COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Como fica o combate ao trabalho escravo nestes anos de retrocesso. 

Entre 1995, ano da criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, e o final de 2020, foram realizadas 5.602 fiscalizações de trabalho escravo, no campo ou na cidade, sendo 2.851 no período de 1995 a 2010 e 2.751 no período de 2011 a 2020. O número de estabelecimentos fiscalizados anualmente pelos grupos móveis ficou numa média anual de 178 entre 1995 e 2010, subiu para 275 entre 2011 e 2020, com um teto de 296 entre 2007 e 2015. De 2016 para cá, o número anual médio foi diminuindo um pouco, em conjuntura política de franco retrocesso. Mesmo assim ficou em 247 na média dos últimos 6 anos. Apesar de muitos contratempos (orçamentos e efetivos minguados, críticas repetidas à fiscalização), a atuação dos órgãos de combate ao trabalho escravo permaneceu, possibilitando o resgate de 53.111 mil trabalhadores desde 1995, com uma média anual de 2.040 no período de 1995 a 2020, sendo 2.450 entre 1995 e 2010, e 1.400 entre 2011 e 2020, ficando abaixo de mil por ano nos últimos 6 anos (média de 868). Neste total a parte da Amazônia tendeu a diminuir fortemente: nela aconteciam 65% das fiscalizações entre 2001 e 2010; essa percentagem caiu para 47% entre 2011 e 2017, e de novo para menos de 35% depois de 2018. 

Em 2020, 112 casos de trabalho escravo foram identificados em todo o Brasil, envolvendo 1.390 pessoas e resultando no resgate de 1.040 delas. Destas, 942 foram encontradas por Auditores Fiscais do Trabalho atuando nos grupos móveis de fiscalização (junto com policiais federais e procuradores), e 98 sem a participação de AFTs. Em 2019, o número total de casos identificados havia sido maior: 130, sendo praticamente iguais os demais números: 1.208 pessoas envolvidas, 1.050 resgatadas (mais 87 não resgatadas). A diferença é que, em 2020, por vários meses, não houve possibilidade de os fiscais irem a campo especialmente para áreas que exigissem deslocamento aéreo. As ocorrências de norte a sul do país abrangeram diversos segmentos, tais como pecuária, lavouras (especialmente café e cebola), carvoaria, mineração, confecção, construção civil, serviços diversos e, em 3 ocorrências: serviço doméstico, destacando aí  a dramática história de Madalena, uma mulher negra explorada desde seus 8 anos e durante mais 38 anos por  uma família abastada de Patos de Minas, MG. 

Desemprego, informalidade e desmonte dos direitos tendem a acentuar e invisibilizar a exploração dos trabalhadores. Embora um pouco superiores ou iguais aos de 4 dos 5 anos anteriores, os números de 2020 confirmam uma tendência de redução da visibilidade do trabalho escravo, porém desta vez com uma redução significativa do número de estabelecimentos fiscalizados. Não há como sugerir que a prática do trabalho escravo tenha diminuído. Disso nos alerta o integrante da Campanha “De olho aberto para não virar escravo!”, Hamilton Luz (CPT-BA): “Conseguir emprego se tornou uma proeza tão hipotética que, mesmo submetido a humilhações, violação de direitos, sendo tratado até pior que animal, o trabalhador resiste à ideia de denunciar. Ainda mais quando a lei que protegia seus direitos sofre desmontes sucessivos como foi acontecendo a cada ano ultimamente”, destaca. “Sem denúncia, precisa investigar bastante para localizar focos de trabalho escravo escondidos atrás da ‘normalidade’. Em contexto de gritante restrição de recursos, a fiscalização sozinha, com meios minguando faz anos, dificilmente consegue dar conta”.

O desmonte dos direitos e a precarização dos empregos têm agravado a situação do trabalho escravo no país. “Um dos grandes vilões é o desemprego (além da concentração de terra e falta da reforma agrária), a pessoa desempregada, na maioria das vezes, não pensa duas vezes antes de aceitar um emprego, e é nessas horas que os gatos, os aproveitadores da ‘miséria’ alheia dão o ‘golpe’”, comenta Luz. 

Os efeitos mais deletérios da reforma trabalhista resultaram principalmente da flexibilização sem limite do recurso à terceirização (porta de entrada para a maioria dos casos de trabalho escravo) e do rebaixamento dos padrões mínimos exigidos na organização da jornada e das condições de trabalho, junto à afirmação da primazia do negociado sobre o legislado (outra porta aberta para todo tipo de abuso, em relação de negociação geralmente desigual, especialmente no ambiente rural).  

Outro elemento fortemente dissuasivo para qualquer iniciativa de denúncia ou de resistência de um trabalhador frente à violação dos seus direitos: a eventualidade para a parte sucumbente em litígio perante a Justiça do Trabalho de ter que arcar com as despesas da defesa da outra parte.  Neste clima não é de se admirar se as denúncias de trabalho escravo acolhidas na CPT têm seguido uma linha de forte redução nos últimos anos.

DESMONTE E RETROCESSOS

As verbas destinadas à fiscalização do trabalho no Orçamento Federal do Brasil despencaram brutalmente: de uma média de R$ 65 nos anos de 2015 a 2017, o orçamento público foi para 41 em 2018, 39 em 2019, 25 em 2020 e nova redução ainda em 2021 (fonte: Federação Única dos Petroleiros). 

A falta de Auditores-Fiscais do Trabalho prejudica diretamente o combate ao trabalho escravo e as demais demandas da fiscalização. Segundo o SINAIT, a carreira da Auditoria-Fiscal do Trabalho tem 3.644 cargos criados por lei, mas apenas 2.100 Auditores-Fiscais do Trabalho estão na ativa hoje, para atuar em 27 unidades da Federação e na sede do Ministério da Economia, em Brasília. A necessidade real é avaliada em 8 mil Auditores, como apontou desde 2012 o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea. Em média, todos os anos, aposentam-se 130 Auditores. O déficit é de 1.544 Auditores-Fiscais do Trabalho, o maior dos últimos 25 anos. As vagas existem, mas o governo não realiza concurso (o último foi em 2013). Uma nota pública da CONATRAE de 30 de junho de 2020 cobrou um posicionamento do Governo a esse respeito, mas não foi respondida até o momento.

No tocante à fiscalização específica do trabalho escravo, os efeitos desta dramática redução orçamentária são visíveis. Contudo foram em parte controlados, inclusive graças à resiliência e valentia dos agentes públicos envolvidos. Com a pandemia, os efeitos do prolongado estancamento do recrutamento para a carreira de AFT têm sido agravados e escancarados: com grande número dos seus funcionários já na faixa etária de risco, tornou-se problemática de março de 2020 para cá a operacionalização da fiscalização in loco, uma necessidade incontornável em matéria de trabalho escravo. 

De acordo com a CPT, nos últimos 25 anos – ou seja: entre 1995, ano da criação do Grupo Móvel, e final de 2020 – cerca de 55.850 pessoas em situação análoga à escravidão foram libertadas em todo o país, de um total de 58.400 pessoas encontradas nesta situação. Os números oficiais da Secretaria de Inspeção do Trabalho diferem um pouco (para menos) da estimativa da CPT, pois, diferente do cálculo da CPT, não incluem eventuais resgates realizados por outras instituições públicas (sem a participação de Auditores Fiscais do Trabalho). É considerada escravizada uma pessoa submetida a condições degradantes de trabalho, jornada exaustiva ou a alguma forma de privação de liberdade de ir e vir, inclusive, por meio de dívida ou de trabalho forçado. Segundo o art. 149 do Código Penal, reduzir alguém a esta condição é crime e a pena é de dois a oito anos de prisão, além de multa.

Os números disponíveis dão conta apenas da parte visível de um iceberg cuja dimensão real permanece fora do nosso alcance. Nem toda fiscalização resulta em flagrante de trabalho escravo: pelo contrário, a experiência mostra que apenas 45% (menos de uma em cada duas) resulta em resgate. Já foi maior essa proporção, chegando a 70% em algum ano (2003, 2005, 2007), mas, desde 2013 a proporção ficou menor: em torno de 40% em média. 

Não tem alternativa: detectar a existência da prática do trabalho escravo depende ou de denúncia por parte de vítimas ou da realização de sofisticado trabalho de inteligência. Apenas recentemente 15 a 30% das fiscalizações passaram a depender de “trabalho de inteligência”. Ou seja: a possibilidade de localizar o crime tem essencialmente dependido da decisão de trabalhadores fugirem para denunciar. 

Aí intervém o papel central assumido por todos nós, inclusive nós da CPT: nossa pastoral tem sido quase que um “porto da salvação” para milhares de peões desamparados, acolhendo e encaminhando desde o princípio dos anos 1970 a maior proporção das denúncias propostas à Secretaria de Inspeção do Trabalho.

O processo de uma denúncia por sua vez depende de diversas condições e circunstâncias: a capacidade de os trabalhadores avaliarem a sua situação como fora do “normal”; sua possibilidade concreta de optar pela resistência às condições impostas; a existência de algum caminho de fuga ou/e de denúncia acessível, sem incorrer em risco impeditivo; a capacidade de o receptor da denúncia acolher, entender, amparar o informante e, com todo o sigilo necessário, encaminhar para as autoridades competentes uma informação minimamente organizada e operacional.

Por muito tempo a CPT foi o principal canal de denúncia para os “peões” que optassem por denunciar. E as primeiras denúncias divulgadas pela CPT – já nos anos 1970-1980 (cf Pedro Casaldáliga, Ricardo Rezende, Henri des Roziers) foram à raiz da crescente mobilização em favor do combate ao trabalho escravo contemporâneo. 

Nos primeiros anos, a proporção dos casos de trabalho escravo identificados por denúncias encaminhadas pela CPT ficou em mais de dois terços do total: 69% em média no período de 1995 a 2006. Nos anos subsequentes, com a interiorização do acesso ao serviço público (a exemplo do Ministério Público do Trabalho), a multiplicação dos aplicativos (como o Disque 100 e agora o novo sistema Ipê operacionalizado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho: https://ipe.sit.trabalho.gov.br/) e dos telefones celulares, essa proporção foi recuando para uma média de 27% no período de 2007 a 2019. Mesmo assim, força é de constatar que nem a metade das denúncias assim encaminhadas chegava a ser fiscalizada.

Até 2006, 4 em cada 5 resgates aconteciam na Amazônia onde ocorriam 3 em cada 5 fiscalizações. A partir de 2004 o resto do território nacional passou a ser também fiscalizado, e com crescente intensidade. De 2007 para frente, a fiscalização de trabalho escravo tem atuado em média em 21 estados a cada ano. Neste último período, uma fiscalização em cada duas ocorreu fora da Amazônia, e os maiores resgates também fora deste bioma (3 em cada 5). Em 2020, menos de uma fiscalização em cada três foi na Amazônia.

Com isso o ranking dos Estados mais afetados e a proporção relativa entre trabalho escravo rural ou não rural foram mudando, como mostra o ranking dos primeiros estados pelo número de resgates:

RANKING POR ESTADO CONFORME O NÚMERO ANUAL MÉDIO DE RESGATADOS DO TRABALHO ESCRAVO: OS PRIMEIROS DOZE COLOCADOS EM CADA PERÍODO 

Período 1995-2006

PA

MT

BA

MA

TO

GO

RJ

RO

MG

PI

ES

SP

N° de resgates

8277

4601

2140

2044

1705

914

673

585

310

299

294

218

Por ano

690

383

178

170

142

76

56

49

26

25

25

18

 

Período 2007-2020

PA

MG

GO

MS

SP

MT

MA

RJ

TO

PR

BA

PI

N° de resgates

5289

4353

3337

2711

2078

1579

1456

1454

1357

1313

1304

1137

Por ano

407

335 257 209 160

121

112 112

104

101 100 87

 

ACESSE AQUI acesse a tabela completa com dados detalhados do registro de trabalho escravo no Brasil até 2020.


Ao se estender ao conjunto do território nacional, a fiscalização do trabalho escravo passou a revelar a presença deste crime em um leque de atividades bem mais diversificado: quando, na Amazônia, predominavam o desmatamento, a pecuária, o extrativismo vegetal, o carvão vegetal e algumas monoculturas como soja e eucalipto, a fiscalização se deparou, além do agronegócio (soja, café, cana de açúcar, algodão, cacau, milho), com setores como construção civil, confecção, restauração, transporte e serviços diversos, na cidade como no campo.  

A ampliação territorial da fiscalização, no entanto, não permite afirmar que já estaríamos perto de enxergar o problema em sua totalidade. O tamanho real do iceberg do trabalho escravo permanece uma incógnita. É muito provável que se estenda bem além do que conseguimos enxergar até hoje.


Por isso importa não baixar a guarda, ampliar a vigilância, espalhar a informação, reforçar os instrumentos da política pública no âmbito da prevenção, da repressão e da reparação, sem a qual não se pode esperar quebrar o ciclo da escravidão. Uma boa notícia deste tão conturbado ano 2020 foi a aprovação pelas COETRAE e a CONATRAE do Fluxo Nacional de Atendimento às vítimas do trabalho escravo, doravante referência essencial para a necessária articulação das intervenções das várias instituições convocadas a contribuir neste nobre combate tanto no plano nacional, como no estadual e no municipal. 

28 de janeiro de 2021


COMISSÃO PASTORAL DA TERRA - CAMPANHA NACIONAL CONTRA O TRABALHO ESCRAVO 

 

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