A empresa pode captar até 145 milhões de litros de água por dia e exemplifica o frenesi de bilionários estrangeiros sobre as águas do Cerrado
Por Caio de Freitas Paes, Agência Pública
Foto: José Cícero/Agência Pública
Como revelado no levantamento inédito da Agência Pública, a SLC é uma das grandes beneficiadas de outorgas de recursos hídricos no Cerrado baiano. Em plena fronteira da soja, a água é um ativo muito valioso, tal como nas bolsas de valores onde a SLC opera.
Documentos divulgados ao mercado financeiro mostram que a companhia tem como acionistas uma teia de bilionários estrangeiros, incluindo bancos acusados de financiar projetos considerados nocivos à Amazônia, fundos de aposentadoria de conglomerados como Boeing e Shell e fundos de pensão de várias partes dos EUA. Até mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI) é sócio minoritário com poder de voto.
Com relação ao privilégio da água, o caso da SLC não é exceção. Se considerar apenas as outorgas de uma parceira comercial da SLC, a japonesa Mitsui & Co, as permissões de ambos os grupos somadas chegam a 220 milhões de litros de água por dia, só para irrigação agrícola.
A mais recente Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, com dados de 2017, indica um consumo diário de 112 litros de água por pessoa, em média, na Bahia. Significa que somente o volume liberado para Mitsui & Co e SLC já abasteceria quase 2 milhões de pessoas todos os dias no estado – mais que a metade da população de Salvador, segundo a mais recente estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Sozinha, a SLC tem permissão para captar diariamente mais de 145 milhões de litros de águas subterrâneas na bacia do mítico rio São Francisco e do curso de outros na região, como o rio Arrojado. Um a cada 4 litros de toda essa água garante suas lavouras de soja na fazenda Palmares I, irrigadas com aval do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) até 2022. Em outra de suas fazendas na região, a SLC ainda garantiu uma licença para uso diário de mais de 100 milhões de litros de água do maior aquífero do território brasileiro, o Urucuia.
Segundo a própria empresa, todos seus sócios estrangeiros lucram com o cultivo de milho e soja irrigados no Cerrado, com a maior parte da produção repassada à holandesa Bunge e à norte-americana Cargill. “Desde os anos 2000, o agronegócio aqui da região se aproximou de empresas que dominam cadeias de produção agrícola no mundo”, afirma Samuel Chagas, representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no oeste da Bahia.
Chagas diz ainda que os elos internacionais do agro no Cerrado baiano são visíveis “pelo aumento de silos e estruturas de armazenamento dos grupos ADM, Bunge e Cargill, entre outros”. Estas três tradings fazem parte do seleto grupo que domina quase 70% do mercado agrícola no mundo todo, segundo o Atlas do Agronegócio.
No caso da Bunge e da Cargill, ambas têm assinado compromissos pela conservação do Cerrado e prometido mais transparência em sua cadeia de fornecedores diretos e indiretos, afinal, já foram multadas pelo governo brasileiro por adquirir soja cultivada em áreas proibidas no bioma.
Só em 2020, essas duas multinacionais gastaram mais de R$ 890 milhões em sacas de soja da SLC. A Pública procurou a Bunge e a Cargill para conhecer a procedência desses grãos, mas não houve resposta.
Seca e agronegócio
O Ministério Público (MP) estadual da Bahia vê relação entre o agronegócio irrigado e a seca no estado. Em 2018, o órgão identificou que o governo estadual concedia mais de 3 bilhões de litros de água para uso diário só na bacia do rio Corrente, uma das principais no Cerrado baiano. A descoberta consta em uma análise sobre a condição dos rios no oeste da Bahia, feita a pedido do Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco, do MP.
Toda essa água é captada pelo agronegócio a custo zero – ao menos perante o estado. O governo não cobra pelo uso da água nas bacias dos rios Corrente e Grande, pilares da irrigação agrícola que tomou conta do oeste baiano nas últimas décadas.
Até abril de 2021, a SLC tinha permissões de uso diário que superavam 200 milhões de litros só na fazenda Piratini. José Cícero/Agência Pública
“Ao considerar que todas as fazendas captam as respectivas vazões máximas outorgadas ao mesmo tempo para cada rio, tem-se uma enorme quantidade de água retirada dos rios diariamente”, segundo o estudo do MP, consultado pela reportagem.
A análise foi feita logo após a “guerra da água”, uma revolta popular contra o abuso hídrico pelo agronegócio, em novembro de 2017. Para camponeses e movimentos sociais, a tomada das águas pela iniciativa privada é uma agenda econômica e política não só no Cerrado baiano como em toda a fronteira agrícola que o cerca, no chamado Matopiba.
A acusação ganha corpo conforme avançam novos projetos com endosso político. No caso da Bahia, o vice-governador, João Leão (Progressistas), planeja implantar um polo agroindustrial irrigado no Médio São Francisco. Também secretário de Planejamento do estado, o vice leva comitivas de empresários à região há anos, com envolvimento de investidores estrangeiros nas tratativas.
Mas a iniciativa avança sem consenso quanto à sua sustentabilidade nem estudos consolidados sobre a atual condição de toda a bacia do Velho Chico. O projeto bate de frente com quilombolas e ribeirinhos, que têm denunciado uma onda de grilagens e violência desde o anúncio da iniciativa, como relatado por De Olho nos Ruralistas e Mongabay.
Do outro lado, o governo já alegou que “a elaboração dos projetos, construção das usinas e plantio é de inteira responsabilidade da iniciativa privada interessada” no polo agroindustrial.
O caso da fazenda Piratini
O privilegiado acesso da SLC às águas subterrâneas na bacia do Velho Chico se dá em um latifúndio de mais de 25 mil hectares em Jaborandi (BA), próximo à divisa com Goiás. A empresa partilha a fazenda, chamada Piratini, com um fundo britânico chamado Valiance, de presença discreta no Brasil.
O grupo europeu é um dos inúmeros sócios estrangeiros na SLC, que tem, por exemplo, outro influente acionista no mesmo Reino Unido: o fundo de investimentos do bilionário Crispin Odey, um dos grandes financiadores da campanha pelo Brexit. O britânico já disse, anos atrás, que quaisquer infrações ambientais da SLC Agrícola eram como “multas de estacionamento” — segundo consta no Financial Times.
Indiretamente, o fundo de Crispin Odey e uma teia de acionistas do exterior se beneficiam das terras na Bahia com uma carta na manga: a outorga para o uso de mais de 100 milhões de litros do São Francisco por dia no local, válida até 2023. Só essa autorização já garantiria mais do que o triplo do consumo diário da população urbana de Jaborandi, segundo dados do plano de saneamento básico do município.
A abundância de águas na região é cortesia do Urucuia, o maior aquífero do território nacional – ele está espalhado por uma área de Cerrado maior que a Grécia ao longo de seis estados brasileiros.
“Os rios daqui começam suas jornadas nas áreas de recarga do Urucuia, nos chapadões, pois a chuva cai, infiltra no solo e, no período de seca, o que caiu nos chapadões desce rumo aos rios e veredas, mantém a vazão perene”, diz Marcos Rogério Beltrão, ambientalista nascido e criado em Correntina (BA), município vizinho às terras da SLC.
Mapa dos rios que cortam o oeste baiano. Cíntia Funchal/Agência Pública
O avanço da irrigação em larga escala ameaça o aquífero, responsável por manter vivos os rios Tocantins e Parnaíba noutras partes do bioma. “Com o passar do tempo houve muito desmatamento nos chapadões, começou a reduzir o volume de água que chega às nascentes”, diz Beltrão.
À Pública, “a SLC Agrícola informa que todas as captações de água seguem estritamente as outorgas concedidas pelos órgãos ambientais e são monitoradas mensalmente com hidrômetros” em suas fazendas. Ela diz ainda que, “na fazenda Piratini, todas as colheitas foram [feitas] com base em sequeiro”, irrigadas apenas com o volume de chuvas que cai no local.
A reportagem procurou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para verificar a situação da fazenda. Responsável por fiscalizar a posse de grandes propriedades por estrangeiros no país, o Incra disse que o imóvel “está inscrito no Sistema Nacional de Cadastro Rural” e que “não há processo de fiscalização aberto para verificar possível aquisição ou arrendamento por estrangeiro da referida fazenda”.
Hall de acionistas
A estratégia de captação de sócios do porte do fundo britânico Valiance passa por uma série de operações em bolsas de valores no Brasil e no exterior, como a emissão de títulos – dívidas, por exemplo – em nome de bancos, corretoras, fundos de investimento, gestoras e outros grupos financeiros.
Sede do FMI em Washington
O professor de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Eduardo Costa Pinto exemplifica como empresas que operam em bolsas de valores seguem uma lógica de negócios, por vezes, similar.
“Uma empresa pode ofertar uma dívida ou título de sustentabilidade com certo prazo de vigência e no valor de R$300 mil, por exemplo. O que é dívida ou título para a empresa se torna riqueza para os fundos e investidores que compram estes papéis, chamados de ‘debêntures’”, afirma.
“Quem adquire essas debêntures recebe valores fixos anuais, com juros, e ao fim ainda recebe a íntegra do que investiu inicialmente. É a lógica por trás da ‘financeirização’ dos setores produtivos”, diz o professor da UFRJ.
A SLC Agrícola repete o script. A companhia negocia em bolsas e atrai investidores diversos vendendo debêntures e papéis similares. Angaria assim investidores bilionários, como mostram documentos divulgados ao mercado financeiro.
Em junho de 2021, a dona da fazenda Piratini fechou a compra de sua concorrente Terra Santa Agro, ampliando seu leque de propriedades no Brasil. Após o negócio, estima-se que a SLC controle mais de 660 mil hectares somente para cultivo de soja e afins no Brasil – uma área maior que o Distrito Federal ou a Palestina apenas para seus agronegócios.
A operação foi aprovada meses antes em uma assembleia geral extraordinária da SLC. A lista dos acionistas que votaram na ocasião registra a agência estatal de investimentos de Brunei, país de sultões no Sudeste Asiático, e o Custody Bank of Japan – controlado pelos grupos nipônicos Mizuho e Sumitomo Mitsui.
Há também fundos associados às indústrias aeroespacial e petrolífera – de pensionistas da Shell, na Holanda, e da Boeing, nos EUA. A presença de investidores norte-americanos também se destaca.
De lá vêm acionistas como o fundo de investimentos de bombeiros e policiais da cidade de Los Angeles; fundos de aposentadoria de servidores públicos dos estados da Flórida, do Novo México, do Oregon e do Texas; fundos de pensionistas do sistema ferroviário norte-americano e da reitoria da Universidade da Califórnia, entre outros. O sistema financeiro também se faz presente na SLC.
Há a presença de fundos ligados ao JPMorgan Chase, Dimensional Fund e Vanguard – bancos acusados por organizações indígenas de financiar projetos considerados nocivos à Amazônia. Há também sócios ligados ao Goldman Sachs, banco multado em mais de US$ 5 bilhões por sua responsabilidade na crise financeira global de 2008. A lista de acionistas mostra que até o FMI tem poder de voto na SLC.
A reportagemprocurou todos os investidores estrangeiros citados acima, mas poucos responderam. O grupo Vanguard foi um dos únicos a confirmar vínculo de seus fundos com a SLC. “Como política da empresa, não comentamos sobre as participações de portfólio individuais”, disse o Vanguard por meio de nota enviada à reportagem.
No Cerrado, a água é um ativo muito valioso, tal como nas bolsas de valores onde a SLC opera. José Cícero/Agência Pública
O fundo de investimentos de bombeiros e policiais de Los Angeles também confirmou seus laços com a SLC. À Pública, o fundo informou que detém quase 23 mil cotas na empresa, “com um valor de mercado de $166.667,86”. A cifra, em dólar, equivale a cerca de R$ 950 mil, considerando a cotação do último dia 6 de dezembro.
Já o fundo Odey Asset Management, do financiador do Brexit, disse também por meio de nota: “Somos apenas acionistas da empresa de capital aberto [SLC Agrícola], assim como muitos outros [também o são]”.
A Boeing não confirmou sua participação na SLC. A companhia norte-americana informou apenas que “a Boeing Company Employee Savings Plans Master Trust”, acionista com poder de voto na SLC segundo os documentos divulgados ao mercado, “é uma entidade legal autônoma estabelecida pela Boeing” e que seus ativos “são investidos por vários gestores de investimento nomeados de acordo com o próprio fundo”.
O grupo norte-americano JPMorgan Chase não quis comentar sua eventual ligação com a SLC, tal como o fundo de investimentos dos aposentados da Shell na Holanda. Os demais não responderam até esta publicação.
A SLC Agrícola, por sua vez, repassa metade de seus dividendos – com encargos, impostos e afins já deduzidos pela Receita Federal – a todos os seus sócios, estrangeiros ou não.
Parte do lucro vem da fazenda Piratini, no extremo oeste baiano. A empresa disse que “toda a comercialização de soja cultivada na unidade integra os dividendos repassados anualmente aos acionistas”.
Ao todo, no primeiro ano da pandemia a SLC mais que dobrou seu lucro na comparação com o mesmo período anterior. Considerando o ano fiscal de 2020, a companhia distribuiu mais de R$232 milhões aos seus acionistas.
500 milhões de litros para produzir leite
Não se sabe quais os planos da SLC para os mais de 100 milhões de litros a serem captados diariamente do aquífero Urucuia. Há poucos meses, a possibilidade de irrigação em larga escala na mesma fazenda Piratini contava com outras fontes em potencial, como o rio Arrojado.
A fazenda fica num ponto estratégico desse rio, a apenas 30 km da sua nascente, pouco antes de ele dar de beber a agricultores e vaqueiros nos fechos e fundos de pasto. Entre 2019 e 2021, a SLC podia captar diariamente 109 milhões de litros da superfície do Arrojado e outros 22 milhões de outro rio próximo, o Veredãozinho.
“Vemos uma mudança na estratégia do agronegócio, passando para as bacias subterrâneas, para os poços, deixando suas outorgas superficiais – porque não existe mais a capacidade de suprirem mais vazão só pelos rios”, afirma o ambientalista Marcos Rogério Beltrão.
Até abril de 2021, a SLC tinha permissões de uso diário que superavam 200 milhões de litros só na fazenda Piratini. Também num passado recente, havia uma proposta para o mesmo imóvel: a construção do maior polo de laticínios do Brasil.
Em 2018, o Inema chegou a conceder licença prévia para a iniciativa, contanto que houvesse alterações significativas na proposta – em especial, a redução do volume de água a ser retirado diariamente. De acordo com o governo, seriam necessários mais de 520 milhões de litros por dia só do rio Arrojado, o bastante para abastecer mais de 4,5 milhões de pessoas diariamente na Bahia, de acordo com os dados do IBGE.
A Pública teve acesso a documentos relativos à proposta, chamada de Nassau Bahia. O desenvolvimento do polo leiteiro envolvia a fazenda da SLC e a empresa Agri Brasil Holding S.A., do investidor holandês Wilhelmus van Bakel com o analista aposentado do Banco Central Antônio Martins da Cunha Filho.
A Agri Brasil tinha autorização legal da SLC para “dar entrada nos processos de licenciamento ambiental” junto ao governo “para a produção integrada de laticínios que se pretende instalar na Fazenda Piratini”. A dona da fazenda também autorizava a Agri Brasil a representá-la “pelo prazo necessário à entrada, trâmite e conclusão” do licenciamento.
Em nota, a SLC Agrícola disse que a documentação obtida pela Pública “estabelece que a emissão das respectivas licenças está condicionada à eventual conclusão da transação de venda [para a Agri Brasil] e transferência da terra [a fazenda Piratini], o que não ocorreu”, e “que não tem relação com o projeto Nassau Bahia”.
Do lado do governo da Bahia, a Pública teve acesso a um documento que alega o arquivamento do projeto em 2020. O Inema foi procurado para confirmar, mas não houve resposta até esta publicação.