Manobra de congressistas quer restringir definição de escravidão e afrouxar emenda constitucional que destina propriedades onde crime for cometido à reforma agrária.
(Carta Capital)
Em maio deste ano, o Congresso Nacional aparentemente cumpria uma dívida histórica com os direitos humanos. O Senado Federal aprovou emenda constitucional que destina propriedades onde for encontrado trabalho escravo à reforma agrária ou a programas habitacionais. Antiga demanda de movimentos sociais e apoiada pelo Governo Federal, a PEC do Trabalho Escravo era aprovada 15 anos após ser proposta.
Mas esta vitória pode ser esvaziada com a movimentação de deputados federais e senadores. A definição de trabalho escravo ainda depende de uma votação dos congressistas, e parte deles tenta deixá-la mais branda.
A lei atual, redigida em 2003, estabelece que o trabalho análogo à escravidão acontece quando o trabalhador não consegue sair do emprego, é forçado a trabalhar contra sua vontade, é sujeito a condições desumanas ou é obrigado a trabalhar tão intensamente que põe sua vida em risco.
A definição do novo projeto, relatado por Romero Jucá (PMDB-RR), é mais restrita. Nele, só é considerado trabalho escravo quando o empregado é forçado a trabalhar sob ameaça de punição ou com restrição da liberdade pessoal. O projeto para regulamentar a emenda também diferencia o descumprimento da legislação trabalhista do trabalho escravo e impõe mais entraves ao processo de desapropriação das propriedades rurais e urbanas.
Na justificativa do projeto, Jucá argumenta que a atual definição de trabalho escravo é muito subjetiva. “O que é sumamente revoltante para alguns pode não o ser para outros, principalmente porque as condições de trabalho em geral não são lá essa maravilhas nos campos distantes, nas minas, nas florestas e nas fábricas de fundo de quintal.”
Para ativistas, o conceito atual de trabalho escravo já é suficiente. “Vira e mexe, ouve-se o argumento de que auditores fiscais do trabalho consideram como trabalho escravo a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis. Esse tipo de tentativa de desqualificação das condições degradantes de trabalho é uma ofensa aos trabalhadores”, escreveu Dira Paes, diretora geral do Movimento Humanos Direitos, em carta direcionada ao Senado Federal.
“Para ajudar a entender, façamos um paralelo: aceita-se punir homicídios. Desde que o bandido tenha cometido o crime entre às 4 e às 6 da tarde”, diz a ativista, para quem criar uma nova lei para um crime já existente poderia aumentar a impunidade.
Militantes e governo pressionam para mudar projeto
Os acordos para que a PEC do trabalho escravo fosse aprovada, entre outros pontos, incluíram a inclusão das palavras “na forma de lei” ao final da emenda. Desta forma, terras só poderão ser desapropriadas depois que uma lei específica for aprovada para tratar deste assunto.
Esta lei está sendo discutida na Comissão Mista de Consolidação das Leis e Regulamentação Constitucional, onde se encontra o projeto aprovado por Jucá.
A presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, senadora Ana Rita (PT-ES), afirmou em plenário que o relatório ainda deve ser modificado. “A regulamentação não pode significar retrocesso. E nosso entendimento é de que [o texto atual] tem retrocesso, então ele precisa ser mais bem debatido.”
Sob pressão do governo e de movimentos sociais, Jucá já fez algumas concessões. Entre elas, está a retirada da necessidade de “trânsito em julgado”, ou seja, de que o dono da terra já tenho sido julgado em todas as instâncias da Justiça. Além disso, o relator aceitou incluir no texto a possibilidade de imóvel registrado em nome de pessoa jurídica ser expropriado.
O novo texto também estabelece que os bens apreendidos em decorrência da exploração de trabalho escravo sejam revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). No projeto original, os bens iriam para um fundo específico de combate ao trabalho escravo.
Para ativistas ligados à causa, porém, as mudanças feitas por Jucá ainda não são suficientes. Xavier Jean Marie Plassat, Coordenador da campanha nacional de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, diz que “a discussão não pode se perder nos detalhes” como as questões que já foram modificadas no projeto.
Desde que o Governo Federal criou o sistema público de combate a esse crime, em 1995, mais de 45 mil pessoas foram libertadas do trabalho escravo no País. Segundo Xavier, a flexibilização da ideia de trabalho escravo poderia fazer o Brasil perder esta conquista.
“A realidade observada nos últimos 20 anos tem demonstrado amplamente que as formas características do trabalho escravo contemporâneo são justamente reduzir uma pessoa a situação de coisa, animal. Da forma como está, a nova definição não trata disso. Sem dúvida nenhuma, poderíamos até regredir no combate ao trabalho escravo”, diz Xavier.