COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Neste dia 22 de março comemora-se o Dia Mundial da Água. Esse bem essencial para a vida está cada vez mais em disputa: a Comissão Pastoral da Terra (CPT) tem registrado, ano após ano, aumentos consideráveis dos conflitos no campo por água. Em contraponto a esse cenário conflituoso, há diversos exemplos de conscientização e recuperação de nascentes, como dona Benedita, do Mato Grosso, que restaurou sua primeira fonte de água em 1996. 

Texto por Elvis Marques / Assessoria de Comunicação da CPT

Imagem principal: Agente da CPT e membros de comunidade no Piauí realizam trabalho de recuperação de nascente. Crédito: CPT Piauí

Analdina Gramacho, conhecida como Dona Dina, é ribeirinha das margens do Rio Carinhanha, situado no município de Cocos, no oeste da Bahia. Sua fala em relação à importância das águas para a sua vida vai de encontro com o sentimento de inúmeros outros baianos da região que, em 2017, iniciaram uma série de protestos em reação à captação ilegal de águas do Rio Arrojado, o que causava a degradação e secamento do mesmo e, consequentemente, a falta de água para as comunidades do campo e da cidade. Naquele contexto, uma frase ficou bem conhecida: “Ninguém vai morrer de sede nas margens do Rio Arrojado”. 

Os conflitos por água, como o do oeste da Bahia, crescem ano após ano. Em 2018, a CPT registrou 276 conflitos pela água no Brasil, envolvendo 73.693 famílias. Os conflitos por água vêm batendo recordes desde 2002, quando a pastoral começou a registrar em separado esse tipo de conflito. E em 2019 não será diferente, os dados, já compilados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino da CPT, apontam para um aumento exponencial em relação aos anos anteriores. No ano de 2018, os casos se concentraram no Nordeste, 48,1%, 133 conflitos. No Sudeste 30,8% dos casos, 85. (os novos dados serão lançados em breve pela pastoral).

Os conflitos por água vêm batendo recordes desde 2002, quando a pastoral começou a registrar em separado esse tipo de conflito

Em alguns lugares o problema é a captação irregular de água para irrigar monocultivos dos latifúndios, em outros é a degradação das nascentes, seja por conta das plantações em larga escala, do gado ou pelo desmatamento desenfreado. Apenas no município mato-grossense de Rondonópolis (com área de cerca de 4.165 km² e população estimada em em 144 mil pessoas), a Pastoral da Terra estima que entre 800 e mil nascentes precisem de algum tipo de proteção, ou então vão desaparecer. “Essa ideia de cuidar das nascentes já vem de muito tempo. Depois que começamos a discutir sobre agroecologia, e que percebemos que esse modelo de produção agroecológica está ligado a tudo. E eu observava a situação das nascentes, que cada vez mais estão diminuindo”, explica Baltazar Ferreira, membro da coordenação da CPT no Mato Grosso. 

O membro da pastoral conta que em 2011, a partir da temática “vida no planeta” da Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi realizado um encontro na comunidade Bananal sobre as nossas águas. “Tinha umas 80 pessoas presentes, e falamos sobre a situação das águas no mundo. Depois fizemos uma reunião na Comunidade Olga Benário, com umas 25 pessoas”. Entretanto, apesar da necessidade de recuperar as nascentes naquela região, não havia recursos financeiros para tal iniciativa. “Tínhamos só a cara e a coragem. Mas começamos o trabalho no Olga Benário. Falamos com Dom Juventino [Kestering, bispo da Diocese de Rondonópolis]. Fizemos um projetinho financeiro de cerca de R$ 1.880 para a Diocese, e, em novembro de 2011, com essa ajuda, fizemos a primeira recuperação de nascente, a do senhor Geraldinho. Ela estava bem degradada, e com erosão”, relembra. 

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No Mato Grosso, a CPT estima que entre 800 e mil nascentes precisem de algum tipo de proteção, ou então vão desaparecer

Em comunidades no município de Rondonópolis, como a Olga Benário, Bananal e 17 de março, já foram recuperadas cerca de 40 nascentes, e outras 18 por conta própria dos proprietários dos lotes, que também participaram das reuniões e formações com a CPT. “Eu vejo que essa preocupação com as nascentes é crescente, pois a cada dia as águas diminuem”, aponta Baltazar, e acrescenta que “todo esse trabalho é desenvolvido em mutirão com os trabalhadores e trabalhadoras rurais”. A importante iniciativa tem se espalhado, e Ferreira acredita que na região o número de fontes de água restauradas chegue a 80.

“Eu vejo que essa preocupação com as nascentes é crescente, pois a cada dia as águas diminuem” - Baltazar Ferreira

Nascida e criada na Comunidade São Benedito, no Bananal, Benedita Ribeiro conta que há 24 anos notou o secamento de uma de suas nascentes, e, naquele momento, já precisou fazer esse trabalho de recuperação. “Eu sou muito encantada com a natureza, e quando eu mudei para cá tinha muita água. E, de repente, com o pisar dos animais na água, ela foi diminuindo, e também era pouca proteção das matas perto das águas. Com isso, a gente foi deixando mais o mato em volta, fomos protegendo, e plantamos mais mato ao redor. E a água está aumentando, e é uma maravilha para nós. Se a gente não cuidar da água, não temos vida, nem os animais, nem as plantas”.

Dona Benedita, da Comunidade São Benedito, do Mato Grosso, restaurou sua primeira fonte de água em 1996.  Na imagem, ela mostra esse bem natural jorrando em sua terrinha. Crédito: Elvis Marques / CPT Nacional

Goiás

Para a CPT em Goiás, a preservação das nascentes e o reflorestamento das áreas que as cercam é uma ação de cuidado com a Casa Comum, como propõe o Papa Francisco. “Esse processo de recuperação das nascentes, em quase sua totalidade, segue uma metodologia de, inicialmente visitar as comunidades, e, a partir de um encaminhamento coletivo, diagnosticar a situação das nascentes que precisam de proteção e cuidados”, detalha a equipe da CPT da Diocese de Goiás.

E esses encontros, segundo a entidade, têm uma metodologia de educação popular, e aplicação de questões técnicas que ajudam a identificar e respeitar a declividade do terreno e a demarcação de curvas de nível. Definidos esses passos iniciais, o processo de recuperação de nascentes segue o seguinte roteiro: é medida a Área de Preservação Permanente (APP) da fonte de água; as cercas são construídas; o local onde se encontra o ‘olho d’água’ é limpo; e quando tem início o período de chuvas, mudas de árvores do Cerrado são plantadas.

“Perto de muita água, tudo é feliz”, Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa

Em 2019, a Pastoral em Goiás, junto com as comunidades, conseguiu realizar o cercamento e a revitalização de 15 nascentes. “É claro que esse processo de recuperação é lento e exige o acompanhamento permanente e o envolvimento das famílias”, pontua a equipe.

Piauí

A CPT no Piauí  lançou, em 2017, o documentário “Água é vida”, que traz um registro do projeto “Preservação das Nascentes e Matas Ciliares na região dos Cerrados Piauienses. Como o avanço do agronegócio está contribuindo para a destruição das nascentes?” E de que forma as comunidades do campo podem se mobilizar para preservar esse bem natural e essencial para vida? No estado, essa ação é desenvolvida com as comunidades de Várzea Grande e Nova Santana, no município de Cristino Castro, e Rio Preto, em Bom Jesus.

           

Esse trabalho, conforme a entidade, surgiu a partir de discussões sobre meio ambiente com as famílias dessas comunidades, quando o tema mais abordado era o desaparecimento de nascentes e o desmatamento das matas próximas aos rios, riachos e brejos.

A Pastoral da Terra enxerga que “apesar das adversidades, estas comunidades resistem ao processo de apropriação e exploração indevida dos grandes projetos, que têm contribuindo consideravelmente com a contaminação e morte das nascentes. A utilização dos venenos, o desmatamento e todo o pacote do agronegócio tem limitado a reprodução da vida destes sujeitos e acabado com as riquezas naturais e culturais do Cerrado Piauiense”. A experiência de trabalho com as nascentes no Piauí é inspirada em ações desenvolvidas há tempos pela CPT no Mato Grosso do Sul. 

Legislação

Famoso por seus “poços termais jorrantes” e água mineral, o município de Cristino Castro, distante cerca de 610 quilômetros da capital Teresina (PI), instituiu, em 12 de setembro de 2017, a Lei Nº 126 de identificação, catalogação, recuperação e conservação de nascentes de águas e matas ciliares, “tendo por objetivos instrumentalizar programas, planos, planejamentos e diretrizes relacionados à proteção das águas e educação ambiental”. 

A lei municipal vale para nascentes em áreas públicas ou privadas, e propõe a criação de um Comitê Gestor, integrando setores da sociedade civil organizada (igrejas, sindicatos, associações, CPT, e etc) com as diversas instâncias governamentais. 

Para a Pastoral da Terra, essa experiência legislativa é importante e contribui com um trabalho que vem sendo desenvolvido no estado nordestino e em outras localidades. Em Rondonópolis (MT), todavia, esse trabalho de recuperação de nascentes não contou com o apoio do poder público, a nível municipal, estadual ou federal, mesmo sendo produzido e apresentado vários projetos. Os apoios para desenvolver essas iniciativas surgem, entretanto, das próprias comunidades, das universidades, da igreja e de pessoas físicas, que, mesmo não afetadas diretamente pela falta de água, compreendem a necessidade de manter esse bem comum vivo e jorrando.

“Cada nascente é diferente, como a gente. Algumas, a gente percebe que só precisam de proteção, outras de reflorestar e fazer a contenção, para não entrar enxurrada, por exemplo, ou para conter erosões. Mas, no geral, o cercamento ajuda muito” - Baltazar Ferreira

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