Empresa anunciou licença ambiental da maior mina de ouro do Brasil antes de o governo do Pará formalizar medida. Projeto é uma bomba-relógio ambiental, ao lado de Belo Monte
(Fonte: ISA / Imagens: André Villas Bôas e ISA).
A empresa canadense Belo Sun anunciou, ontem (2/2), a concessão da licença de instalação do projeto Volta Grande de Mineração, vizinho à hidrelétrica de Belo Monte, em Senador José Porfírio (PA), antes do governo paraense formalizar a medida. A mineradora publicou um release em inglês com a notícia antes do fim da reunião da equipe da Secretaria de Meio Ambiente estadual (Semas) que discutiria a autorização. O governo do Pará é chefiado por Simão Jatene (PSDB).
Por volta das 17h, a reportagem do ISA teve acesso ao release da empresa. Pouco depois, a assessoria de imprensa da Semas negou a informação. A licença só foi confirmada no site da secretaria à noite, horas mais tarde.
“O fato da empresa ter anunciado que tinha conquistado a licença antes mesmo de sua formalização e publicação pelo órgão ambiental responsável demonstra como foi tratado o licenciamento do empreendimento, com total desrespeito pelos procedimentos, sem transparência, e com displicência e descaso com a vida das pessoas que vivem na Volta Grande do Xingu”, critica Adriana Ramos, coordenadora da Política e Direito do ISA.
Previsto como a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil, o empreendimento é uma bomba-relógio ambiental, com potencial de causar uma tragédia das dimensões do rompimento da barragem em Mariana (MG), no final de 2015. A área prevista para a mina já é seriamente impactada pela hidrelétrica: a redução de mais de 80% da vazão da água em 100 quilômetros do Rio Xingu causou mortandade de peixes, piora da qualidade da água e alterações drásticas no modo de vida de populações indígenas e ribeirinhas.
Conforme o estudo de impacto ambiental entregue à Semas, o projeto minerário prevê deixar montanhas gigantes de rejeito com aproximadamente duas vezes o volume do Pão de Açúcar e a construção de um reservatório também de rejeitos, ainda mais tóxicos do que os liberados no desastre de Minas Gerais. A mina tem o estudo de viabilidade ambiental assinado pelo mesmo engenheiro indiciado por homicídio pelo rompimento da barragem de Mariana. Saiba mais.
A licença atropela parecer da Fundação Nacional do Índio (Funai) que exige a revisão dos estudos sobre o componente indígena, pois entende que a versão apresentada pela Belo Sun é insuficiente para avaliar os impactos do empreendimento sobre os povos que ali vivem.
“Contrariando a manifestação das instituições públicas responsáveis pelas populações indígenas, novamente esses povos que são vulneráveis são deixados em uma situação de fragilidade sobre os impactos de uma obra como essa, a exemplo do que aconteceu com Belo Monte”, aponta André Villas-Bôas, secretário executivo do ISA.
A Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Pará ingressaram com duas ações para impedir a licença. O Ministério Público Federal (MPF) enviou à Secretaria de Meio Ambiente do Pará uma recomendação contra a medida. Já havia duas outras ações anteriores movidas pelo MPF contra o empreendimento.
Consulta aos povos indígenas
Ben Hur Daniel da Cunha, defensor público federal, explica que a licença pode ser suspensa até que sejam feitos os estudos do componente indígena. “Não foi obedecido o procedimento que exige que sejam feitos os estudos prévios de impacto ambiental, no caso o impacto sobre a população indígena. Essa decisão impede que essas comunidades exerçam um direito básico, que é participar das decisões sobre suas vidas”, alerta. O pedido da DPU deve ser analisado até a próxima quarta (8/2) e requer a manifestação do governo paraense e da Belo Sun.
As comunidades indígenas diretamente afetadas não foram consultadas sobre o projeto, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil. Apesar disso, o comunicado da empresa publicado nesta quinta diz expressar “gratidão aos governos estadual e municipal, bem como às comunidades locais pelo seu apoio a esse projeto”.
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Em abril de 2016, a Semas chegou a marcar uma cerimônia para anunciar a licença, mas voltou atrás depois da repercussão negativa. Alguns meses depois, um relatório da ONU sobre Povos Indígenas no Brasil denunciou a situação. “Uma licença foi emitida pelo governo do Pará para o projeto de mineração Belo Sun, que está bem próximo da hidrelétrica de Belo Monte e que afeta diretamente a comunidade dos Juruna. Isso aconteceu na ausência de consulta para obter o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas envolvidos e sem a condução do necessário e urgente estudo dos impactos ambientais, sociais e de direitos humanos acumulados. Os potenciais são assim um assunto de grave preocupação”, escreveu a relatora Victoria Tauli-Corpuz (leia mais).
Uma das condições para a concessão da licença ambiental de Belo Monte foi o monitoramento do trecho de vazão reduzida do Rio Xingu por seis anos, já que os estudos indicaram que não havia certeza sobre os impactos socioambientais da obra na área. Um novo megaempreendimento não poderia, portanto, ser implantado na região antes desse período.
Em maio do ano passado, o secretário de Meio Ambiente do Pará, Luís Fernandes Rocha, prometeu realizar os estudos sobre os impactos socioambientais acumulados e sinérgicos dos dois megaempreendimentos antes de tomar qualquer decisão quanto à licença. Procuradores, defensores públicos, ambientalistas e organizações indígenas e de ribeirinhos exigem que, além da avaliação desses impactos, um plano socioambiental que garanta as condições de vida das populações locais seja apresentado pela administração estadual.
O projeto “Volta Grande”
A mineradora tem a pretensão de se instalar a 9,5 km de distância da Terra Indígena (TI) Paquiçamba, a 13,7 km da TI Arara da Volta Grande do Xingu e também próxima à TI Ituna/Itatá, habitada por indígenas isolados (saiba mais).
A mina encontra-se próxima da Vila da Ressaca, comunidade de 300 famílias que depende da roça, pesca e do garimpo artesanal para sobreviver. Se o projeto “Volta Grande” sair do papel, elas terão que ser reassentadas.
Em 12 anos, a estimativa é que serão extraídas 600 toneladas de ouro. Ao final da exploração, as duas pilhas gigantes de rejeito de material estéril quimicamente ativo terão, somadas, área de 346 hectares e 504 milhões de toneladas de rochas, sem previsão para sua remoção.
Reunião debateu regularização fundiária de comunidades quilombolas no Oeste do Pará, com a presença de gestores do Incra, representantes das comunidades quilombolas, ministérios públicos e organizações sociais. Próxima reunião será em abril.
(Fonte/Foto: Ascom Incra Oeste do Pará)
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) promoveu na quarta-feira, 1º de fevereiro, na sede da autarquia em Santarém (PA), a primeira reunião do ano da mesa permanente de acompanhamento da política de regularização fundiária das comunidades quilombolas no Oeste do Pará.
O encontro teve a presença de gestores do Incra, inclusive o superintendente regional, Rogério Zardo; as representações das comunidades quilombolas dos municípios de Santarém, Óbidos, Oriximiná e Alenquer; dos Ministérios Públicos Federal (MPF) e do Estado do Pará (MPE/PA); e de organizações sociais, como Terra de Direitos e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A mesa é um espaço de participação da sociedade e de transparência relacionadas às ações do Incra para promover a regularização fundiária de territórios quilombolas. Durante as reuniões, que ocorrem a cada três meses, é discutida a situação de cada processo.
Atualmente, existem 18 processos de regularização quilombola no Oeste do Pará em tramitação no Incra: nove de Santarém; seis de Óbidos; e três de Oriximiná. O processo em estágio mais avançado é o da comunidade Maicá, que está em fase de titulação pela Prefeitura de Santarém, em área que pertence ao município.
Em três processos, o Incra concluiu os estudos técnicos e encaminhou à Secretaria de Patrimônio da União (SPU), em razão de se tratar de áreas de várzea. É o caso das comunidades Arapemã e Saracura, em Santarém, e Nossa Senhora das Graças, em Óbidos. O Incra tem acompanhado esses processos perante a SPU.
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Três processos estão com os Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) concluídos e, brevemente, serão avaliados pelo Comitê de Decisão Regional do Incra. Estão nesse estágio os processos das comunidades Murumuru e Maria Valentina, em Santarém, e Arapucu, em Óbidos.
Para este ano, além de acompanhar os processos que dependem de atos administrativos de outros entes públicos e da Presidência do Incra, a Regional do órgão no Oeste do Pará dará prosseguimento à elaboração de peças técnicas, como relatórios antropológicos e estudos agroambientais.
A próxima reunião da mesa quilombola foi agendada para o dia 25 de abril.
Pronera
Ao final do encontro, o Incra distribuiu às lideranças quilombolas formulários para o levantamento de demandas na área da educação. O objetivo é subsidiar projetos passíveis de serem financiados pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que abrange cursos de educação básica (alfabetização, ensinos fundamental e médio), técnico-profissionalizante de nível médio, de nível superior e de especialização.
Desejosos de viver conforme o modo de vida Guarani, os Guarani Mbya retomaram uma área de ocupação tradicional no Balneário de Maquiné (RS), com natureza preservada e ambiente propício ao plantio e ao artesanato, por exemplo. As famílias aguardam a demarcação das terras.
(Fonte: Cimi / Fotos: Carlos Latuff)
Cerca de 30 famílias Guarani Mbya retomaram neste final de semana uma área de ocupação tradicional no Balneário de Maquiné (RS). O território está sobreposto pelo Centro de Pesquisas do Litoral Norte da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro) - um projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa, em 21 de dezembro de 2016, extinguiu a Fundação em todo o estado.
Porção de Mata Atlântica preservada, fauna e flora diversa, um rio, matéria-prima farta para artesanatos e terra propícia ao plantio estão mantidos nos 300 hectares de área. "Muito tempo que ocupamos esse litoral. Mas aí fomos sendo expulsos. Colono chegava e tirava. Nossos velhos decidiram ir voltando. Seguimos nessa volta. Queremos agora a demarcação", explica o cacique André Benites.
Os Guarani Mbya ocuparam um dos pavilhões do Centro de Pesquisas. O presidente da Fepagro, Adoralvo Schio, afirmou à rádio Litoral Mania que não há uma definição pelo Governo do Estado do que será feito. Todavia, informações extra-oficiais dão conta de que um pedido de reintegração de posse estaria sendo arquitetado pelo Poder Público. Nada, porém, está confirmado.
Se antecipando a tal possibilidade, procuradores do Ministério Público Federal (MPF) visitam os Guarani Mbyá na tarde desta terça-feira, 31, "com o objetivo de tranquilizar os indígenas e ouvi-los", explica o Coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) - Regional Sul, Roberto Liebgott. Distante 500 quilômetros da capital Porto Alegre, a nova aldeia Guarani Mbyá já recebeu a solidariedade de outras comunidades.
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Cacique da Aldeia Tekoa Anhetenguá, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, José Cirilo Morinico declarou ao Amigos da Terra Brasil que soube da retomada, se somou. “Tenho neto já. Com uma pequena área dentro da cidade de Porto Alegre não tem condições de ser criado dentro da cultura dele. Sou solidário aqui porque vai ampliando o território dos Guaranis, porque vamos ter mais acesso a viver na nossa cultura. Hoje vivemos em pequenas áreas como um passarinho cercado”.
Os indígenas afirmam que o principal desejo é de viver conforme o modo de vida Guarani. "Nosso povo vive de um jeito muito ruim no Litoral, e no resto do RS. As áreas que nos tem dado são imprestáveis, sem nada para seguir a vida. Aqui tem futuro para nós. Tudo que nós precisamos está aqui. Árvores com frutas, terra para plantar, água para beber", relatou o cacique André Benites em entrevista ao cartunista Latuff.
Solidariedade aos Guarani Mbya
A entidade Amigos da Terra Brasil está recolhendo doações aos Guarani Mbya. A CasaNat, local destinado a recolher os donativos, fica na Rua Olavo Bilac, 192, Bairro Azenha, Porto Alegre. Para outras informações e horário, os organizadores pedem aos doadores que entrem em contato pela página da entidade no facebook.
"Neste exato momento, guerreiros e guerreiras indígenas estão precisando do apoio das pessoas que são adeptas à causa e entendem que é necessário lutar contra estas injustiças do passado, para divulgação e fortalecimento da luta", diz trecho de chamamento público veiculado nas redes sociais pelos apoiadores dos Guarani Mbya.
Espaço carrega a missão da formação política de militantes de movimentos populares de todo o mundo.
(Por Mayara Paixão – Brasil de Fato)
Uma escola construída pelos sem-terra e voltada para a formação política dos trabalhadores: esse é um dos principais significados da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) que, na última segunda-feira (23), completou 12 anos de inauguração.
Com sua construção finalizada em 2005 graças ao trabalho voluntário de mais de mil trabalhadores sem terra e simpatizantes, a ENFF consolidou-se como um espaço de formação política de militantes de movimentos populares e organizações de todas as partes do mundo. Coordenada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a escola está em permanente construção física, política e pedagógica. A ENFF se localiza no município paulista de Guararema, a 70 km da capital.
Ao longo destes 12 anos, tem se tornado um espaço de referência internacional, com professores e alunos vindos de vários países, especialmente os da América Latina, permitindo um intercâmbio cultural entre movimentos dos mais diversos lugares para discutir, aprender e formar iniciativas conjuntas sobre o panorama político social sob o olhar da classe trabalhadora.
Em conversa com o Brasil de Fato, a mexicana Paola Alcázar, que participou do curso de Teoria Política Latino-Americana na ENFF em 2008, lembrou com grande carinho da escola e dos frutos que o curso lhe rendeu. "Foi muito revelador conviver com mais de 70 pessoas de diferentes organizações da América Latina, isso nos permitiu conviver com outros espaços organizados e também continuar com uma conexão muito forte, não só de amizade, mas também com pessoas que seguem lutando em diferentes países e fazendo iniciativas contra o neoliberalismo selvagem", diz.
Hoje militante da organização Jóvenes Ante la Emergencia Nacional (JEN) e no Crianza Feminista, Paola explica que um dos aprendizados que adquiriu durante sua estada na ENFF é a possibilidade de resgatar a América Latina e refundá-la, tendo como exemplos o pensamento bolivariano e o guevarista. "Este pequeno espaço, que parece uma escola, na verdade é uma trincheira de luta muito forte que se sustenta e incentiva a formação política latino-americana. É muito importante saber que, apesar das crises, aqui seguimos", completa.
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De acordo com dados da própria escola, cerca de 24 mil pessoas já participaram de cursos, seminários e conferências. Mais de 500 professores — todos voluntários e oriundos do Brasil e demais países latino-americanos — apoiaram a escola ministrando cursos nas áreas de História Social do Brasil, Conjuntura internacional, Sociologia Rural, entre outros.
A coordenadora Política Pedagógica da ENFF, Rosana Fernandes, explica que o projeto ainda enfrenta muitos desafios a serem vencidos diariamente. "Entre os desafios, estão questões econômicas mas, especialmente, manter vivo o legado do professor Florestan Fernandes, que inspira a classe trabalhadora para o processo de formação e construção de uma nova sociedade".
A Escola também possui parceria com 35 universidades, com as quais oferece cursos superiores e de especialização, e 15 escolas de formação em outros países.
Mais informações sobre a ENFF no site: http://amigosenff.org.br/
Na sexta-feira, enquanto Donald Trump tomava posse em Washington, o papa Francisco concedia no Vaticano uma longa entrevista ao EL PAÍS, em que pedia prudência ante os alarmes acionados com a chegada do novo presidente dos Estados Unidos – “é preciso ver o que ele faz; não podemos ser profetas de calamidades” –, embora advertindo que, “em momentos de crise, o discernimento não funciona” e os povos procuram “salvadores” que lhes devolvam a identidade “com muros e arames farpados”.
(Por Antonio Caño e Pablo Ordaz – El País | Imagem: L'OSSERVATORE ROMANO/Reprodução EL País)
Durante uma hora e 15minutos, num aposento simples da Casa de Santa Marta, onde mora, Jorge Mario Bergoglio, que nasceu em Buenos Aires há oito décadas e caminha rumo ao quarto ano de pontificado, afirmou que “na Igreja há santos e pecadores, decentes e corruptos”, mas que se preocupa sobretudo com “uma Igreja anestesiada” pelo mundanismo, distante dos problemas das pessoas.
Às vezes com um típico humor portenho, Francisco demonstra estar ciente não só do que ocorre dentro do Vaticano, mas na fronteira sul da Espanha e nos bairros carentes de Roma. Diz que adoraria ir à China (“quando me convidarem”) e que, embora de vez em quando também dê seus “tropeços”, sua única revolução é a do Evangelho.
O drama dos refugiados marcou-o fortemente (“aquele homem chorava e chorava em meu ombro, com o salva-vidas na mão, porque não tinha conseguido salvar uma menina de quatro anos”), assim como as visitas às mulheres escravizadas pelas máfias da prostituição na Itália. Ainda não se sabe se será Papa até o fim da vida ou se optará pelo caminho de Bento XVI. Admite que, às vezes, sentiu-se usado por seus compatriotas argentinos.
Pergunta. Santidade, o que resta, depois de quase quatro anos no Vaticano, daquele padre das ruas, que chegou de Buenos Aires a Roma com a passagem de volta no bolso?
Resposta. Que continua sendo das ruas. Porque assim posso sair na rua para cumprimentar as pessoas nas audiências, ou quando viajo... Minha personalidade não mudou. Não estou dizendo que me propus a isso: foi espontâneo. Não, aqui não é preciso mudar. Mudar é artificial. Mudar aos 76 anos é se maquiar. Não posso fazer tudo o que quero lá fora, mas a alma das ruas permanece, e vocês a veem.
Nos últimos dias de pontificado, Bento XVI disse sobre seu último período à frente da Igreja: “As águas desciam agitadas, e Deus parecia estar dormindo”. Também sentiu essa solidão? A cúpula da Igreja estava dormindo em relação aos novos e antigos problemas das pessoas?
Eu, dentro da hierarquia da Igreja, ou dos agentes pastorais da Igreja (bispos, padres, freiras, leigos...), tenho mais medo dos anestesiados do que dos que estão dormindo. Daqueles que se anestesiam com o mundanismo. Então, negociam com o mundanismo. E isso me preocupa... Que... Sim, tudo está quieto, está tranquilo, se as coisas estão bem... ordem demais. Quando se lê os Atos dos Apóstolos, as Epístolas de São Paulo, lá havia confusão, havia problemas, as pessoas se movimentavam. Havia movimento e havia contato com as pessoas. O anestesiado não tem contato com as pessoas. Defende-se da realidade. Está anestesiado. E hoje em dia existem tantas maneiras para se anestesiar da vida cotidiana, não? E, talvez, a doença mais perigosa que um pastor possa ter venha da anestesia, e é o clericalismo. Eu aqui, e as pessoas lá. Você é o pastor dessas pessoas! Se não cuidar dessas pessoas e deixar de cuidar dessas pessoas, feche a porta e se aposente.
E há uma parte da Igreja anestesiada?
Todos temos perigos. É um perigo, é uma tentação séria. É mais fácil estar anestesiado.
Vive-se melhor, mais confortável.
Por isso, mais do que com os que estão dormindo, essa é a anestesia que o espírito de mundanismo proporciona. Do mundanismo espiritual. Nesse sentido, chama minha atenção que Jesus, na Última Ceia, quando faz essa longa oração ao Pai pelos discípulos, não pede a eles “observem o quinto mandamento, que não matem; o sétimo mandamento, que não roubem”. Não. Tomem cuidado com o mundanismo; tomem cuidado contra o mundo. O que anestesia é o espírito do mundo. E, então, o pastor se torna um funcionário público. E isso é o clericalismo, que, na minha opinião, é o pior mal que a Igreja pode ter hoje.
Os problemas enfrentados por Bento XVI no final de seu pontificado e que estavam naquela caixa branca que ele lhe entregou em Castel Gandolfo. O que havia lá dentro?
A normalidade da vida da Igreja: santos e pecadores, decentes e corruptos. Estava tudo ali! Havia gente que tinha sido interrogada e está limpa, trabalhadores... Porque aqui na Cúria há santos, viu? Há santos. Gosto de dizer isso. Porque fala-se com facilidade da corrupção da Cúria. Há pessoas corruptas na Cúria. Mas também muitos santos. Homens que passaram a vida inteira servindo às pessoas de maneira anônima, atrás de uma mesa, em um diálogo ou em um escritório para conseguir... Ou seja, dentro dela existem santos e pecadores. Naquele dia, o que mais me impressionou foi a memória do santo Bento. Que me disse: “Olha, aqui estão as atas, na caixa”. Um envelope com o dobro deste tamanho: “Aqui está a sentença, de todos os personagens.” E aqui, “fulano, tanto”. Tudo de cor! Uma memória extraordinária. E a conserva, a conserva.
Ele se encontra bem de saúde?
Daqui para cima, perfeito. O problema são as pernas. Caminha com ajuda. Tem uma memória de elefante, até as nuances. Então digo uma coisa, e me responde: “Não foi naquele ano, foi no ano tal.”
Quais são suas maiores preocupações com relação à Igreja e, em geral, com a situação mundial?
Com relação à Igreja, eu diria que a Igreja não deixe de estar próxima das pessoas. Que procure sempre estar perto. Uma Igreja que não é próxima não é Igreja. É uma boa ONG. Ou uma boa organização piedosa de pessoas boas que fazem beneficência, se reúnem para tomar chá e fazer caridade. Mas o que identifica a Igreja é a proximidade: sermos irmãos próximos. Porque a Igreja somos todos. Então, o problema que sempre existe na Igreja é que não haja proximidade. E proximidade significa tocar, tocar no próximo a carne de Cristo. É curioso: quando Cristo nos diz o protocolo com o qual seremos julgados, que é o capítulo 25 de Mateus, é sempre tocar o próximo. “Tive fome, estive preso, estive doente...”. Sempre a proximidade para ver a necessidade do próximo. Que não é só a beneficência. É muito mais do que isso. Depois, com relação ao mundo, minha preocupação é a guerra. Estamos na Terceira Guerra Mundial em pedacinhos. E, ultimamente, já se fala de uma possível guerra nuclear como se fosse um jogo de cartas. E isso é o que mais me preocupa. Do mundo, preocupa-me a desproporção econômica: que um pequeno grupo da humanidade tenha mais de 80% da riqueza, com o que isso significa na economia líquida, onde no centro do sistema econômico está o deus dinheiro e não o homem e a mulher, o humano! Assim, cria-se essa cultura de que tudo é descartável.
Santidade, com relação aos problemas do mundo que o senhor mencionava, exatamente neste momento Donald Trump está tomando posse como presidente dos EUA. E o mundo vive uma tensão por esse fato. Qual a sua consideração sobre isso?
Veremos o que acontece. Mas me assustar ou me alegrar com o que possa acontecer, nisso acho que podemos cair numa grande imprudência – sermos profetas ou de calamidades ou de bem-estares que não vão acontecer, nem uma coisa nem outra. Veremos o que ele faz e, a partir daí, avaliaremos. Sempre o concreto. O cristianismo, ou é concreto ou não é cristianismo. É curioso: a primeira heresia da Igreja foi logo depois da morte de Cristo. A heresia dos gnósticos, que o apóstolo João condena. E era a religiosidade spray, como a chamo, do não concreto. Sim, eu, sim, a espiritualidade, a lei... mas tudo spray. Não, não. Coisas concretas. E do que é concreto tiramos as consequências. Nós perdemos muito o senso do concreto. Outro dia, um pensador me dizia que este mundo está tão desorganizado que falta um ponto fixo. E é justamente o concreto que nos dá pontos fixos. O que você fez, o que disse, como age. Por isso eu, diante disso, espero e vejo.
Não se preocupa com o que escutou até agora?
Eu espero. Deus me esperou por tanto tempo, com todos os meus pecados...
Para os setores mais tradicionais, qualquer mudança, mesmo que seja apenas na linguagem, é uma traição. Para o outro extremo, nada será suficiente. Como o senhor disse, tudo já estava escrito na essência do Evangelho. Trata-se, então, de uma revolução da normalidade?
Eu procuro, não sei se consigo, fazer o que manda o Evangelho. Isso é o que busco. Sou pecador e nem sempre consigo isso, mas é o que procuro. É curioso: a história da Igreja não foi levada adiante por teólogos, padres, freiras nem bispos... sim, em parte sim, mas os verdadeiros protagonistas da história da Igreja são os santos. Ou seja, aqueles homens e mulheres que deram a vida para que o Evangelho fosse concreto. São eles que nos salvaram: os santos. Às vezes, pensamos nos santos como uma freirinha que fica olhando para cima com os olhos revirados. Os santos são os concretos do Evangelho na vida diária! E a teologia que podemos obter a partir da vida de um santo é muito grande. Evidentemente, os teólogos, os pastores, todos são necessários. E isso é parte da Igreja. Mas é preciso buscar o Evangelho. E quem são os melhores portadores do Evangelho? Os santos. Você utilizou a palavra “revolução”. Isso é revolução! Eu não sou santo. Não estou fazendo nenhuma revolução. Estou tentando que o Evangelho siga adiante. Mas de maneira imperfeita, porque também tenho meus tropeços às vezes.
Não acha que, entre muitos católicos, possa existir algo como a síndrome do irmão do filho pródigo, que consideram que se presta mais atenção aos que se foram do que aos que permaneceram dentro, observando os mandamentos da Igreja? Lembro-me de que, numa das suas viagens, um jornalista alemão lhe perguntou por que não falava nunca da classe média, daqueles que pagam impostos...
Aqui há duas perguntas. A síndrome do filho mais velho: é verdade que os que estão cômodos numa estrutura eclesiástica que não os compromete muito ou que têm posturas que os protegem do contato se sentirão incômodos com qualquer mudança, com qualquer proposta do Evangelho. Gosto de pensar muito no dono do hotel aonde o samaritano levou aquele homem que havia sido surrado pelos ladrões, roubado pelo caminho. O dono do hotel sabia da história, que foi contada pelo samaritano: havia passado um padre, olhou, estava atrasado para a missa e o deixou jogado no caminho, não queria se manchar com o sangue, porque isso o impedia de celebrar segundo a lei. Passou o advogado, o levita, e viu e disse: “Ai, não vou me meter aqui, perderei muito tempo, amanhã no tribunal serei testemunha e... não, não, melhor não me meter.” Parecia nascido em Buenos Aires, e se desviou assim, que é o lema dos portenhos: “Não se meta”. E passa outro, que não é judeu, que é um pagão, que é um pecador, considerado o pior de todos: se comove e levanta o homem. O estupor que o dono do hotel teve é enorme, porque viu algo incomum. Mas a novidade do Evangelho cria estupor porque é essencialmente escandalosa. São Paulo nos fala do escândalo da cruz, do escândalo do Filho de Deus feito homem. O escândalo bom, porque também Jesus condena o escândalo contra as crianças. Mas a essência evangélica é escandalosa para os parâmetros da época. Para qualquer parâmetro mundano, a essência é escandalosa. Portanto, a síndrome do filho mais velho é, em certa medida, a síndrome daquele que já está acomodado na Igreja, do que de alguma maneira tem tudo claro, tudo fixo sobre o que é preciso fazer, e que não me venham predicar coisas estranhas. Assim se explicam nossos mártires, que deram sua vida por predicar algo que incomodava. Essa é a primeira pergunta. A segunda: eu não quis responder ao jornalista alemão, mas em vez disso lhe disse: “Vou pensar, você tem um pouco de razão”. Falo continuamente da classe média sem mencioná-la. Uso uma palavra de Malègue, um romancista francês: ele fala da “classe média da santidade”. [Joseph Malègue foi o autor de Pedras Negras: As Classes Médias da Salvação e de Augustine.] Estou falando continuamente dos pais de família, dos avós, dos enfermeiros, das enfermeiras, das pessoas que vivem para os demais, que criam os filhos, que trabalham... A santidade dessas pessoas é enorme! São elas também que levam a Igreja adiante: as pessoas que vivem de seu trabalho com dignidade, que criam seus filhos, que enterram seus mortos, que cuidam dos avós, que não os trancam em lares de idosos, essa é nossa santa classe média. Do ponto de vista econômico, hoje a classe média tende a desaparecer, obviamente, cada vez mais, e pode correr o risco de se refugiar nas cavernas ideológicas. Mas essa “classe média da santidade”: o pai, a mãe de família, que celebram sua família, com seus pecados e suas virtudes, o avô e a avó. A família. No centro. Essa é a “classe média da santidade”. Malègue teve uma grande intuição nesse ponto, chegando a dizer uma frase que pode impressionar. Num de seus romances, Augustine, quando num diálogo um ateu lhe diz: “Mas o senhor acredita que Cristo é Deus?”, e lhe apresenta o problema: acha que o Nazareno é Deus? “Para mim, não é um problema”, responde o protagonista do romance. “O problema para mim seria se Deus não se fizesse Cristo”. Essa é a “classe média da santidade”.
Santidade, o senhor falava de cavernas ideológicas. A que se refere? O que lhe preocupa sobre esse aspecto?
Não é que me preocupe. Eu aponto a realidade. Estamos sempre mais cômodos no sistema ideológico que foi elaborado, porque é abstrato.
Isso se exacerbou, se potencializou nos últimos anos?
Sempre houve, sempre. Não diria que se exacerbou porque há muita desilusão com isso também. Creio que havia mais no tempo anterior à Segunda Guerra Mundial. Digo. Não pensei muito. Estou repassando um pouco... Sempre, no restaurante da vida, nos oferecem pratos de ideologia. Sempre. Você pode se refugiar nisso. São refúgios, que o impedem de tocar a realidade.
Santo Padre, durante estes anos, nas viagens, vi o senhor se emocionar e emocionar muitos dos que escutavam suas palavras... Por exemplo, em três ocasiões muito especiais: em Lampedusa, quando se perguntou se havíamos chorado com as mulheres que perdem seus filhos no mar; na Sardenha, quando falou sobre o desemprego e as vítimas do sistema financeiro mundial; nas Filipinas, com o drama das crianças exploradas. Duas perguntas: o que a Igreja pode fazer, o que está sendo feito e como os governos estão agindo diante disso?
O símbolo que propus no novo órgão de Migrações – no novo esquema, o Departamento de Migrações e Refugiados, que preparei diretamente com dois secretários – é um salva-vidas laranja, como os que todos conhecemos. Numa audiência geral, veio parte dos que trabalham no salvamento dos refugiados do Mediterrâneo. Eu os cumprimentava, e este homem segurou esse objeto e começou a chorar, apoiou-se no meu ombro e chorava, chorava: “Não consegui, não cheguei, não consegui.” E, quando se acalmou um pouco, me disse: “A menina não tinha mais de quatro anos. Entrego-lhe isto”. E isso é um símbolo da tragédia que estamos vivendo. Sim.
Os governos estão respondendo à altura?
Cada um faz o que pode ou o que quer. É um juízo difícil de fazer. Mas, obviamente, o fato de o Mediterrâneo ter se transformado num cemitério deve nos fazer pensar.
Queria lhe perguntar se sente que sua mensagem, sua viagem às periferias, aos que sofrem e estão perdidos, é acolhida, acompanhada por uma estrutura talvez acostumada a caminhar em outro ritmo. O senhor sente que avança num ritmo e a Igreja em outro? Sente-se acompanhado?
Acho que não é assim e, graças a Deus, a resposta em geral é boa. É muito boa. Quando pedi às paróquias de Roma e aos colégios, houve quem dissesse: “Isso foi um fracasso”. Mentira! Não foi um fracasso! Uma alta porcentagem das paróquias de Roma, quando não tinham uma casa grande à disposição ou quando a casa paroquial era pequena, sei lá, pois os fiéis alugam um apartamento para uma família imigrante... Nos colégios de freiras, às vezes sobrava lugar, arrumaram um espaço para as famílias migrantes... A resposta é maior do que se acredita, não é divulgada. O Vaticano tem duas paróquias, e cada paróquia tem uma família imigrante. Um apartamento do Vaticano para uma família, outro para outra. A resposta é contínua. Não 100%. Qual porcentagem eu não sei. Mas eu diria que 50% acho que sim. Depois, o problema da integração. Cada imigrante é um problema muito sério. Eles fogem de seu país. Por fome ou guerra. Então, a solução deve ser buscada ali. Por fome ou por guerra, são explorados. Penso na África: o símbolo da exploração. Inclusive, ao dar independência, algum país lhes deu independência do solo para cima, reservando-se o subsolo. Ou seja: são sempre usados e escravizados... Então, a política de acolhida tem várias etapas. Há uma acolhida de emergência: você tem que receber [o migrante] e tem que recebê-lo porque, do contrário, ele se afoga. Nisso a Itália e a Grécia estão dando o exemplo, um exemplo muito grande. A Itália, inclusive agora, com os problemas que tem com o terremoto e todas essas coisas, continua se preocupando com eles. Recebendo-os. Claro: eles chegam à Itália porque é o país mais próximo. Creio que na Espanha chegam de Ceuta também. [Sim.] Mas, geralmente, a maioria não quer ficar na Espanha, quer ir para o norte, porque buscam mais possibilidades.
Mas, na Espanha, há um muro que separa Ceuta e Melilla de Marrocos. Não podem passar.
Sim, sim, eu sei. E querem ir para o norte. Então, o problema é: recebê-los, sim, mais ou menos por alguns meses, alojá-los. Mas é preciso começar um processo de integração. Acolher e integrar. E o modelo mundial que está à frente é a Suécia. A Suécia tem nove milhões de habitantes, dos quais 890.000 são “novos suecos”, filhos de migrantes ou migrantes com cidadania sueca. A ministra de Relações Exteriores – acho que era, a que foi se despedir de mim – uma moça jovem, era filha de mãe sueca e pai do Gabão. Migrantes. Integrados. O problema é integrar. Por outro lado, quando não há integração, ficam em guetos, e não culpo ninguém, mas de fato existem guetos. Que talvez naquele momento não perceberam que havia. Mas os meninos que fizeram o desastre no aeroporto de Zaventem [em Bruxelas] eram belgas, nascidos na Bélgica. Mas moravam num bairro fechado de imigrantes. Ou seja, é fundamental o segundo passo: a integração. Qual é o grande problema da Suécia agora? Não é que não venham imigrantes. Não estamos dando conta nos programas de integração! Eles se perguntam o que mais podem fazer para que as pessoas venham! É impressionante. Para mim, é um modelo mundial. E isso não é novo. Eu disse logo de cara, depois de Lampedusa... Eu conhecia o caso da Suécia pelos argentinos, uruguaios e chilenos que na época da ditadura militar foram acolhidos ali, pois tenho amigos lá, e refugiados. Claro, depois que você chega à Suécia e lhe oferecem organização médica, documentos, dão autorização para morar... E você já tem uma casa, e na semana seguinte tem uma escola para aprender o idioma, um pouquinho de trabalho... e vai para frente. Nisso San Egidio, aqui na Itália, é um modelo. Os que vieram comigo no avião de Lesbos, e depois vieram outros nove... O Vaticano se encarregou de 22, e estamos cuidando deles. E eles lentamente vão se tornando independentes. No segundo dia, os meninos já iam ao colégio. No segundo dia! E os pais lentamente encontram seu lugar, com um apartamento, um trabalho aqui, meio trabalho ali, professores para o idioma... San Egidio tem essa mesma postura. Ou seja, o problema então é: salvamento urgente, sim, para todos. Segundo: receber, acolher da melhor forma possível. Depois integrar, integrar. Integrar.
Santidade, já faz 50 anos de quase tudo. Do Concílio Vaticano II, da viagem de Paulo VI e do abraço com o patriarca Atenágoras na Terra Santa. Há quem sustente que, para entendê-lo, convém conhecer Paulo VI. Ele foi até certo ponto o papa incompreendido. O senhor se sente também um pouco assim, um Papa incômodo?
Não. Não. Acredito que, por meus pecados, deveria ser mais incompreendido. O mártir da incompreensão foi Paulo VI. A Evangelii Gaudium, que é o marco da pastoralidade que quero dar à Igreja agora, é uma atualização da Evangelii Nuntiandi de Paulo VI. É um homem que se antecipou à história. E sofreu, sofreu muito. Foi um mártir. E muitas coisas ele não pôde fazer, porque, como era realista, sabia que não podia e sofria, mas oferecia esse sofrimento. E o que pôde fazer ele fez. E é o que Paulo VI fez de melhor: semear. Semeou coisas que depois a história foi recolhendo. A Evangelii Gaudium é uma mistura da Evangelii Nuntiandi e do documento de Aparecida. Coisas que foram sendo trabalhadas de baixo para cima. A Evangelii Nuntiandi é o melhor documento pastoral pós-conciliar e que não perdeu a atualidade. Não me sinto incompreendido. Sinto-me acompanhado, e acompanhado por todo tipo de gente, jovens, velhos… Sim, um ou outro por aí não está de acordo, e tem o direito, porque se eu me sentisse mal por alguém não estar de acordo haveria em minha atitude um germe de ditador. Eles têm o direito de não estarem de acordo. Têm direito de pensarem que o caminho é perigoso, que pode trazer maus resultados, que… eles têm o direito. Mas desde que dialoguem, não que atirem a pedra e escondam a mão, isso não. A isso nenhuma pessoa humana tem o direito. Atirar a pedra e esconder a mão não é humano, isso é delinquência. Todos têm o direito de discutir, e quem dera discutíssemos mais, porque isso nos burila, nos irmana. A discussão irmana muito. A discussão com bom sangue, não com a calúnia e tudo isso…
Incômodo com o poder o senhor também não sente?
É que o poder não sou eu quem tenho. O poder é compartilhado. O poder é quando se tomam as decisões pensadas, dialogadas, rezadas; a oração me ajuda muito, e me sustenta muito. Não me incomoda o poder. Incomodam-me certos protocolos, mas é porque eu sou assim, da rua.
O senhor está há 25 anos sem ver televisão e, pelo que entendo, o senhor nunca foi muito fã de jornalistas, mas o sistema de comunicação do Vaticano foi totalmente reinventado, profissionalizado e elevado à categoria de dicastério. Os meios de comunicação são tão importantes assim para o Papa? Existe uma ameaça à liberdade de imprensa? E as redes sociais, podem causar um prejuízo à liberdade do indivíduo?
Eu não assisto televisão. Simplesmente senti que Deus me pediu isso, no dia 16 de julho de 1990; fiz essa promessa e não sinto falta. Só fui ao centro de televisão que ficava ao lado da arquidiocese para ver um ou dois filmes que me interessavam, que poderiam servir para a mensagem. E veja que eu gostava muito de cinema e tinha estudado bastante o cinema, especialmente o italiano do pós-guerra, e o polonês Wajda, Kurosawa, e alguns franceses. Mas não ver televisão não me impede de me comunicar. Não assistir televisão foi uma escolha pessoal, nada mais. Mas a comunicação é divina. Deus se comunica. Deus comunicou-se conosco por meio da história. Deus não ficou isolado. É um Deus que se comunica, e falou conosco, nos acompanhou, nos desafiou e nos fez mudar de rumo, e continua a nos acompanhar. Não se pode compreender a teologia católica sem a comunicação de Deus. Deus não está estático lá e olha para ver como os homens se divertem ou como se destroem. Deus se envolveu, e o fez comunicando-se com a palavra e com sua carne. Ou seja, eu começo daí. Tenho um pouco de medo quando os meios de comunicação não podem se expressar com a ética que lhes é própria. Por exemplo, existem maneiras de se comunicar que não ajudam, que atrapalham a unidade. Dou um exemplo simples. Uma família que está jantando e as pessoas não se falam, ou assistem televisão, ou as crianças estão com seus celulares enviando mensagens a outras pessoas que estão fora. Quando a comunicação perde o carnal, o humano, e se torna líquida, é perigosa. Que se comunique em família e que as pessoas se comuniquem, e também da outra maneira, é muito importante. O mundo virtual da comunicação é muito rico, mas você corre o risco se não vive uma comunicação humana, normal, de tocar! O concreto da comunicação é o que fará que o virtual da comunicação siga pelo bom caminho. Ou seja, o concreto é inegociável em tudo. Não somos anjos, somos pessoas concretas. A comunicação é fundamental e deve seguir em frente. Há perigos como esse em todas as coisas. É preciso ajustá-los, mas a comunicação é divina. E há defeitos. Eu falei sobre os pecados da comunicação numa conferência na ADEPA, em Buenos Aires, a associação que reúne os editores da Argentina. E os presidentes me convidaram para um jantar em que tive de fazer essa conferência. Lá eu apontei os pecados da comunicação e disse a eles: não caiam nisso, porque o que os senhores têm em suas mãos é um grande tesouro. Hoje em dia comunicar é divino, sempre foi divino porque Deus se comunica, e é humano porque Deus se comunicou humanamente. Portanto, funcionalmente há um dicastério, obviamente, para dar um encaminhamento a tudo isso. Mas o dicastério é uma coisa funcional. Não é porque hoje é importante se comunicar, não. Porque a comunicação é essencial para a pessoa humana, porque também é essencial a Deus!
O maquinário diplomático do Vaticano funciona a todo vapor. Tanto Barack Obama quanto Raúl Castro agradeceram publicamente o seu trabalho na aproximação. No entanto, existem outros casos, como a Venezuela, Colômbia e o Oriente Médio, que ainda estão bloqueados. No primeiro caso, inclusive, as partes criticam a mediação. O senhor teme que a imagem do Vaticano sofra? Quais são suas instruções nesses casos?
Eu peço ao Senhor a graça de não tomar nenhuma medida pela imagem. Mas pela honestidade, pelo serviço, esses são os critérios. Não acredito que seja bom maquiar um pouco. Às vezes podemos cometer erros, a imagem se ressentirá, bom, isso é uma consequência, mas foi feito com boa vontade. A história julgará as coisas. E depois há um princípio que é claro para mim, que é o que tem de prevalecer em toda a ação pastoral, mas também na diplomacia do Vaticano: mediadores, não intermediários. Em outras palavras, fazer pontes e não muros. Qual é a diferença entre o mediador e o intermediário? O intermediário é aquele que tem, por exemplo, um escritório de compra e venda de imóveis, procura quem quer vender uma casa e quem quer comprar uma casa, eles se põem de acordo, ele cobra a comissão, presta um bom serviço, mas sempre ganha algo, e tem direito porque é seu trabalho. O mediador é aquele que se coloca a serviço das partes e faz com que as partes ganhem mesmo que ele perca. A diplomacia do Vaticano tem de ser mediadora, não intermediária. Se ao longo da história a diplomacia do Vaticano fez uma manobra ou uma reunião e encheu o bolso, então ela cometeu um pecado muito grave, gravíssimo. O mediador faz pontes, que não são para ele, são para que os outros caminhem. E não cobra pedágio. Faz a ponte e se vai. Para mim essa é a imagem da diplomacia vaticana. Mediadores e não intermediários. Fazedores de pontes.
Essa diplomacia vaticana pode ser estendida à China em breve?
De fato, existe uma comissão que está trabalhando há anos com a China e que se reúne a cada três meses, uma vez aqui e outra em Pequim. E há muito diálogo com a China. A China tem sempre aquela aura de mistério que é fascinante. Há dois ou três meses, com a exposição do Museu do Vaticano em Pequim, estavam felizes. E no próximo ano eles virão aqui no Vaticano com suas coisas, seus museus.
E o Santo Padre irá em breve à China?
R. Irei quando me convidarem. Eles sabem. Além disso, na China as Igrejas estão cheias. Pode-se praticar a religião na China.
Tanto na Europa quanto na América, as consequências de uma crise que não acaba, o aumento da desigualdade e a ausência de lideranças fortes estão dando lugar a formações políticas que estão captando o mal-estar dos cidadãos. Algumas delas – que costumam ser chamadas de antissistema ou populistas – aproveitam o medo das pessoas de um futuro incerto para construírem uma mensagem de xenofobia, de ódio em relação ao estrangeiro. O caso de Trump é o que mais chama a atenção, mas também há os casos da Áustria e até da Suíça. O senhor está preocupado com esse fenômeno?
É o que chamam de populismo. Essa é uma palavra enganosa, porque na América Latina o populismo tem outro significado. Lá significa o protagonismo dos povos, por exemplo, os movimentos populares. Organizam-se entre eles... é outra coisa. Quando ouvia falar em populismo aqui não entendia muito, ficava perdido, até que percebi que eram significados diferentes dependendo dos lugares. Claro, as crises provocam medos, alertas. Para mim, o mais típico exemplo dos populismos europeus é o 1933 alemão. Depois de [Paul von] Hindenburg, a crise de 1930, a Alemanha estava destroçada, tentava se levantar, buscava sua identidade, estava à procura de um líder, de alguém que devolvesse sua identidade, e havia um rapazinho chamado Adolf Hitler que disse “eu posso, eu posso”. E toda a Alemanha votou em Hitler. Hitler não roubou o poder, foi eleito por seu povo, e depois destruiu seu povo. Esse é o perigo. Em momentos de crise, o discernimento não funciona, e para mim é uma referência contínua. Busquemos um salvador que nos devolva a identidade e defendamo-nos com muros, com arames farpados, com qualquer coisa, dos outros povos que podem nos tirar a identidade. E isso é muito grave. Por isso sempre procuro dizer: dialoguem entre vocês, dialoguem entre vocês. Mas o caso da Alemanha de 1933 é típico, um povo que estava naquela crise, que procurava sua identidade, e então apareceu esse líder carismático que prometeu dar-lhes uma identidade, e deu-lhes uma identidade distorcida e sabemos o que aconteceu. Onde não há diálogo... As fronteiras podem ser controladas? Sim, cada país tem o direito de controlar suas fronteiras, quem entra e quem sai, e os países que estão em perigo – de terrorismo ou coisas desse tipo – têm mais direito de controlar mais, mas nenhum país tem o direito de privar seus cidadãos do diálogo com os vizinhos.
O senhor observa na Europa de hoje, Santo Padre, sinais dessa Alemanha de 1933?
Não sou um técnico nisso, mas sobre a Europa de hoje remeto-me aos três discursos que fiz. Os de Estrasburgo e o terceiro quando do Prêmio Carlos Magno, que foi o único prêmio que aceitei porque insistiram muito por causa do momento que a Europa vivia, e aceitei como um serviço. Esses três discursos dizem o que penso sobre a Europa.
A corrupção é o grande pecado do nosso tempo?
É um grande pecado. Mas acredito que não devemos atribuir-nos a exclusividade na história. Sempre houve corrupção. Sempre. Aqui. Se alguém ler a história dos papas se depara com cada escândalo... Para me referir à minha casa, sem me meter na do vizinho. Tenho vários exemplos de países vizinhos onde houve corrupção na história, mas fico com os meus. Aqui houve corrupção. E pesada, hein. Basta pensar no papa Alexandre VI, nessa época, e em dona Lucrécia com seus “chazinhos” [envenenados].
O que lhe chega da Espanha? O que lhe chega sobre a recepção que há na Espanha da sua mensagem, sua missão, seu trabalho...?
Hoje, da Espanha, acabam de me chegar alguns polvorones e um turrón de Jijona (doces) que estão aí para oferecer aos rapazes.
Hahaha. A Espanha é um país onde o debate sobre o secularismo e a religiosidade está vivo, como o senhor sabe...
R. Está vivo, muito vivo...
O que o senhor pensa disso? O processo de secularismo pode acabar deixando a Igreja Católica numa situação marginal?
Diálogo. É o conselho que dou a qualquer país. Por favor, diálogo. Como irmãos, caso se animem, ou pelo menos como pessoas civilizadas. Não se insultem. Não se condenem antes de dialogar. Se depois do diálogo quiserem se insultar, bom, mas pelo menos dialogar. Se depois do diálogo quiserem se condenar, bom..., mas primeiro o diálogo. Hoje, com o desenvolvimento humano que existe, não se pode conceber uma política sem diálogo. E isso vale para a Espanha e para todos. Então, se você me pedir um conselho para os espanhóis, dialoguem. Se há problemas, dialoguem primeiro.
Na América Latina, evidentemente, suas palavras e decisões são acompanhadas com especial atenção. Como vê o continente? Como vê sua terra?
O problema é que a América Latina está sofrendo os efeitos – que ressaltei muito na Laudato Se – de um sistema econômico que tem no seu centro o deus dinheiro, e então [esses países] caem em políticas de fortíssima exclusão. E então se sofre muito. E evidentemente hoje em dia a América Latina está sofrendo um forte embate de liberalismo econômico forte, desse que eu condeno na Evangeli Gaudium quando digo que “esta economia mata”. Mata de fome, mata de falta de cultura. A emigração não é só da África para Lampedusa ou para Lesbos. A emigração é também do Panamá para a fronteira do México com os Estados Unidos. As pessoas emigram procurando. Porque os sistemas liberais não dão possibilidades de trabalho e favorecem delinquências. Na América Latina há o problema dos cartéis da droga, que existem, sim, e essa droga é consumida nos Estados Unidos e na Europa. Fabricam-na para cá, para os ricos, e perdem a vida nisso. E há os que se prestam a isso. Na nossa pátria temos uma palavra para qualificá-los: os cipayos [mercenários]. É uma palavra clássica, literária, que está em nosso poema nacional. O cipayo é aquele que vende a pátria à potência estrangeira que possa lhe dar mais benefício. E na nossa história argentina, por exemplo, sempre há algum político cipayo. Ou alguma postura política cipaya. Sempre houve na história. Então a América Latina precisa se rearmar com formações de políticos que deem a força dos povos à América Latina. Para mim, o exemplo maior é o do Paraguai do pós-guerra. Perde a guerra contra a Tríplice Aliança, e o país fica praticamente nas mãos das mulheres. E a mulher paraguaia sente que precisa erguer o país, defender a fé, defender sua cultura e defender sua língua, e conseguiu. A mulher paraguaia. A mulher paraguaia não é cipaya, defendeu o seu, à custa do que fosse, mas defendeu, e repovoou o país. Para mim, é a mulher mais gloriosa da América. Aí você tem um caso de uma atitude que não se entregou. Há heroísmo. Em Buenos Aires há um bairro, à beira do rio da Prata, cujas ruas têm nomes de mulheres patriotas, que lutaram pela independência, lutaram pela pátria. A mulher tem mais senso... Talvez eu exagere. Bom, se exagero que me corrijam. Mas tem mais senso de defender a pátria, porque é mãe. É menos cipaya. Tem menos perigo de cair no cipayismo.
Por isso dói tanto a violência contra as mulheres, que é uma mancha na América Latina e em tantos lugares…
Em todos os lados. Na Europa… Na Itália, por exemplo, visitei organizações de resgate de meninas prostitutas que são exploradas por europeus. Alguém me dizia que foi trazida da Eslováquia no porta-malas de um automóvel para que pudessem passá-la [pelas fronteiras e controles policiais]. E lhe dizem: você precisa trazer tanto hoje, e se não trouxer isso, vai levar. Batem nelas… Em Roma? Em Roma. A situação dessas mulheres aqui – em Roma! – é de terror. Nessa casa que visitei havia uma a quem haviam cortado a orelha. Torturam-nas quando não reúnem dinheiro suficiente. E as mantêm retidas porque as assustam, dizem que vão matar os pais delas. Albanesas, nigerianas, inclusive italianas. Uma coisa muito linda é que essa associação se dedica a ir pelas ruas, as abordam e, em vez de lhes dizer “Quanto você cobra?”, “Quando você custa?”, lhes perguntam: “Quando você sofre?”. E as levam para uma colônia segura, a fim de que se recuperem. Visitei no ano passado uma dessas colônias com meninas recuperadas e havia dois homens, eram voluntários. E uma me disse: “Eu o encontrei”. Casou-se com o homem que a havia salvado e estavam querendo ter um filho. O usufruto da mulher é das coisas mais desastrosas que acontecem, também aqui, em Roma. A escravidão da mulher.
Não acha que, depois da tentativa fracassada da Teologia da Libertação, a Igreja perdeu muitas posições para outras confissões e inclusive seitas? A que se deve isso?
A teologia da liberação foi uma coisa positiva na América Latina. Foi condenada pelo Vaticano a parte que optou pela análise marxista da realidade. O cardeal Ratzinger fez duas instruções quando era prefeito da Doutrina da Fé. Uma, muito clara, sobre a análise marxista da realidade. E a segunda retomando aspectos positivos. A Teologia da Libertação teve aspectos positivos e também teve desvios, sobretudo na parte da análise marxista da realidade.
Suas relações com a Argentina. O Vaticano se tornou, de três anos para cá, um lugar de peregrinação para políticos de diversos partidos. O senhor se sente usado?
Ah, sim. Alguns me dizem: Tiramos uma foto de lembrança, e lhe prometo que vai ser para mim e que não vou publicá-la. E antes de sair pela porta já a publicaram [sorri]. Bom, se fica feliz de usá-la, o problema é dele. Diminui a qualidade dessa pessoa. Quem a usa tem pouca estatura. E o que vou fazer? O problema é dele, não meu. Vêm muitos argentinos à audiência geral. Na Argentina sempre houve muito turismo, mas agora passar por uma audiência geral do Papa é quase obrigatório [risos]. Depois há os que vêm para cá e que são amigos – vivi 76 anos na Argentina –, às vezes minha família, alguns sobrinhos. Mas usado, sim, tem gente que já me usou, usou fotos, como se eu tivesse dito coisas, e quando me perguntam sempre respondo: não é problema meu, não fiz declarações, se ele disse isso é problema dele. Mas não entro no jogo do uso. Ele lá com a sua consciência.
Um tema recorrente é o papel dos leigos e, sobretudo, das mulheres na Igreja. Seu desejo é de que tenham maiores cotas de influência e inclusive de decisão. Esses são seus desejos. Até onde acredita que pode chegar?
O papel da mulher não deve ser buscado tanto pela funcionalidade, porque assim vamos acabar transformando a mulher, ou o movimento da mulher na Igreja, num machismo de saia. Não. É muito mais importante que uma reivindicação funcional. O caminho funcional é bom. A subdiretora da sala de imprensa do Vaticano é uma mulher, a diretora dos museus vaticanos é uma mulher… Sim, o funcional está bem. Mas a mim o que me interessa é que a mulher nos dê seu pensamento, porque a Igreja é feminina, é “a” Igreja, não é “o” Igreja, e é “a” esposa de Jesus Cristo, e esse é o fundamento teologal da mulher. E quando me perguntam, sim, mas a mulher poderia ter mais… Mas o que era mais importante: o dia de Pentecostes, a Virgem ou os apóstolos? A Virgem. O funcional pode nos trair ao colocar a mulher no seu lugar – que é preciso colocá-la, sim, porque ainda falta muito, e trabalhar para que possa dar à Igreja a originalidade de seu ser e de seu pensamento.
Em algumas das suas viagens, escutei como se dirigia aos religiosos, tanto da Cúria Romana quanto das hierarquias locais, ou inclusive a padres e freiras, para lhes pedir mais compromisso, mais proximidade, inclusive melhor humor. De que maneira acredita que recebem esses conselhos, esses puxões de orelha?
No que mais insisto é na vizinhança, na proximidade. E em geral é bem recebido. Sempre há grupos um pouco mais fundamentalistas, em todos os países, na Argentina há. São grupos pequenos, eu os respeito, são gente boa, que prefere viver assim a sua religião. Eu prego o que sinto que o Senhor me pede para pregar.
Na Europa, cada vez se veem mais padres e freiras procedentes do chamado Terceiro Mundo. A que se deve este fenômeno?
Há 150 anos, na América Latina, se viam cada vez mais padres e freiras europeus, e na África o mesmo, e na Ásia o mesmo. As Igrejas jovens foram crescendo. Na Europa o que acontece é que não há natalidade. Na Itália está abaixo de zero. A França é a que acredito estar mais à frente, por todas as leis de apoio à natalidade. Mas não há natalidade. O bem-estar italiano de alguns anos atrás cortou a natalidade por aqui. Preferimos sair de férias, temos um cachorrinho, um gatinho, não há natalidade, e se não houver natalidade não há vocações.
Em seus consistórios, o senhor criou cardeais dos cinco continentes. Como gostaria que fosse o conclave que escolherá o seu sucessor? Santidade, o senhor acredita que verá o próximo conclave?
Que seja católico. Um conclave católico que escolha o meu sucessor.
E o verá?
Isso eu não sei. Que Deus decida. Quando eu sentir que não posso mais, meu grande mestre Bento já me ensinou como se deve fazer. E se Deus me levar antes verei do outro lado. Espero que não do inferno… Mas que seja um consistório católico.
O senhor me parece muito contente de ser Papa.
O Senhor é bom e não me tirou o bom humor.
O Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Padre João (PT-MG), apresenta uma lista de quarenta ameaças aos direitos humanos que partem do legislativo. Parte das iniciativas já foi aprovada em 2016, parte ainda tramita.
(Fonte: Comissão de Direitos Humanos e Minorias | Imagem: EBC)
O levantamento foi elaborado em parceria com o Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e com apoio de pesquisas realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), da Conectas Direitos Humanos e do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.
O documento integrará adendo do Presidente da CDHM e da Presidenta da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos, Erika Kokay (PT-DF), ao Relatório Periódico Universal do Brasil à ONU.
Fim dos direitos trabalhistas, restrição da fiscalização contra o trabalho escravo, retrocessos na reforma agrária e na função social da propriedade, venda de terras para estrangeiros, monopólio das sementes, liberação ainda maior dos agrotóxicos, fim do licenciamento ambiental, fim das demarcações indígenas, proibição do casamento homoafetivo, restrição ao atendimento de vítimas de estupro, restrição à laicidade do Estado, restrição da liberdade de ensino, redução da maioridade penal, aumento da internação para adolescentes no sistema socioeducativo, exposição de criança e adolescente em conflito com a lei, redução da idade de trabalho, revogação do estatuto do desarmamento, desmonte do Estado e das políticas que garantem direitos sociais, reforma da previdência, privatizações, entrega do Pré-sal, fim da autonomia da EBC e legalização de procedimentos penais de exceção são temas da pauta. Abaixo explicamos tudo.
DIREITO AO TRABALHO
REFORMA TRABALHISTA – O Projeto de Lei de autoria do Presidente Michel Temer, apresentado em regime de urgência, deve ser aprovado no primeiro semestre de 2017, segundo o Presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A finalidade deste PL é retirar direitos dos trabalhadores para baratear o custo da força de trabalho. Além disso, as negociações que se sobrepõem a direitos garantidos por lei não precisarão ser feitas pelos sindicatos: podem ser feitas por representantes do conjunto de trabalhadores da empresa, o que torna ainda mais aguda a desigualdade da relação e solapa a lógica da representação sindical. (PL 6787/16)
TERCEIRIZAÇÃO – O projeto que permite a terceirização das atividades-fim, e não apenas limpeza, segurança e outras atividades-meio, como atualmente ocorre, foi aprovado pela Câmara e está na ordem do dia do Senado. Essa proposta e o PL 6787 são as maiores investidas da história contra o legado varguista, que instituiu um sistema de proteção aos trabalhadores no Brasil. (PL 4302/1998)
DIREITOS AO MEIO AMBIENTE, AO ACESSO À TERRA E À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA
DESREFORMA AGRÁRIA – O governo apresentou medida provisória que significa retrocesso em relação às parcas conquistas da reforma agrária. São duas linhas mestras. A primeira tem por finalidade liberar terras para o mercado. A proposta prevê o pagamento em dinheiro de terras adquiridas para a reforma agrária. Ela pretende ainda dar título de propriedade aos assentados, o que é uma janela para a reconcentração fundiária. Hoje, os títulos concedidos aos beneficiários são inegociáveis. A segunda linha é a de fragilizar a organização social no campo. A proposta desconsidera a existência de acampados organizados em movimentos sociais, e prevê abertura de editais amplos para candidatos a beneficiários. (MPV 759/2016)
ROTULAGEM DE TRANSGÊNICOS – A Câmara aprovou o fim da exigência do símbolo “T” nos produtos que contêm até 1% de componentes transgênicos. O projeto fere o direito à informação e à escolha a uma alimentação saudável. A proposta está pendente de apreciação pelo Senado. (PLC 34/2015).
(DES)FUNÇÃO SOCIAL – Um PL que está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça restringe ainda mais os requisitos da função social da propriedade. Pela proposta, além de a propriedade não precisar cumprir os critérios ambiental e trabalhista, passa a não ser mais necessário o cumprimento simultâneo dos requisitos de “utilização da terra” e de “eficiência na exploração” para comprovação da produtividade da propriedade rural. (PL 5288/2009).
VENDA DE TERRAS PARA ESTRANGEIROS – Desde 2015 a proposta que permite a venda de terras para estrangeiros está com urgência aprovada, para que possa ser apreciada pelo Plenário da Câmara. Defendido pela bancada ruralista, o PL viola a soberania nacional. Alexandre Conceição, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, sintetiza: “Numa ponta, nós lutamos pela distribuição de terras para produzir alimento; na outra, eles querem justamente entregar essas terras e jogar as comunidades para as periferias das grandes cidades”, agravando a exclusão social. (PL 4059/2012)
MONOPÓLIO DAS SEMENTES – Está prestes a ser votado, em comissão especial, a proposta de proteção de cultivares. O PL restringe a possibilidade de multiplicação de sementes protegidas e exige autorização do detentor da patente para que o agricultor comercialize o produto da colheita. Trata-se de projeto que favorece multinacionais do agronegócio, que concentrarão mais poder sobre a reprodução de sementes. (PL 827/2015).
AGROTÓXICOS – Comissão especial da Câmara se debruça sobre proposta de fragilização do processo de controle dos agrotóxicos no Brasil, que já ocupa, mesmo sem essa inovação legislativa, a primeira posição no consumo mundial de veneno na comida. A proposta altera o nome de agrotóxicos para defensivos fitossanitários, restringe a ação do Ministério do Meio Ambiente e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e aumenta o peso dos interesses econômicos contra os direitos à saúde, à alimentação adequada e ao meio ambiente. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar se posicionou oficialmente contra a proposta. (PL 6299/2002 e PL 3200/2015)
MINERAÇÃO – O projeto de Código da Mineração vai no sentido contrário ao das necessidades indicadas pelo maior desastre ambiental da história do Brasil, provocado pela mineração empresarial: a tragédia de Mariana. O código mais incentiva que regula a mineração. Os substitutivos apresentados – um dos quais escrito no computador de uma mineradora – fragilizam o controle estatal e a capacidade de o Poder Público atuar no planejamento desse setor estratégico. (PL 37/2011).
DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS
FIM DAS DEMARCAÇÕES INDÍGENAS – A Proposta de Emenda à Constituição, que já foi aprovada em Comissão Especial e está pronta para o Plenário da Câmara, prevê a competência do legislativo para demarcar terras – o que impossibilitará, na prática, futuras demarcações. Além disso, transforma as terras tradicionais em equivalentes da propriedade rural: podem ser arrendadas, divididas e permutadas e ainda receber empreendimentos econômicos. Isso permite a investida do agronegócio e das mineradoras sobre terras indígenas homologadas, acabando com a noção de tradicionalidade. A PEC estende o “marco temporal” (necessidade de estar sobre a terra tradicional na data de promulgação da Constituição de 1988) também às comunidades quilombolas. Ou seja, é danosa também para essas comunidades tradicionais. Algumas demandas de ruralistas expressas na PEC 215 foram regulamentadas por Portaria do Ministro da Justiça. A norma, de hierarquia inferior à lei, relativiza o parecer técnico da FUNAI. Agora, o Ministério da Justiça pode rever o procedimento. A Portaria abre espaço para pressão dos ruralistas e para adoção imediata do “marco temporal”. A norma, além de inconstitucional, fere a Convenção 169 da OIT, que determina que os povos indígenas devem ser consultados previamente sobre medidas que os afetem. (PEC 215/2000, Portaria n° 68, de 14 de janeiro de 2017)
DIREITOS DAS MULHERES E DAS PESSOAS LGBT
ESTATUTO DA FAMÍLIA –Foi aprovada por Comissão Especial a proposta que retira os casais homoafetivos do conceito de família. Casais formados por pessoas do mesmo gênero, pela proposta, não podem se casar ou estabelecer união estável, tampouco podem adotar. O Brasil já permite o casamento e a adoção por casais homossexuais, a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal. É um retrocesso. O Estatuto aguarda apreciação pelo Plenário da Câmara. (PL 6583/2013).
RESTRIÇÃO AO ATENDIMENTO DE VÍTIMAS DE ESTUPRO –A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara aprovou o projeto que criminaliza quem instiga ao aborto ou quem preste qualquer auxílio ou até mesmo orientação a mulheres para interrupção da gravidez. No caso de estupro o aborto só será permitido com exame de corpo delito. O projeto ainda prevê que “nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo”. Ou seja, o profissional de saúde não é obrigado a dar as devidas orientações para uma vítima caso este profissional considere que pílula do dia seguinte é abortiva ou que aborto em caso de estupro não é adequado. A proposta está pronta para apreciação pelo Plenário da Câmara. (PL 5069/2013).
ABORTO COMO CRIME HEDIONDO – Quatro PLs em tramitação pretendem tornar o aborto um crime hediondo – tão grave quanto homicídio praticado por grupo de extermínio e estupro de criança, por exemplo. Os crimes hediondos não são suscetíveis a graça ou indulto. (PL 4703/1998, PL 4917/2001, PL 7443/2006 e PL 3207/2008).
NASCITURO – Há diversos projetos que dispõem sobre os direitos do nascituro, que tramitam em conjunto, sob o nome de Estatuto do Nascituro. A proposta já foi aprovada em duas comissões – Finanças e Tributação e Seguridade Social e Família. A proposta dá uma pensão à mãe de filho gerado a partir de um estupro, além de prever direitos de paternidade ao agressor. (PL 478/2007).
CONTRA O RECONHECIMENTO DE PESSOAS LGBT – Além do Estatuto da Família, tramitam projetos que propõem a vedação de adoção por casal homoafetivo; a criminalização da “heterofobia”; a criação do "Dia do Orgulho Heterossexual"; a criação de nova causa de anulação do casamento -- “a ignorância, anterior ao casamento, da condição de transgenitalização, que por sua natureza, torne insuportável a vida do cônjuge enganado com a impossibilidade fisiológica de constituição de prole”; o cancelamento do decreto sobre o reconhecimento do nome social e da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais, entre outros. (PL 4508/2008, PL 620/2015, PL 7382/2010, PL 1672/2011, PL 3875/2012, PDC 395/2016).
DIREITO À LAICIDADE DO ESTADO
EDUCAÇÃO – Tramitam na Câmara algumas propostas dispondo da obrigatoriedade do ensino religioso, da Bíblia ou do criacionismo nas escolas. Hoje a Lei de Diretrizes e Bases estabelece que o ensino religioso é facultativo, devendo ser respeitada a diversidade, sendo vedado o proselitismo. (PL 309/2011, PL 943/2015, PL 8099/2014,).
DIREITO À EDUCAÇÃO
REFORMA EDUCACIONAL – A maior reforma educacional em décadas foi apresentada por meio de Medida Provisória. Quanto ao método, a proposta foi desenhada sem discussão com a sociedade civil organizada, que inclui professores, estudantes, pesquisadores e gestores. Quanto ao rito, uma MP tem trâmite célere, já que seu requisito constitucional é a urgência. Contudo, mudança de tamanha dimensão deveria ser discutida com cuidado, nos detalhes, para que erros sejam evitados e o governo não tenha que voltar atrás no futuro. Quanto ao conteúdo, apesar do recuo anunciado pelo Ministério da Educação, a MP de fato retirou a obrigatoriedade das disciplinas de sociologia e filosofia. Apenas matemática e português continuaram como matérias obrigatórias nos três anos do ensino médio. O objetivo central da proposta é privilegiar a formação técnica, na qual o estudante opta por uma ênfase curricular, em vez de uma formação mais abrangente. Assim, o ensino médio será dividido em dois blocos. O primeiro, chamado “Base Nacional Comum Curricular”, terá no máximo 1.200 horas da carga total, ou seja, pode ocupar no máximo 50% da carga horária atual do ensino médio, ou no máximo 28,5% da carga horária almejada para o ensino médio. O segundo é chamado “Itinerários formativos específicos”, será organizado conforme as seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional: linguagens; matemática; ciências da natureza; ciências humanas; e formação técnica e profissional. São admitidos profissionais com “notório saber” para ministrar as disciplinas, o que “institucionaliza a precarização da docência e compromete a qualidade do ensino”, conforme pontua o Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio. A proposta, conforme o MNPS, sonega o “direito ao conhecimento e compromete uma formação que deveria ser integral – científica, ética e estética”. A MP está em sintonia com o movimento “Escola sem Partido”, que visa a proibir a veiculação de conteúdos críticos no ensino. Além disso, favorece as corporações do ensino, já que encarece os custos da educação. Ao mesmo tempo em que o governo impõe por media provisória uma reforma educacional caríssima, o executivo patrocinou a PEC do teto de gastos, que prevê a redução sistemática do investimento público em programas sociais. Provavelmente a solução para o paradoxo será transferir a responsabilidade sobre o ensino médio à esfera privada. A Câmara alterou o texto original, que precisa ainda ser apreciado pelo Senado. (MP 746/2016).
DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES
REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL –Foi aprovada pelo Plenário da Câmara a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, nos casos de crimes hediondos (como latrocínio e estupro), homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Agora a PEC está no Senado. A idade penal de 18 anos é um direito humano previsto na Constituição e por isso é cláusula pétrea. A Convenção sobre Direitos da Criança da ONU de 1989 também afirma que 18 anos é o marco da idade penal. A Constituição estabelece o direito à proteção especial da criança e do adolescente, que inclui “obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade”. (PEC 115/2015).
AUMENTO DA INTERNAÇÃO PARA ADOLESCENTES NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO – O Senado aprovou e a Câmara agora aprecia, em comissão especial, proposta de aumento do tempo de internação para adolescentes em conflito com a lei. “O texto do Senado eleva o tempo máximo de internação de adolescentes de três para dez anos em casos de homicídio doloso (com a intenção de matar) e de atos descritos na lei de crimes hediondos, sempre que cometidos com violência ou grave ameaça (como estupro e latrocínio). A partir dos 18 anos, o adolescente nessa situação deverá ser transferido para uma unidade ou ala separada dos demais”. Para a CONECTAS, é falsa a ideia de que o aumento da sanção pode reduzir a criminalidade – é o caso da ampliação dos crimes hediondos, sem impacto estatístico nos crimes -- ou de que os problemas sociais serão solucionados pelo direito penal (PL 7197/2002 e apensos).
EXPOSIÇÃO DE CRIANÇA E ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI – A Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados aprovou o PL que permite a divulgação de imagem de criança ou adolescente a quem se atribui ato infracional. O Coletivo Intervozes manifestou-se contra a proposta, que foi aprovada sem sequer uma audiência pública para debatê-la. Agora o PL será apreciado pela Comissão de Segurança Pública. (PL 7553/14)
DIREITO À VIDA
DIREITOS SOCIAIS E BEM-ESTAR
DESMONTE DO ESTADO – Foi promulgada, em dezembro, a Emenda Constitucional proposta pelo Presidente Michel Temer, que institui um novo regime fiscal que congela os gastos públicos por 20 anos. Trata-se da medida legislativa com mais impacto social e econômico da história. O estudo “Austeridade e Retrocesso - Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil”, elaborado pelo Fórum 21, pela Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES), pelo GT de Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP); e Plataforma Política Social, aponta que a emenda comprometerá atividades estatais básicas e as políticas públicas de educação, saúde, assistência social, infraestrutura, transporte, energia, ciência, fomento à agricultura e à indústria, etc. Os impactos devem ser severos para os setores médios e baixos da população, que se utilizam diretamente dos serviços públicos. Por outro lado, a PEC favorece os rentistas, pois juros e amortização da dívida pública não entram no teto. A emenda veda, ainda, políticas anticíclicas, que poderiam ser acionadas em momentos de crise, além de ser indutora de recessão econômica, já que provoca o ciclo vicioso da austeridade. A proposta implica também em redução do valor real do salário mínimo. A PEC tende a fazer terra arrasada de todo o aparato de desenvolvimento e proteção social construído desde a década de 1930. Como aponta o economista Marcelo Zero, o mecanismo previsto “não existe em nenhum lugar do mundo e impõe uma absurda austeridade permanente, que independe do ciclo econômico e do controle democrático”. Pelos cálculos do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a mudança deve reduzir em 50% os recursos – já insuficientes – aplicados na área. (EC 95 de 2016)
REFORMA DA PREVIDÊNCIA – O governo apresentou proposta de reforma da previdência na qual o trabalhador precisará contribuir por 49 anos para assegurar o recebimento do teto do regime geral da previdência. A proposta estabelece paridade entre homens e mulheres e entre servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada. A PEC restringe o BPC (Benefício de Prestação Continuada). A aposentadoria sem contribuição para o trabalhador rural é extinta, assim como a aposentadoria especial de professores. A agenda divulgada do secretário de Previdência Social do Ministério da Fazenda mostra que ele se reuniu dezenas de vezes com empresas de previdência privada, mas com sindicatos representantes dos trabalhadores, apenas no dia em que a proposta foi entregue ao Congresso. Os militares são os únicos poupados pela reforma. Eles, entretanto, são responsáveis por 48% do déficit da previdência, segundo estudo do consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados. A proposta já foi admitida pela Comissão de Constituição e Justiça (PEC 278/2016)
ORÇAMENTO – Segundo análise feita pelo site Gestão Pública da proposta orçamentária para este ano, a PEC implicou “em reduções significativas, em comparação ao orçamento do ano passado, em áreas centrais dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, e que devem certamente comprometer a implementação de políticas públicas em todas as esferas da federação, sobretudo, em Estados e municípios: desenvolvimento regional – redução de 81, 2%; moradia digna – redução de 56,7%; reforma agrária– redução de 52,6%; igualdade racial – redução de 42,2%; mulheres e igualdade de gênero– redução de 40%; principais programas sociais – redução de 14%; educação) – redução de 10%; inclusão social e bolsa família – 7,4%; fortalecimento do SUS - redução de 5,6%”. “Por outro lado, a PEC não parece impactar as áreas como investimento militar e o agronegócio, que terão aumento significativo em seu orçamento”. O Projeto de Lei Orçamentária encaminhado pelo Governo para o ano de 2017 tem a redução de R$ 430 milhões nas políticas públicas que atendem a agricultura familiar, a reforma agrária, os povos e as comunidades tradicionais (estudo da Liderança do PT). A proposta estabelece um teto de 110 milhões de reais para despesas discricionárias da Funai. Trata-se do menor valor orçado para a Fundação nos últimos 10 anos (de acordo com A Pública).
PROGRAMA DE PARCERIAS DE INVESTIMENTO (PPI) – Foi aprovada a medida provisória de Michel Temer que instituiu o programa de privatizações de seu governo. A proposta, segundo o Deputado Nilto Tatto (PT/SP), é orientada “à expansão da infraestrutura mediante parcerias com a iniciativa privada e às privatizações de empresas e instituições financeiras federais, institui uma governança de camarilha, centralizando decisões e ações em um grupo restrito em torno do presidente da República, e negligencia os princípios que regem as licitações públicas”. A MP traz um apêndice que fragiliza o licenciamento ambiental – que é o principal instrumento de análise dos impactos ambientais de qualquer tipo de empreendimento. (Lei Ordinária 13334/2016)
ENTREGA DO PRÉ-SAL – O legislativo aprovou a proposta de autoria do atual Ministro das Relações Exteriores, Senador licenciado José Serra (PSDB/SP), que retira a participação obrigatória da Petrobrás em pelo menos 30% da exploração do Pré-Sal – provavelmente a maior reserva energética do mundo. Conforme apontou a Federação Única dos Petroleiros, trata-se de entregar a reserva às multinacionais, o que significará menos recursos para políticas públicas “e o fim da política de conteúdo nacional, que gera empregos, renda e tecnologia para o nosso país”. (Lei Ordinária 13365/2016)
DIREITO À COMUNICAÇÃO
EBC – Michel Temer propôs medida que acaba com a autonomia da Empresa Brasileira de Comunicação. Ela permitirá que o Planalto indique e demita livremente o presidente da EBC. Tal medida vai na contramão das práticas democráticas de comunicação pública mundo afora, segundo as quais se criam empresas públicas de comunicação que não são estatais, ainda que prestem contas ao governo. (MP 744/16).
DEVIDO PROCESSO LEGAL
EXCEÇÃO LEGALIZADA – Foram apresentadas pelo Ministério Público Federal “dez medidas contra a corrupção”. A proposta, na prática, legalizava medidas de exceção como admissão de provas ilícitas, restrição ao habeas corpus, restrição grave à prescrição dos crimes e limitação à defesa e teste de integridade, ampliação excessiva do rol de crimes hediondos, etc. Como aponta o Subprocurador-Geral da República Eugênio Aragão, o que o MPF quer é um projeto de “interesse corporativo”, que expande suas competências, criando obstáculos à defesa. O texto das 10 medidas foi, em seus principais pontos, rejeitado pelo Plenário da Câmara dos Deputados e seguiu agora para o Senado. (PL 4850/2016).
DIREITO AO VOTO
Elaboração:
Presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados
Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP), IESP-UERJ
Apoio:
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
Conectas Direitos Humanos
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar