2017. Sucedidos 30 anos do assassinato de Vicente Cañas, um segundo júri levará ao banco dos réus o delegado aposentado Ronaldo Antônio Osmar. Ele é acusado de agenciar o assassinato do missionário jesuíta. O júri acontecerá na próxima quarta-feira, 29, em Cuiabá (MT), e será acompanhado por familiares do missionário espanhol.
(Por Guilherme Cavalli, da assessoria de comunicação – Cimi | Imagens: Arquivo Cimi)
No primeiro julgamento realizado em 2006, quase duas décadas depois do assassinato, a 2ª Vara Federal em Mato Grosso inocentou por seis votos a um o delegado aposentado de Polícia Civil de Juína. Segundo as provas de acusação, Ronaldo acordou a morte do missionário com oito homens que realizaram a emboscada. O Ministério Público Federal (MPF) pediu a condenação do delegado por homicídio duplamente qualificado por intermediar o assassinato. Ele chegou a conduzir o inquérito que investigou o assassinato, induzindo a responsabilidade da morte de Vicente aos indígenas.
Em 2015, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região determinou a realização de um novo júri para julgar a morte de Vicente Cañas. O desembargador Italo Fioravante Sabo Mendes aceitou o pedido do Ministério Público Federal (MPF) que indicou invalidade do primeiro julgamento por não considerar provas substanciais apuradas durante o processo.
Vicente e os Enawenê Nawê
1977. Nas cidades de Juína e Brasnorte, localizadas há 750 quilômetros da capital Cuiabá, circulavam frequentes boatos de ameaças que tinham como alvo principal a dupla de jesuítas que marcava presença assídua junto aos povos em situação de isolamento voluntário.
Vicente e Thomasz Aquino Lisboa eram conscientes de que a atuação junto aos povos indígenas na libertação dos territórios tradicionais angaria perseguições. Os missionários, fundadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e membros da Operação Anchieta (Opan), frearam iniciativas que visava o avanço da fronteira agrícola sob territórios tradicionais. Mapearam as áreas e serviam de megafone ao denunciar a presença de fazendeiros e madeireiros nas áreas dos povos presentes noroeste do Mato Grosso.
“É preciso se encarnar profundamente na vida e na cultura da aldeia, mergulhando na sua escala de valores, conhecendo a sua língua, sentindo seus dramas para que se possa marcar uma presença benéfica junto aos índios”, afirmava Vicente.
Durante cinco anos, de junho de 1979 a junho de 1983, Vicente permaneceu junto aos Enawenê Nawê, sem sair da aldeia. Os indígenas passaram a considerar Kiwxi – nome dado a Vicente – um deles. Seu dia a dia era como membro do povo. Participava dos rituais, pescava, adentrava na floresta em busca de mel.
Em março, um mês antes do seu assassinato, Vicente Cañas enviou uma carta à Operação Anchieta solicitando pessoas para trabalhar com ele. Estava jurado de morte. Os próprios indígenas o alertavam: “se cuida Kiwxi que as picadas já estão perto de teu barraco. Ele está cercado de picadas”. Picadas eram as zonas de retirada de madeira.
O território tradicional Enawenê Nawê era alvo de interesse de vários fazendeiros e madeireiros que viam em Vicente um empecilho às suas pretensões. Várias picadas estavam sendo abertas. Grupos de madeireiros estavam extraindo lenho da área indígena, especialmente a partir da estrada que ligava Vilhena a Juína.
“Eu não vou mais à Cuiabá, não vou sair da área e deixar os Enawenê Nawê ameaçados. Nem a Dorotéia vai sair da aldeia. Vamos assumir as coisas até o fim. Se tiver que morrer, vamos morrer todos! É mais uma razão, Jaúka, para que você urja a necessidade de se resolver em definitivo essa questão da área, pois a insegurança agora envolve muita gente”. Dorotéia era voluntária da OPAN e Jaúka era nome indígena de Thomaz. As palavras são de Vicente escritas em 20 de setembro de 1984.
Emboscada
Vicente tinha 46 anos. Dez anos de convivência com os Enawenê Nawê. Depois, a morte. Violenta. Assassinado. Foi assim com Vicente Cañas, irmão jesuíta espanhol naturalizado brasileiro e quase um Enawenê Nawê. Seu corpo, apenas pele e osso, foi encontrado no dia 16 de maio por missionários do Cimi e dois indígenas Mynky, próximo ao barraco que ele mantinha à beira do rio Juruena, a 130 quilômetros da aldeia.
A situação em que foi encontrado o barraco de Vicente, onde ele mantinha um aparelho de radiofonia, remédios e combustível, indica que houve realmente um assassinato. Próximo à sua rede foram encontradas uma lente de seu óculos de sol quebrada. Do lado de fora, a um metro do barraco, o corpo de Vicente Cañas, nu.
À época, o secretário de Segurança do Mato Grosso, Otto Sampaio, declarou ser praticamente impossível chegar aos assassinos. Afirmou que dificilmente a morte tenha ocorrido em consequência de conflito de terra.
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Assassinato de um missionário
No dia três de abril de 1986, de manhã, Vicente deixava a casa de Antônio Zanardi, administrador da fazenda Juruena, na barra do rio Papagaio. Havia participado no final de março de um encontro dos agentes de pastoral indigenista da região, em Brasnorte. Permaneceu na casa de Antônio para restabelecer de uma indisposição. Dois dias depois, 5, Vicente fez contato pelo rádio com Rikbaktsa Roque, no Barraco Vermelho. Disse estar bem e que iria seguir para a aldeia Salumã, para retornar sua vivência com os Enawenê Nawê. Foi a última vez que se comunicou.
Vicente preparava sua subida para a aldeia quando foi surpreendido pelos assassinos. Na voadeira, encontravam-se seus pertences, um xiri (cesto) com medicamentos e uma lanterna. Isso leva a supor que o assassinato ocorreu entre os dias 6 e 7 de abril. O relógio que Vicente usava parou marcando o dia 8, às 9h30.
Sinais de violência
Dentro do barraco, próximo à rede armada, encontravam-se vários objetos derrubados e quebrados: uma das lentes do seu óculo estava em quatro pedaços; uma das suas sandálias, com uma tira arrebentada, estava próximo da porta; um banco de madeira e uma garrafa de mel compunham o cenário de violência juntamente com papeis espalhados por todo o chão.
Logo em frente da porta do barraco, posto de vigilância construído pelo missionário para impedir a entrada dos invasores das terras Enawenê Nawê, estava a armação dos óculos, sua dentadura inferior e parte de uma lanterna. Como uma sentinela insole e fiel, até seu último alento, Kiwxi permaneceu. Morreu sem ver realizado o seu sonho: o reconhecimento legal e a demarcação das terras do povo que pertencia.
No corpo de Vicente, uma abertura de uns quatro centímetros na região abdominal. O médico legista que esteve no local para a perícia afirmou categoricamente que se tratava de uma perfuração por objeto cortante. Para o doutor, não havia dúvida de que Vicente foi assassinado.
As braçadeiras – adorno típico dos Enawenê Nawê – haviam sido puxadas até o antebraço, indicando violência sofrida por Kiwxi.
Comunicar a morte aos Enawenê Nawê
Como os Enawenê Nawê iriam reagir à notícia da morte de Kiwxi? O questionamento preocupava a equipe que foi até a aldeia comunicar a morte de Vicente. Os missionários pediram que dois indígenas Pareci os acompanhassem na difícil missão de levar a notícia. Partiram em direção a aldeia no dia 21 de maio, no clarear do dia. Navegaram o rio Juruema, seu afluente Camararé e o rio Iquê. Próximo ao meio dia, chegaram à comunidade. Foram recebidos com espanto. Os guerreiros aproximaram gritando: Kiwxi? Kiwxi?
Vicente nunca tinha permanecido tanto tempo sem retornar à aldeia. Mesmo com dificuldade de comunicação – nenhum Enawenê Nawê falava ou entendia o português – eles sentiram: o melhor amigo dos Enawenê Nawê não voltaria em corpo. Tinha sido assassinado. A dor e a revolta se estampou no rosto dos indígenas instantes após o comunicado. O cacique do povo, Kawairi, um Xamã e dois guerreiros, acompanhados do grupo de missionários, foram até o barraco de Vicente.
No amanhecer do dia 22, Kawairi gesticulava, orientando o grupo a partir de decisões tomadas na noite de caminhada. Vicente foi enterrado a dois metros da casa utilizada para guardar os “objetos de branco”. Cacique, xamã e a dupla de guerreiros Enawenê Nawê, os indígenas Rikbaktsa e Myky enrolaram os ossos e a pele mumificada de Vicente em sua rede. Sepultaram o missionário no rito Enawenê Nawê. A terra foi jogada e socada sobre a sepultura sob olhar consternado de um pouco menos de duas dezenas de indígenas e missionários. Em choro, prestavam a última homenagem ao companheiro assassinado.
A equipe de missionários do Cimi deixou a aldeia dos Enawnê Nawê no dia 23. Os indígenas insistiam que alguém ficasse no lugar de Kiwxi.
Uma luz que se acende
“É madrugada na aldeia Enawenê Nawê. Antes que os primeiros clarões apareçam, Vicente já está desperto. É o ritual dos Enawenê Nawê que vai começar e que alimentou a fé e a esperança de Vicente na sobrevivência desse povo, por treze anos, desde os primeiros contatos.
O último caderno do seu diário começa e termina com anotações fiel de dezenas de rituais, que se prologavam até o clarear do dia: era o próprio ritual que espantava as trevas e chamava a claridade, era mais um dia de vida e de luta para os Enawenê Nawê e para Vicente que conviveu com eles, dia a dia, durante onze anos.
O dia seis de abril, entretanto, começou com outro ritual bem diferente: Vicente com os adornos Enawenê Nawê, cai por terra, assassinado covardemente quando se preparava para ir para a aldeia. Estava só em seu barraco. Por isso, seu corpo ali foi se consumindo, sendo encontrado quarenta dias depois.
“Para todos que conheceram Vicente, sua vida e sua morte constituem o ritual que ajudará a espantar as trevas, que ainda pairam sobre o destino dos povos indígenas e iluminar a caminhada dos que creem e esperam que o novo dia vai nascer para eles, seja no texto da nova Constituição, seja na consciência da Igreja missionária no Brasil, seja na compreensão de todos, porque o governo, as Igrejas e a nação toda contraíram uma dívida secular para com os povos indígenas”. Parte da carta datada de 20 de maio de 1987 dos representantes da Companhia de Jesus, Cimi e Opam presentes no local do assassinato.
*Texto escrito a partir de documentos, cartas e notícias publicadas pelo Conselho Indigenista Missionário