Marcelo Soares | The Intercept Brasil
Cadeia produtiva da cana de açúcar. Foto Tatiana Cardeal/Divulgação Papel Social. © Tatiana Cardeal
Em 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego encontrou 3.190 pessoas em condições análogas à escravidão em todos os estados do país. Os empregadores flagrados pagaram R$ 12,8 milhões aos trabalhadores. Ao todo, no ano, foram 707 operações realizadas para coibir esse crime, sendo que em 345 houve flagrante de trabalho escravo.
Esses dados foram anunciados como um recorde do estado – e são mesmo. Desde 2009, o Brasil não resgatava tantas pessoas submetidas à escravidão contemporânea. Mas, por trás dos números superlativos, há um resultado degradante: ainda sai barato escravizar no Brasil.
No ano passado, os empregadores flagrados pagaram uma média de R$ 4.115,89 por pessoa escravizada em verbas rescisórias. Isso equivale a pouco mais de três salários mínimos.
Um valor muito baixo para quem cometeu uma violação de direitos humanos, um crime que vai muito além da esfera trabalhista – e sequer dá conta do que o trabalhador perdeu durante o tempo de serviço.
Trabalhador da fruticultura que manuseia agrotóxicos e fertilizantes exibe feridas pelo corpo. Foto: Tatiana Cardeal/Divulgação Papel Social.
Desde 1995, quando o governo brasileiro criou grupos móveis de fiscalização de combate ao trabalho escravo, 63.516 trabalhadores foram retirados de condições análogas à escravidão. E os empregadores pagaram um total de R$ 146.196.587,83 em verbas rescisórias no momento da fiscalização, de acordo com os dados do Ministério do Trabalho e Emprego.
Os valores das rescisões estão disponíveis no site do MTE desde 2000, quando o salário mínimo valia R$ 151. As quantias dos anos anteriores não estão disponíveis.
Atualizando os dados de cada ano pela inflação, os empregadores teriam pago o equivalente a R$ 321 milhões desde o início. Isso dá uma média de R$ 5.736,82 – 4,3 salários mínimos – por trabalhador no período.
Além das verbas rescisórias, os trabalhadores resgatados têm direito a três parcelas de seguro-desemprego, pagos pelo Ministério do Trabalho, no valor de um salário mínimo.
“Por que esses trabalhadores têm que ter como base dos seus direitos um salário mínimo?”, questiona Gildásio Silva Meireles. Ele foi submetido a condições degradantes de trabalho em uma fazenda no Maranhão, em 2005.
Trabalhador da cadeia produtiva do café. Foto: Tatiana Cardeal/Divulgação Papel Social.
Hoje, trabalha com vítimas de trabalho escravo no Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia, no Maranhão, e não vê a situação melhorar. Muitos trabalhadores acabam sendo resgatados pela fiscalização mais de uma vez porque a situação após o flagrante não muda.
“O que o trabalhador ganha não é o suficiente para sustentar a família durante muito tempo e, como geralmente ele não tem uma profissão [fixa], ele se submete novamente ao risco de ser escravizado”, explica.
Os empregadores, além disso, não são penalizados e voltam a cometer o mesmo crime. “Eles pagam uma multa pequena, ficam com o nome na justiça durante muitos anos esperando o julgamento, enquanto isso não acontece e ele continua agindo da mesma maneira”, relata Meireles.
Água suja com fezes de animais e alimentação escassa
A agropecuária é a atividade econômica com mais casos de resgate de trabalhadores –, com 27% do total, segundo os dados do MTE. Era essa a atividade da propriedade em que Meireles foi resgatado.
Meireles contou ao Intercept que, na fazenda, a água que ele e seus colegas bebiam era a mesma que o gado, os porcos e outros animais consumiam. “É aquela água de igarapé, e desce todas as fezes e sujeira dos animais. O trabalhador tinha que coar a água para beber e para cozinhar”.
Pela manhã, era servido um café puro e, às vezes, com farinha de puba, extraída da mandioca. No almoço era só arroz com feijão. “Se o trabalhador tivesse sorte, ele achava alguma caça no meio do mato e fazia o preparo para se alimentar”, lembra.
Meireles prefere não revelar o nome da propriedade e do empregador que o submeteu a condições análogas à escravidão por medo de represálias. Ele e outros empregados faziam a limpeza manual do pasto, o chamado “roço de juquira”.
Trabalhadores da cadeia produtiva do gesso. Foto: Vitor Shimomura/ Divulgação Papel Social.
“Era eu e mais 15 pessoas. Fiquei cinco meses trabalhando e resolvi denunciar a situação. Lá tinha pessoas que estavam há dois, três e até cinco anos, e não conseguiam sair”, relata.
Para escapar da fazenda e fazer a denúncia, Meireles se articulou com alguns trabalhadores e conseguiu levantar dinheiro para fugir, em um momento de distração na fazenda. Percorreu 230 km do município de Santa Luzia, onde ficava a propriedade, até o Centro de Defesa dos Direitos Humanos em Açailândia. Chegando lá, esperou até que um grupo móvel de fiscalização do MTE aparecesse.
“Só que passaram-se 30 dias e o grupo móvel não apareceu e eu fiquei preocupado com a situação dos companheiros que tinham ficado na fazenda”, conta. Então, decidiu voltar. “Eu inventei que tinha ido para lá encontrar uma moça e fiquei na casa dela durante 30 dias. Eu fui muito pressionado e ameaçado”.
Mais 30 dias se passaram e a fiscalização não apareceu, então Meireles decidiu fugir novamente para reforçar a denúncia. A fiscalização ainda demorou mais três meses para ir até a fazenda e resgatar o grupo de trabalhadores.
No final das contas, o fazendeiro não foi preso e os trabalhadores receberam só as verbas rescisórias. “Eu entrei com um processo por danos morais em 2005 que só saiu no ano passado, recebi um valor baixo, mas aceitei pela precisão que estava passando no momento”, lamenta. Os outros trabalhadores do grupo não entraram na Justiça Trabalhista.
Após a ação, Meireles decidiu trabalhar no Centro de Direitos Humanos que o ajudou. “Eu decidi lutar com todas as minhas forças para combater o trabalho escravo. Hoje em dia eu faço treinamentos, formações com os trabalhadores. Eu também tenho acompanhado alguns trabalhadores que foram resgatados”.
Vale reforçar que trabalho escravo não é uma mera infração trabalhista, como a bancada ruralista e o ex-presidente Jair Bolsonaro costumam defender.
O crime está previsto no art. 149 do Código Penal e define trabalho análogo ao escravo como aquele em que as pessoas são submetidas a jornadas exaustivas, a trabalhos forçados, condições degradantes e são impedidas de deixar o local de trabalho por conta de dívida contraída com empregador ou por ameaça e coerção.
A lei prevê pena de reclusão por dois a oito anos e multa, além da pena correspondente por violência. Dificilmente, porém, são aplicadas penas mais duras do que a cobrança de verbas rescisórias.
Por que as verbas rescisórias são baixas?
Conversamos com Lucas Reis, auditor fiscal do trabalho que atua nas fiscalizações de combate ao trabalho escravo, para entender por que esses valores pagos aos trabalhadores são tão baixos.
“As verbas rescisórias são todos os direitos que o trabalhador teria se tivesse sido contratado regularmente desde o início do trabalho”, ele explica. Isto é, salário de acordo com piso da categoria, décimo-terceiro, férias, horas extras. Esse valor é calculado pelos auditores fiscais do trabalho no momento do resgate.
“O valor acaba sendo baixo porque, infelizmente, os direitos dos trabalhadores no geral são poucos. Eu defendo que os direitos deveriam ser ampliados, principalmente, em caso de resgate de trabalho escravo”, opina o auditor.
Trabalhadores da reciclagem. Foto: Giuliano Bianco/ Diuvlgação Papel Social.
A fiscalização do Trabalho também aplica multas referentes aos autos de infração por cada descumprimento da legislação.
Mas o valor é irrisório. No caso de flagrante de trabalho infantil, por exemplo, a multa vai de R$ 416,18 por “menor” até o máximo de R$ 2.080,90. Em 2023, foram 2.564 crianças e adolescentes retirados do trabalho infantil. Questionamos o MTE quanto foi pago de rescisões para cada uma. O órgão afirmou que “não possui banco de dados com informações referentes a valores totais pagos em verbas rescisórias”.
Uma verba indenizatória pode ser paga via dano moral individual proposto pelo Ministério Público do Trabalho, seja por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta ou via ação civil pública. Porém, isso não acontece em todos os casos e os valores variam muito. Cada procurador analisa de acordo com a gravidade da situação encontrada pela fiscalização.
De acordo com a assessoria de comunicação do Ministério Público do Trabalho, o MPT, em 254 fiscalizações realizadas com a participação do órgão em 2023, foram arrecadados R$ 14,31 milhões em danos morais coletivos e R$ 8,7 milhões em danos morais individuais. O MPT não participa de todas as ações de fiscalização do Ministério do Trabalho, por isso os números são menores.
Não tivemos acesso à quantidade de trabalhadores resgatados nessas operações para saber qual foi a média que cada um recebeu por dano moral.
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