COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Com uma das mais conservadoras legislaturas dos últimos anos, o avanço do projeto parece depender mais da organização e mobilização dos atingidos, do que da boa vontade dos parlamentares.

Texto por Leonardo Fernandes / Coletivo de Comunicação do MAB

Imagens: MAB

Episódios como os rompimentos de barragens em Mariana (2015) e Brumadinho (2019) são lamentáveis exemplos da forma irresponsável como até hoje são tratadas as populações atingidas por barragens no Brasil. Sem uma regulamentação que dê segurança jurídica aos atingidos e atingidas, esses ficam à mercê da interpretação do Judiciário sobre a amplitude dos seus direitos.

A título de exemplo, um ano após o crime em Brumadinho, as populações atingidas ainda lutam para conquistar uma reparação financeira justa. Enquanto na bacia do Rio Paraopeba recentemente foi conquistado o direito às assessorias técnicas nos territórios, em Mariana e em toda a bacia do Rio Doce, esse direito não foi garantido a todas famílias atingidas. A discrepância só se explica pelo vazio legal que existe em se tratando dos direitos dos atingidos e atingidas por barragens no Brasil.

Para acabar com essa situação e dar segurança jurídica aos atingidos, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) constrói há décadas um projeto de lei que pode contribuir para a garantia dos direitos das populações atingidas seja pela construção de empreendimentos hidroelétricos e depósitos de rejeito de minério, ou pelo rompimento dessas estruturas.

Leandro Scalabrin, advogado e membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), explica que a luta do movimento sempre passou por garantir os direitos dos atingidos que nunca estiveram previstos em lei. Ele lembra que em 1986 houve um marco na conquista dos direitos dos atingidos, quando foi assinado um acordo entre o ministro de Minas e Energia da época e os atingidos do sul do país, para garantir direitos, como o reassentamento coletivo das famílias atingidas. De lá pra cá, outras iniciativas tiveram pequenos avanços e grandes retrocessos, mas até os dias de hoje inexiste uma legislação que trate do tema.

Scalabrin conta que com a privatização do setor elétrico, na década de 90, a situação só se agravou. Até que em 2006, o CNDH criou uma comissão especial para investigar as violações de direitos humanos na construção de barragens do Brasil. O relatório produzido pela comissão acabou servindo de subsídio para que o MAB elaborasse a primeira proposta de uma Política Nacional dos Atingidos por Barragens.

“Esse relatório constatou que um dos problemas das violações de direitos dos atingidos e que não havia uma lei que assegurasse esses direitos. E que, portanto, dependia da organização dos atingidos em cada caso, em cada região, para conquistar mais ou menos direitos. Isso estava causando situações desiguais, às vezes envolvendo uma mesma empresa”, relatou.

Pouco a pouco, a cada pequena vitória dos atingidos nos seus territórios, foi-se consolidando o projeto de lei, hoje denominado Política Nacional dos Atingidos por Barragens (PNAB). Em 25 de junho de 2019, o Projeto de Lei (PL) foi aprovado na Câmara dos Deputados, logo após a conclusão da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) de Brumadinho. Desde então, o projeto segue parado no Senado Federal, onde está sob relatoria do senador mineiro Carlos Viana (PSD).

A proposta prevê, entre outras coisas, critérios para a definição do espectro de atingidos, a responsabilidade das empresas sobre as populações atingidas, os parâmetros para a reparação financeira e construção dos reassentamentos coletivos e o reconhecimento da necessidade das chamadas “assessorias técnicas” para os territórios atingidos por barragens, responsáveis pelo levantamento dos dados e o apontamento de soluções sustentáveis.

Tchenna Maso, da coordenação nacional do MAB, conta como o projeto enfrenta dificuldades de avançar no legislativo, graças ao forte lobby que fazem as grandes empresas do setor elétrico junto aos deputados e senadoras.

“Eles (o lobby do setor elétrico) questionam muito o nível de participação que a gente quer para os atingidos e atingidas nesse processo, além de propostas um pouco mais radicais sobre os planos de desenvolvimento regional”, pontuou.

Com uma das mais conservadoras legislaturas dos últimos anos, o avanço do projeto parece depender mais da organização e mobilização dos atingidos, do que da boa vontade dos parlamentares. E motivos não faltam para se mobilizar. Iury Paulino, do coletivo de Direitos Humanos do MAB, explica o que muda na vida dos atingidos a partir da aprovação desse marco legal.

“Significa dizer que nós podemos ter um conjunto de leis que vão regular a atuação, das corporações, das grandes empresas nesses empreendimentos. O texto estabelece um conjunto de valores e diretrizes que não dizem respeito somente ao direito à propriedade, mas contemplam o direito à vida, o direito ao território, o direito ao rio, o direito à água, o direito à cultura”.

Iniciativas locais

No âmbito do Estado onde ocorreram as duas maiores tragédias socioambientais do país envolvendo barragens, em Minas Gerais, também tramita na Assembleia Legislativa a Política Estadual dos Atingidos por Barragens (PEAB) já aprovada em primeiro turno. A proposta agora precisa passar por um segundo turno de votação.

Outros projetos parecidos também tramitam ou são negociados em outros estados da federação, como Bahia, Ceará e Rio de Janeiro. No Rio Grande do Sul, o atual governador do Estado, Eduardo Leite (PSDB), revogou em 2019 o Decreto nº 51.595, de 23 de junho de 2014, que instituía a Política de Desenvolvimento de Regiões Afetadas por Empreendimentos Hidrelétricos (PDRAEH), e a Política Estadual dos Atingidos por Empreendimentos Hidrelétricos (PEAEH).

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Empresários elétricos já acionaram sua máquina de propaganda

Se as grandes mineradoras ou empresas do setor elétrico dedicassem todo o recurso que gastam com publicidade e matérias pagas nos meios de informação, seguramente a situação das populações atingidas por barragens seria outra no Brasil. Recentemente, grandes veículos de imprensa publicaram artigo escrito por duas “especialistas” que só fazem atacar a proposta da PNAB.

O texto afirma, sem apresentar dados precisos, que “é inegável que o texto aprovado pela Câmara não representa uma proposta exequível, ao menos para o setor elétrico”. O trecho demonstra claramente qual o sujeito de direitos considerado pela matéria: as empresas do setor elétrico.

As “especialistas” afirmam ainda que o texto do PL é “amplo e subjetivo”, não permitindo a delimitação precisa do espectro dos atingidos. E claro, questionam todo e qualquer dispositivo da lei que permita a participação direta dos atingidos e atingidas. E termina promovendo um verdadeiro terrorismo midiático, ao afirmar que a proposta “deve incidir sobre o preço da luz”, já que a reparação das populações atingidas geraria um “custo” às empresas do setor elétrico, pelo que concluem, tal projeto, que visa garantir os direitos das populações que sofrem com a construção ou rompimento das barragens seria diametralmente oposto ao “desenvolvimento nacional”.

Não há dúvidas de que se trata da ativação de suas máquinas de propaganda, com o objetivo de defender unicamente os interesses dos empresários, à revelia dos direitos das populações atingidas. Para o MAB, nenhum projeto de desenvolvimento do país pode ignorar o bem-estar, a dignidade e a integridade do povo trabalhador.

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