COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

“O conceito de tráfico de pessoas atualmente vigente no Brasil é muito mais amplo e complexo do que as imagens que a maior parte da população associa de forma imediata a esse fenômeno”. Confira artigo de Renan Bernardi, procurador do trabalho em MT.

 

Renan Bernardi Kalil*

 

O tráfico de pessoas é, no imaginário popular, normalmente associado a duas situações em que há a travessia de fronteiras pelo ser humano: a primeira é contemporânea, em que a vítima é explorada sexualmente; a segunda é vinculada ao transporte de escravos em navios que saiam da África e iam para diversas partes do mundo, cujo ápice ocorreu no século XIX no Brasil. Trata-se de uma visão muito restrita do fenômeno, influenciada pelo enfoque de determinadas campanhas em somente uma das facetas do tráfico de pessoas, pelo tratamento dado pela legislação brasileira à essa matéria e pelo passado do nosso país.

A definição mais difundida de tráfico de pessoas é oriunda do Protocolo de Palermo, ratificado pelo Brasil junto à ONU em janeiro de 2004 e internalizado em março do mesmo ano, com o Decreto n. 5.017. Por ser um tratado internacional de direitos humanos, considerando a hierarquia das normas, o Protocolo está abaixo da Constituição mas acima das leis e normas inferiores do texto constitucional.

O conceito de tráfico de pessoas estabelecido no Protocolo de Palermo demanda a coexistência de uma ação, de um meio e de uma finalidade de exploração para a sua caracterização. As ações elencadas são: recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas. Os meios listados para a execução da ação podem ser: ameaça, uso da força, outras formas de coerção, rapto, engano, abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade. As finalidades da exploração indicadas são: a prostituição, outras formas de exploração sexual, trabalho forçado, escravatura, servidão e remoção de órgãos. Deve-se destacar ainda que não se pressupõe a saída de um país e a entrada em um outro, uma vez que o tráfico de pessoas pode ser internacional ou interno.

Assim, nota-se que o conceito de tráfico de pessoas atualmente vigente no Brasil é muito mais amplo e complexo do que as imagens que a maior parte da população associa de forma imediata a esse fenômeno. Isso produz diversas implicações negativas, sendo que a principal é a dificuldade do reconhecimento de outras faces do

tráfico de pessoas, fato que cria obstáculos tanto para a identificação do problema, como para a adoção de políticas de prevenção e repressão.

Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o tráfico de pessoas movimenta aproximadamente 32 bilhões de dólares por ano. Ainda, a OIT coloca que se trata de uma violação de direitos humanos que já atingiu 2,5 milhões de pessoas no mundo, sendo que 57% esteve envolvido com o tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.

Em 2014, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicou dados a respeito dos procedimentos judicias e extrajudiciais do Ministério Público Brasileiro relacionadas ao tráfico de pessoas a partir da consolidação de informações dos anos 2000 a 2013. Dos 1.758 procedimentos identificados, 1.348 tratavam do tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo.

É importante pontuar que a menção a trabalho escravo feita nos dados apresentados pelo CNMP não abrange somente o caso de restrição de liberdade, mas todas as situações previstas no art. 149 do Código Penal, que são as seguintes: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva. Considerando que essas quatro hipóteses são consideravelmente identificadas a partir do recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de trabalhadores, nota-se uma grande inter-relação entre os conceitos de tráfico de pessoas e de trabalho escravo. Outra questão que os aproxima é que, normalmente, em ambos os casos o trabalhador está em situação de vulnerabilidade.

Apesar da mencionada inter-relação, a associação entre tráfico de pessoas e trabalho escravo contemporâneo não está disseminada pela sociedade. Corroboram essa afirmação os dados do Disque-Denúncia de Direitos Humanos da Presidência da República, que aponta a realização de 266 registros de trabalho escravo e 28 de tráfico de pessoas no ano de 2012. Portanto, percebe-se que há um grande caminho a ser percorrido para o combate ao tráfico de pessoas no Brasil.

Hoje, 30 de julho, Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a principal tarefa colocada é a difusão do conceito desse ilícito para a população, de forma viabilizar a sua identificação e a realização de denúncias para o Poder Público. Desta forma será possível mensurar a dimensão do problema no país e, consequentemente, conceber políticas públicas adequadas com o objetivo de resguardar a dignidade da pessoa humana e de não permitir que o trabalho seja tratado como mercadoria.

 

*Procurador do Trabalho em Mato Grosso (MPT/MT) e Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP)

Save
Cookies user preferences
We use cookies to ensure you to get the best experience on our website. If you decline the use of cookies, this website may not function as expected.
Accept all
Decline all
Read more
Analytics
Tools used to analyze the data to measure the effectiveness of a website and to understand how it works.
Google Analytics
Accept
Decline
Unknown
Unknown
Accept
Decline