‘É de nenhuma eficácia a autorização emitida pelo parlamento’. Com essas palavras a desembargadora federal Selene Maria de Almeida, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, desqualificou o Decreto legislativo nº 788/2005 do Congresso Nacional que autorizou a construção da usina de Belo Monte, no rio Xingu (PA). Ela considerou igualmente inválido o licenciamento ambiental de Belo Monte.
Falta de consulta
No julgamento de hoje, segunda-feira 17 de outubro, estava em pauta a Apelação Civil do Ministério Público Federal do Pará -MPF/PA contra decisão em 1ª instância numa das treze Ações Civis Públicas questionando o processo de Belo Monte (processo nº 2006.39.03.000711-8/PA).
Num voto elaborado e denso, a desembargadora acatou a maioria dos pontos apresentados pelo MPF/PA, sendo o argumento mais importante o fato de as comunidades indígenas afetadas pela usina de Belo Monte não terem sido consultadas a respeito, conforme mandam a Constituição Federal e tratados internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2004 (Decreto nº 5.051/2004).
Ela não deixou dúvidas sobre a necessidade das oitivas: ‘A Constituinte prescreve que sejam ouvidas as comunidades indígenas afetadas. Para protegê-las.’ Em seu voto, a Dra. Selene reafirmou o posicionamento já adotado pelo TRF1 quando da primeira avaliação da matéria, em 2006.
Falso argumento
A defesa da Eletrobras argumentara que as oitivas indígenas não seriam necessárias, porque a usina não seria construída no interior de terras indígenas e nem inundaria terras indígenas. Selene de Almeida foi enfática a desmascarar esse falso argumento. ‘A colocação fora das terras indígenas é irrelevante para a questão’. Citando vários relatórios - do Ibama, da Funai, do Painel Independente de Especialistas e o próprio Estudo de Impactos Ambientais (EIA-RIMA) - ela concluiu que os impactos para os povos indígenas da região serão drásticos, ao ponto de ameaçar a sua sobrevivência física e cultural. ‘Não perder território pela usina ou pela inundação não quer dizer que não sofrerão impactos. É impossível dizer que não serão impactados. O aproveitamento hídrico impactará gravemente as comunidades indígenas’.
Citando trechos relevantes da Constituição, como o artigo 321, ela explicou que o dever do Estado é proteger os povos indígenas e seus recursos naturais. ‘Isso é a regra geral da Constituição’. O direito à consulta prévia contribui para essa proteção. Por isso, não se pode entender o artigo referente às obras ‘em terras indígenas’ no sentido estrito, a pé da letra. ‘Entender o artigo como limitado a ‘dentro da área’ significa expor as comunidades a perigo, a uma agressão à própria sobrevivência’. Isto é, a perigo de empreendimentos fora de suas áreas que causem impactos em seu interior.
Defesa confusa
As defesas sustentadas pela Eletrobras e pela AGU se mostraram confusas e contraditórias entre si. Por um lado, foi argumentado que a realização de oitivas não era necessária, ao mesmo tempo em que se ressaltou que as ‘oitivas’ teriam sido efetivamente realizadas. Ainda, foi sustentado que as oitivas não poderiam ser realizadas antes da obtenção de autorização para a obra, uma vez que faltaria informação sobre a obra para discussão nas próprias oitivas. Este último argumento, entretanto, contradiz a alegação do governo de que Belo Monte seria a usina melhor estudada, já que os estudos começaram já nos anos setenta.
Mas há argumentos maiores contra esse raciocínio. ‘A consulta é prévia à decisão sobre a autorização. Serve para subsidiar a decisão política sobre a obra. Não se autoriza uma obra para depois fazer a consulta sobre essa decisão. Para nós está claro que a autorização depende da anuência das comunidades afetadas, a pena de tornar letra morta a própria Constituição’.
Em outras palavras, a consulta prévia não pode ser uma mera formalidade para legitimar uma decisão já tomada: ‘A consulta é ouvir as comunidades afetadas para condicionar a decisão. Não é apenas uma recomendação.’
Reuniões e audiências não são oitivas
A desembargadora concordou que a Funai e o Ibama têm realizado muitas reuniões junto às comunidades indígenas e quatro audiências públicas na região de influência de Belo Monte. Concordou inclusive que essas reuniões já são um passo à frente, em comparação com a execução de outras tantas grandes obras, nas quais a população impactada sequer foi informada. Ainda assim, tais reuniões e audiências não podem ser consideradas como ‘consultas prévias’ ou ‘oitivas indígenas’: ‘Essa reuniões tinham o caráter de informar sobre a decisão tomada, foram reuniões técnicas. A consulta não é uma simples reunião, mas é um processo de negociação, o início de um diálogo’.
Responsabilidade do Congresso
Para a desembargadora, Funai e Ibama não podem realizar oitivas indígenas tal como constitucionalmente preconizado, pelo simples fato que a sua realização é uma atribuição do Congresso Nacional, que não pode delegá-la a órgãos do Executivo. Em outras palavras, a responsabilidade é diferente por princípio: é uma competência exclusiva do poder Legislativo (Congresso) e não do poder Executivo (governo).
A desembargadora concluiu com a recomendação para que se desenvolva um sistema de consulta prévia, livre e informada no país - conforme as regras nacionais e internacionais - ‘antes que se torne rotineira a construção de hidrelétricas e outros empreendimentos na Amazônia’.
Em seguida ao voto da desembargadora Selene Maria de Almeida, o desembargador Fagundes de Deus pediu vista do processo, anunciando que apresentará seu voto em, no máximo, quinze dias. A desembargadora Maria do Carmo Cardoso não adiantou seu voto.
Reconhecimento
Felício Pontes, procurador do MPF/PA que acompanhava o julgamento, ficou satisfeito com o voto positivo da desembargadora Selene. ‘O voto foi brilhante, extremamente denso, recuperando todos os elementos que temos apresentado ao longo dos anos. É um reconhecimento de doze anos de trabalho! A desembargadora reconheceu que os impactos de Belo Monte sobre a população indígena seriam terríveis e que os indígenas não foram consultados a respeito, que isso é uma falha extremamente grave, que invalida o processo de licenciamento de Belo Monte. É um bom começo. Agora é importante que o julgamento seja retomado o mais rápido possível.'