A 6ª Semana Social Brasileira como chave para Análise de Conjuntura[1]
Por Daniel Seidel*
Imagem: Reprodução
Tenho percebido depois de mais de 30 anos de realizar e participar de Análises de Conjuntura que não basta apresentar uma análise. É preciso criar recursos para comunicá-la, visto que trago a preocupação de que ela contribua para compreensão da realidade e possibilite que quem dela participou, multiplique suas trocas e aprendizagens com outras pessoas da comunidade eclesial, do movimento social, da vizinhança e da própria família. Estamos num tempo que é preciso que nos habilitemos ao diálogo, se queremos “estourar a bolha” e viver na prática a missão da “Igreja em saída”[2], que tão generosamente, papa Francisco tem nos sinalizado.
Assim, após muita reflexão quero propor uma chave e um simbolismo para compreender o que está acontecendo hoje em nosso país, com um olhar a partir dos prediletos/as de Deus: as pessoas empobrecidas. Este é um dos critérios que o Ensino Social da Igreja nos orienta: pensar a política para o Bem-Comum, o bem de todos/as, incluindo a Mãe-Terra.
A pessoa humana como símbolo e a chave de leitura da 6ª SSB
Vou adotar como símbolo a estrutura física de uma pessoa humana e como “chave de leitura” o que nos oferece a 6ª Semana Social Brasileira (6ª SSB), em seu lema: “Mutirão pela Vida: por Terra, Teto e Trabalho”, tendo como temas transversais a soberania, a economia e a democracia. Proponho agora que vocês imaginem cada uma das pernas: que uma seja a Terra (no sentido da agricultura, mas também no sentido dos biomas, da agroecologia, das águas e das Florestas), e a outra seja o Trabalho; pois creio que ambos “sustentam a vida humana”. O terceiro T, de Teto seja uma “casa”, que remeta à ideia da moradia, mas também da Seguridade Social: saúde, previdência social e assistência social; além das demais políticas públicas: educação, segurança pública, alimentação saudável.
Soberania, economia e democracia
Seguirei propondo a construção da imagem: sugiro que a cabeça seja soberania, o coração seja economia e os braços seja a democracia. A cabeça porque abriga o cérebro, as ideias e o pensamento, podendo assim decidir os rumos; a economia como aquela capaz de gerar vida digna para as pessoas; e os braços que podem se dar as mãos para colaborar e construir o bem-comum, fruto da democracia.
Bom, no momento atual do Brasil, estamos com este “corpo adoecido”, gravemente, por quê? Porque a temos uma cabeça submissa aos interesses do Presidente dos Estados Unidos da América, assim não é soberana, não pensa por conta própria; segue um projeto de nação submetido aos interesses das Grandes Corporações internacionais e de lá recebe ordens. É uma política que gera a morte e que se alimenta da morte (necropolítica), delimitando “zonas de sacrifício” (Amazônia, as periferias das Grandes Cidades, os lugares para se construir usinas nucleares, entre tantos exemplos) para uma elite pequena possa usufruir do conforto da “ordem e do progresso”
Seu coração só pensa no lucro. Passamos do neoliberalismo feroz para o ultraliberalismo que sacrifica vidas humanas para preservar a propriedade, esta sim, colocada como “direito sagrado”. E para mantê-la vale tudo: liberação de maior número de armas de fogo; liberar armas de muitos tiros, antes de uso exclusivo pelas Forças Armadas. E o que é pior, principalmente para áreas rurais, onde estão numerosos conflitos por Terra.
E em seus braços a direção é a do fascismo (quando você precisa encontrar um inimigo e demonizá-lo, de sorte, que o único jeito para “salvar a sociedade” seja eliminar todos os seus sinais) e do autoritarismo. Multiplicam-se assim os conflitos dentro das famílias, das Igrejas, colocando o povo contra o povo, estimulando-se a “invasão de hospitais”. Não se deixa espaço para o diálogo. Qualquer pessoa que questione deve ser eliminada: porque pensa. As mãos não estão abertas para formar uma aliança, mas para atacar e agredir as outras pessoas.
Terra e Trabalho como pernas e Teto como proteção
Uma das pernas que é a Terra se encontra arrasada, devastada, acelerando-se o desmatamento para fazer avançar a pecuária, a monocultura, os agrotóxicos, a mineração, as hidrelétricas. Não se respeita o direito sagrado aos Territórios Tradicionais dos Povos Indígenas e das Comunidades Originárias: pode-se “passar a boiada”! há uma negação da riqueza das diferenças étnicas e culturais. Há o desejo de se impor um padrão único de vida, de produção e do consumo, baseado na concentração, onde muitos se escravizam para ter uma migalha de salário e poucos esbanjam ostentação e conforto de forma opulenta.
A outra perna é o Trabalho que se encontra enfraquecido, desregulamentado, sem garantias e direitos. A informalidade está na lei atualmente. A promessa é que a Lei da Terceirização e da Reforma Trabalhista iria multiplicar os empregos. E onde estão. O desemprego que estava perto dos 14% antes da pandemia, está caminhando para 20 a 25% da População Economicamente Ativa (PEA). Os sindicatos enfraquecidos e desmoralizados. A possibilidade de concurso público, nem pensar. Como se constrói o futuro de uma família sem trabalho.
E o Teto, a casa, a moradia, a proteção social? Essa se encontra no “balança e quase cai”. Com a vigência da EC 95/dezembro de 2016, que limitou novos investimentos em políticas públicas por 20 anos. Os bispos católicos no Brasil, por meio da CNBB, ainda em outubro de 2016, chamaram a essa proposta de “PEC da Morte”. Foi pura profecia. Quem podia imaginar a situação em que nos encontramos hoje. E para piorar a situação foi aprovada outra Emenda à Constituição: a EC 106/2020. Em plena pandemia, justificada como “PEC do Orçamento de Guerra”, era a PEC 10/2020, para liberar 60 bilhões para os mais de 5.800 municípios e para os Estados e DF; foi aprovado um artigo nela, que permite ao Banco Central doar para os Bancos Privados 1 trilhão e 200 bilhões de reais, por meio de compra de papeis “podres”, ou seja, a cada um real para enfrentar a pandemia os bancos vão ganhar 20 reais. E para gerar o quê? Com isso não se pode contratar novos servidores públicos, nem ampliar a rede de atendimento à atenção básica do SUS – Sistema Único de Saúde e do SUAS – Sistema Único de Assistência Social. Isso para não falar da Reforma da Previdência Social que levou para longe a possibilidade de se aposentar com saúde e, ao mesmo tempo, reestruturou a carreira, elevando os salários dos militares no país.
Critérios para Discernimento: Alegria do Evangelho e Laudato Si
O papa Francisco com seu magistério, dialogando com a tradição da Igreja no Ensino Social, denuncia: “esta economia mata”[3], porque transforma pessoas em números e diz que uma parte tem que morrer (paradigma tecnocrático[4]), não enxerga o ser humano e nem a natureza; e porque privilegia alguns poucos à custa do sofrimento e da morte da maioria.
Na Encíclica Laudato Si, sobre o Cuidado com a Casa Comum, ele nos alerta para a Ecologia Integral[5], louvando a Deus pela abundância e bênção que é a natureza, criação divina, colocada para nossa administração, nos fazendo perceber que tudo está interligado. O clamor da Terra e o clamor dos Pobres da Terra. Quando se considera uma vida descartável, outros valores desumanos já tomaram conta do coração. Por isso ele aponta para o diálogo, a cultura do encontro.
Sinais de Esperança
E é este o caminho que os Movimentos Sociais, articulados por meio das Frentes Populares estão buscando para o Brasil. A Frente Brasil Popular e a Frente Povo sem Medo estão com ações unitárias para afastar essa cabeça do corpo chamado Brasil, seja por meio do impeachment, seja pela cassação da chapa eleita, pelo TSE. Mas baseado em que? Na apuração dos crimes cometidos pelo chefe do poder executivo no exercício do mandato e nas eleições. Está sendo comprovada a utilização de dinheiro volumoso de empresários durante a campanha eleitoral para financiar uma “fábrica de mentiras”, as famosas “fake-news”, que chegaram pelos nossos celulares e que muitos/as de nós compartilhou pensando que eram “verdades”. Esse é o processo de investigação que está sendo comandado pelo STF – Supremo Tribunal Federal para produção de provas que poderão embasar os dois processos, tanto no STF, como no TSE. A CNBB liderou em 2014 uma iniciativa popular para Reforma Política, que não foi votada, mas que pressionou o STF para que proibisse o uso de dinheiro de empresários em campanhas eleitorais.
São se articulando outras frentes mais amplas como o “Somos 70%” e “Estamos Juntos” antifascistas que estão mobilizando as redes sociais, com seus manifestos e há três semanas se iniciaram manifestações, principalmente lideradas por jovens de periferia, de torcidas organizadas contra o fascismo e a ditadura, influenciadas pelas manifestações antirracistas nos Estados Unidos, pelo assassinado absurdo de George Floyd, por um policial.
Ressuscitando esse corpo chamado Brasil
Para que ocorra essa mudança de rumos (da cabeça) é preciso unir as mãos de todo o povo brasileiro, homens, mulheres, crianças, adolescentes, juventudes, pessoas idosas, num grande mutirão pela Vida em defesa da democracia. Ampliando os espaços de solidariedade que se multiplicaram neste tempo da pandemia. Criando colaboração e cooperação.
Assim a cabeça vai pensar com soberania, vendo que o mais importante é a Vida do Povo, ou melhor, dos Povos, em sua diversidade de Povos Indígenas, Comunidades Tradicionais (quilombolas, ribeirinhos/as, ciganos, Nômades, quebradeiras de coco, geraizeiros, entre tantos/as), povos urbanos, das favelas, das baixadas, dos grotões, migrantes e refugiados/as, entre outros. Construindo um projeto popular para o Brasil.
Mas não adianta mudar a cabeça se o coração ainda continuar perverso, só pensando em lucro. São nesses momentos que é preciso de elaboração e de pensamento para valorizar a solidariedade e a economia popular solidária e estão se multiplicando os núcleos para pensar, principalmente, mobilizando as juventudes, a “Economia de Francisco e de Clara”, iniciativa de papa Francisco que se realizaria em Assis, Itália, mas que foi adiado.
Assim, a 6ª Semana Social Brasileira com seu mutirão pela Vida, quer fortalecer as pernas exercitando como os direitos vinculados ao Trabalho podem ser restaurados, assim como uma nova relação com a Terra, seja pela agroecologia, seja pela agricultura familiar, sem o uso de agrotóxicos, preservando as Reservas e os Territórios Tradicionais na direção do que apontou o Documento Final do Sínodo e a Exortação Querida Amazônia.
E finalmente é imprescindível que se mobilize para revogação das EC 95/2016 e da EC 106/2020 para que se possa contar com recursos públicos para financiamento de políticas públicas necessárias e suficientes à proteção social da população brasileira, restaurando um Teto para cada brasileiro/a. Acreditamos que isso não se realiza sem uma Auditoria da Dívida Pública, que também está pautada nos temas da 6ª Semana Social Brasileira.
*Daniel Seidel, 53 anos, é mestre em ciência política (UnB) e especialista em planejamento estratégico de políticas públicas (Unicamp), secretário executivo da CBJP/CNBB, membro da executiva nacional das Pastorais Sociais da CNBB, assessor da REPAM Brasil, membro da Coord Nac Mov Fé e Política e da Com Nac Fé e Política do CNLB. É professor do CEFEP e da Pós-graduação em Psicodrama pelo Interpsi/PUC-Goiás. Foi secretário de estado na área da assistência social e seg alimentar no DF.
[1] Este artigo foi escrito para realizar Análise de Conjuntura, no dia 17/6/2020, solicitada pelo Setor das Pastorais Sociais do Regional Sul 4 (SC) da CNBB, que está promovendo capacitação sobre o Ensino Social da Igreja para Formação de Lideranças. Para assistir o vídeo acessar: https://www.youtube.com/watch?v=p1OlL0z6aGs.
[2] “Igreja em saída” é um dos primeiros objetivos da Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” (Alegria do Evangelho), citada no número EG 17, disponível: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html.
[3] EG 53.
[4] Encíclica “Laudato Si, sobre o cuidado com a Casa Comum”, LS 101.
[5] LS 137.