“Elas estão chegando, chegando como um vento forte, chegando com vida e norte, chegando para questionar, chegando pra mudar”. E foi assim que, oriundas de sul a norte de Mato Grosso, cerca de 150 mulheres chegaram ao Centro de Formação da Agricultura Familiar de Colíder, na sexta-feira (28), para participar do III Intercâmbio Estadual de Mulheres Camponesas, com o tema “Mulher, fruto de fé e esperança”.
(Texto e imagens por Andrés Pasquis)
O lema desses Intercâmbios, organizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e parceiros, explica que “a organização coletiva das Mulheres transforma a sociedade”. Ou seja, o foco dos eventos é o empoderamento feminino, com base na troca de experiências, saberes e vivências, afastando assim a sensação de isolamento. Através de solidariedade e cumplicidade entre elas, é possível a criação e melhor articulação de grupos de mulheres organizados, que graças à geração de renda, conquistam autonomia financeira e pessoal, junto com o respeito da comunidade e da própria família. Esses são pontos imprescindíveis para a defesa de um modelo alternativo, baseado na Agricultura Familiar Agroecológica.
O primeiro dia do Intercâmbio começou justamente com a apresentação de experiências das regiões Norte, Araguaia, Baixada Cuiabana e Sul do estado. Apesar de realidades levemente diferentes, os obstáculos enfrentados na luta pela autonomia da mulher, pelo reconhecimento da agricultura familiar e contra um modelo insustentável imposto pelo agronegócio, são quase idênticos.
Germana Benedita da Silva, do grupo de mulheres ‘Feito por Nós’ da comunidade de Mutum, no município de Jangada, explica que a autonomia da mulher é um ponto importantíssimo não só para a mesma, como para toda a comunidade. “Ser independente do marido não quer dizer que não precisamos dele. É não ter que pedir dinheiro quando precisamos, mas é também criar renda para a família”, disse. Germana também reforçou que com o tempo conquistaram o apoio dos maridos, que são agora muito companheiros. Mas a renda não é o único objetivo dessas lutadoras, pois os grupos funcionam também como fontes de energia, de inspiração, de desabafo e de esperança. É uma terapia que mostra que elas não estão sozinhas frente às adversidades, como testemunharam outras mulheres.
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A organização das mulheres e a articulação dos grupos são apenas os primeiros passos de um longo e trabalhoso caminho. Uma vez escolhidos os produtos que serão trabalhados e comercializados, indo desde pães, biscoitos e farinhas, passando por licores, óleos e doces até artesanato e reaproveitamento de materiais, é necessário acessar os diferentes mercados.
Mas as políticas públicas e leis em vigor, além de não oferecerem apoio em quantidade e qualidade suficientes, estão pouco a pouco sendo destruídas pelo ‘governo’ atual. Apesar da articulação das mulheres ter um papel crucial na sobrevivência da agricultura familiar, que fornece cerca de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros, programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) não estão adaptados às realidades do campo, além de serem difíceis de acesso e correrem risco de extinção.
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Nesse contexto, Vanúbia Martins Oliveira, agente da CPT regional do Nordeste, ministrou uma palestra sobre a atual conjuntura política e os desafios por vir. Começou relembrando os vários retrocessos que estão sendo perpetrados desde o início do golpe dado pelo governo de Michel Temer, afetando sempre em primeiro lugar as mulheres, populações e povos tradicionais e as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros em geral.
A extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos é um claro exemplo dessa política. Entre as muitas outras atrocidades, destacam-se o aumento do desmatamento (por exemplo, o Projeto de Lei 3729), a absoluta paralisação da demarcação das Terras Indígenas e o fim da titulação de terras quilombolas (Medida Provisória 759/16), as contrarreformas trabalhista, da educação e da previdência e a criminalização dos povos do campo e movimentos sociais. Tudo isso se traduz em parte pelo aumento dos conflitos no campo em mais de 26%, totalizando o maior índice de assassinatos dos últimos 14 anos, como denuncia a publicação Conflitos no Campo no Brasil 2016, elaborado pela CPT. Em 2017, já foram 52 assassinatos, incluindo as nove vítimas do Massacre de Colniza, em Mato Grosso.
Frente à uma crise política, social e econômica crescente, os grupos de mulheres precisam se preparar para enfrentar maiores dificuldades, adotando atitudes como a troca solidária, explica Gloria María Grández Muñoz, agente voluntária da CPT e assessora do deputado federal Ságuas Moraes. “Os intercâmbios e o trabalho da CPT pretendem fortalecer a luta pela permanência das mulheres e suas famílias no campo”, disse.
Aline Mialho, também da Comissão, complementa dizendo que a replicação e divulgação dessas experiências é crucial no combate ao êxodo rural, principalmente da juventude, mas que, para isso, é necessário ampliar e melhorar a Educação do Campo, valorizando assim a “vida na roça” e lutando contra os preconceitos existentes.
E, justamente, a Feira de Saberes e Sabores Agroecológicos organizada pelas camponesas no centro da cidade, no sábado (29), é fruto desse trabalho. Os colidenses tiveram a oportunidade de experimentar sabores de todo Mato Grosso, admirar o trabalho dos grupos de mulheres e até participar de apresentações espontâneas de siriri e cururu.
Dê Silva, militante da defesa das mulheres camponesas e participante do evento, explica que a Feira, muito além de fomentar a autonomia financeira, é um exemplo de luta pela agricultura familiar, pela segurança e soberania alimentar, por todas as mulheres e pelo povo brasileiro. É a proposta da alternativa agroecológica frente a um sistema machista e violento, representado em parte pelo agronegócio.
Os três dias de encontro resultaram na elaboração, coletiva, de uma Carta Política que registra todo esse contexto e reforça a importância da organização feminina em defesa da agroecologia. “Com muita energia reafirmamos que nossa luta e organização de mulheres através do nosso fazer juntas e da nossa resistência diante da opressão, acalentam nosso sonho de tempos melhores, tempos mais solidários e mais igualitários para nós, nossas famílias, a Terra Mãe e todos os seres que a habitam”. (Carta do III Intercâmbio Estadual de Mulheres Camponesas).