COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Com o tema “Mulheres Sementes de Fé, Luta e Resistência”, o Intercâmbio foi realizado de 19 a 21 de julho, na Comunidade de 17 de março, município de Juscimeira (MT), e reuniu mulheres de comunidades tradicionais, acampamentos e assentamentos da Baixada Cuiabana, do Centro-Sul e do Norte do Mato Grosso.

(texto e fotos: Cristiane Passos - CPT Nacional)

O Intercâmbio teve início com uma mística que lembrou as mulheres da Bíblia, a força e resistência delas ao longo dos séculos. Animadas por essas histórias e suas lutas através dos tempos, o grupo acompanhou a análise de conjuntura feita por Glória Maria Muñoz, da CPT Mato Grosso, que destacou o momento de enormes retrocessos que estamos vivendo. “Quem melhor do que as mulheres camponesas para entender o impacto dessas medidas. Houve, nos últimos dias, um assassinato cruel. O companheiro Luis, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), durante manifestação no interior de São Paulo, em que distribuíam alimentos saudáveis para a população, foi atropelado por um homem descontente com a manifestação, que jogou o carro contra os sem-terra e matou o senhor Luis e feriu outras pessoas”, enfatizou Glória.

Infelizmente, conforme lembrou a agente da CPT, essa realidade está se espalhando por vários países da América Latina. Além disso, existe o aumento do ódio contra as mulheres, o feminicídio e tantos outros crimes. “Essa é a realidade de muitas mulheres, homens muitas vezes não aceitam a separação e acham que a mulher é sua propriedade e assim podem fazer o que quiser com ela”, disse Joana, uma das trabalhadoras presentes no Intercâmbio.

“Na Câmara Municipal, vários projetos de lei vão diretamente contra as mulheres. Mato Grosso é o segundo estado no país com maior número de violência sexual contra as mulheres. Ao ser estuprada, por lei, as mulheres devem ter acesso à pílula do dia seguinte para evitar uma gravidez. Os projetos querem suspender isso e vários outros atendimentos às mulheres em situação de violência. Da mesma forma, querem criar a lei do nascituro e impedir também a interrupção da gravidez nesses casos e a criminalização da mulher que assim o fizer. A reforma da previdência, nós sabemos, que quem mais sairá prejudicada, as mulheres. O maior contingente de pessoas que tem emprego com salários baixos, são as mulheres, portanto, as mais prejudicadas serão elas. Estamos vivendo uma série de cortes no orçamento, principalmente para políticas sociais. O governo federal está acabando com quase todos os programas voltados para o campo. Mesmo assim vocês seguem resistindo. E agora no mês de agosto teremos dois momentos fortíssimos em que as mulheres poderão levantar a voz para falar sobre seus direitos. As indígenas e as mulheres do campo, das águas e das florestas estarão em Brasília. As indígenas irão marchar de 9 a 13, será a I Marcha das Mulheres Indígenas. 13 e 14 será a Marcha das Margaridas, que trará na voz dessas mulheres todo o projeto de sociedade que queremos, com soberania popular e direitos garantidos. Essa marcha é um grande grito das mulheres, para falarem juntas indígenas, camponesas, mulheres da cidade, que nós existimos e que não vamos aceitar retroceder em nossos direitos. Para quem está no campo, ir para a Marcha das Margaridas é falar com força que essa terra nos pertence”, disse Glória.

O Intercâmbio de Mulheres tem como principal objetivo refletir sobre a vida e a realidade das mulheres camponesas, iluminadas à luz do evangelho, e que se fortalecem na luta e resistência. Além disso, a atividade celebra a caminhada comunitária, valorizando as formas de organização que abrem novos caminhos, possibilita o cuidado da vida, as melhorias na geração de renda e a resistência aos ataques dos sistemas público e privado, como governos, fazendeiros e grileiros. Por isso, a mística e a espiritualidade foram debatidas e trabalhadas, a partir de uma perspectiva popular e feminista, com o grupo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mulheres, fé e empatia: não apedrejemos

A pastora metodista Nancy Cardoso, assessora da CPT, trouxe a história bíblica de Rute. “Rute foi para uma festa que, na verdade, ela não podia ir, pois era uma festa só para mulheres solteiras. Rute ficou viúva e sobrevivia de restos. Mesmo assim a sogra falou para ela parar de esperar os parentes a ajudarem e que ela deveria ir a festa. Rute, então, tirou o véu de viúva, tomou um banho e foi para a festa. A Bíblia é assim, é história de gente de verdade. A história de Rute é a história de uma mulher que se arriscou. A bíblia é um livro de vida e de mulheres que conheceram a miséria, passaram dificuldades e fizeram a experiência de Deus na vida delas, através da resistência. A bíblia tem que ser lida em comunidade e interpretada conjuntamente”, analisou ela.

Durante debate sobre a passagem bíblica da mulher adúltera, o grupo pôde refletir sobre as pedras que jogamos contra as mulheres todos os dias. “Devemos nós mesmas refletir sobre essas pedras e como muitas vezes incentivamos que elas sejam atiradas contra outras mulheres”, destacou Nancy, enquanto as mulheres debatiam sobre a necessidade de união e empatia entre todas elas.

Para Nancy, “nós não devemos usar a palavra de Deus como pedra. Nós, que temos uma caminhada e reflexão, nós não podemos fazer isso. Jesus foi libertador! ‘Quem não tem pecado que atire a primeira pedra!’, ele disse. Pensemos em outra mulher da Bíblia, Acsa, que é de muito tempo antes de Jesus, e antes do texto da mulher adúltera. E quanto tempo se passou e elas continuam sendo subjugadas. O poder masculino do patriarcado, o jeito de organizar a vida, a economia, a política, está centrado no masculino. Temos que ter sempre em mente que só a luta muda a vida! A história de Acsa mostra isso. A história de tantas mulheres nos mostra isso”.

“Para nós a palavra de Deus é palavra de vida, então na nossa mão ela não vai ser pedra. Deus é amor e não pedra. Oração e ação, oração e organização, são fundamentais para a nossa luta. É a nossa espiritualidade, é a nossa mística. Deus deu o mundo para nós, e nós continuamos criando junto com Deus, através da produção de alimentos e reprodução da vida. O mundo de Deus é muito grande, muito além apenas das coisas que nós nos relacionamos. É uma coisa linda, é uma coisa viva. E nós também somos criação de Deus. O mundo de Deus é diverso, tem de tudo e precisa de tudo. O apóstolo Paulo escreveu uma Carta muito preocupado, ‘a criação de Deus está escrava’. Hoje também vivemos essa realidade, ela está escrava do homem, do mundo do dinheiro, da opressão. No capitalismo toda criação é matéria-prima, inclusive as pessoas, que são desejadas apenas para trabalhar. Ele escraviza a natureza. Nós perdemos nossa relação de parente com a natureza. Os indígenas chamam a natureza de parente. Nós perdemos isso”, destacou a pastora.

No debate as mulheres puderam conversar sobre a ideia da mãe, que pode e deve fazer tudo, que deve oferecer tudo aos filhos. De acordo com Nancy, “essa ideia de que ser mãe é se sacrificar tem que acabar. O mesmo sofrimento da mãe, é o sofrimento da Terra. A Terra sofre também. O agronegócio, o capitalismo na agricultura, é essa relação de estuprar a terra, de destruir a terra. E mais, libertar os nossos corpos significa libertar o corpo da mãe terra. Mulher não nasceu para ser escrava, a Terra também não”.

A partilha das lutas e a dura realidade dos conflitos no campo

Durante a partilha das mulheres, muitas histórias retratavam os anos de luta pela terra e por vida digna. A região Norte matogrossense foi a que compartilhou a realidade mais problemática. Anos de luta em acampamentos, debaixo de lona, e muitas ainda não conseguiram sua terra. Várias sofrem ainda com a violência dos fazendeiros e grileiros, e ação de pistoleiros. No Assentamento Raimundo Vieira – Lote 10, ano passado as famílias sofreram com o ataque da pretensa proprietária da área, que é comprovadamente pública, em que casas foram incendiadas e uma família foi amarrada, juntamente com uma criança de 3 anos. Tiros foram disparados e as famílias viveram uma noite de terror. “Sem terra tem direito, é ser humano! Num é sem razão, sem porquê, sem motivo….”, frisou uma trabalhadora do acampamento Renascer, em Juscimeira, ao refletir sobre a importância da luta dessas comunidades pela garantia de seus direitos.

Para construir a resistência frente a essa realidade, as mulheres destacaram que é de suma importância que elas se mobilizem cada vez mais, se organizem e construam firmemente suas reivindicações. Além disso, muitas planejam criar áreas de plantio das mulheres, mutirões solidários na comunidade, bazar de trocas e de doação de roupas nas reuniões, realizar mais formação para as mulheres e, também, fortalecer esses coletivos para que haja mais união entre as mulheres.

Animadas pelas partilhas, trocas de experiências e mesmo diante do compartilhamento das dores e violências sofridas no cotidiano da vida dessas mulheres, o grupo finalizou o IV Intercâmbio com a produção de uma Carta em que destacam, que “só a luta muda a vida, é assim que descobrimos que sendo sementes podemos florescer sempre se cuidarmos umas das outras e estivermos juntas. Nossas vidas se entrelaçam, juntas somos mais fortes, somos poderosas e assumimos o compromisso de estarmos com nossas irmãs de e na luta”.

Confira o documento na íntegra:

Carta do IV Intercâmbio Estadual de Mulheres Camponesas da CPT-MT:

Mulheres, sementes de fé, luta e resistência

 

Com fúria e amor

Estamos aqui!

Pelas Nossas irmãs

Estamos aqui!”.

 

Mulheres camponesas, acampadas, assentadas e de comunidades tradicionais, vindas das regiões Norte, Baixada Cuiabana e Sul de Mato Grosso, reunidas no IV Intercâmbio Estadual de mulheres acompanhadas pela CPT/MT, nos dias 19, 20 e 21 de julho de 2019, no assentamento 17 de Março, no município de Juscimeira, nos reunimos para refletir sobre nossas lutas e organização que abre novos caminhos.

Sabendo que somos mulheres, sementes de fé, luta e resistência, anunciamos e denunciamos os anseios que cada uma carrega consigo.

Anunciamos com infinita esperança a boa nova do Cristo libertador, à luz da vida das mulheres da bíblia e das mulheres de hoje, que somos nós. O Cristo encarnado, Deus pai e mãe que escuta nossos gritos, caminha conosco e nos fortalece na resistência diante dos projetos de morte dos poderosos.

Denunciamos a violência patriarcal que nos agride, tira a vida e a paz de muitas irmãs; denunciamos a violência institucional que despeja nossas famílias na luta pela terra e nos obriga a viver em condições subumanas, agredidas e ameaçadas também pelos latifundiários.

Denunciamos o agronegócio que contamina a terra com o uso de agrotóxicos, envenena nossos alimentos e fontes de água. A desmedida ambição de certos grupos que em nome do lucro exploram a natureza sem limites através de grandes empreendimentos, barragens, usinas hidroelétricas e projetos de mineração, ignorando criminosamente qualquer comunidade, território ou forma de vida, em nome do desenvolvimento e do lucro.

Com profunda indignação acompanhamos os ataques cotidianos do Governo federal, que são reproduzidos pelo Governo estadual, para a retirada de direitos conquistados com tanta luta pela classe trabalhadora, a destruição de projetos sociais que de alguma forma garantiam direitos de pessoas e comunidades mais vulneráveis, ataques que recaem principalmente na vida das mulheres. Denunciamos este Governo que é uma ameaça para a vida das mulheres do campo, das cidades, das águas e das florestas, que é inimigo do povo humilde e lutador.

Estamos atentas às articulações do governo e da classe política para o desmonte da previdência pública, o ataque às universidades públicas, o sucateamento do INCRA, o travamento do processo de reforma agrária e demarcação de Terras Indígenas e Quilombolas, o enfraquecimento e perseguição aos Sindicatos, Movimentos e Pastorais Sociais.

Anunciamos e afirmamos que seguiremos em marcha até que todas sejamos livres, que insistiremos com nossa organização na defesa de vida digna para todos e todas.

Só a luta muda a vida, é assim que descobrimos que sendo sementes podemos florescer sempre se cuidarmos umas das outras e estivermos juntas. Nossas vidas se entrelaçam, juntas somos mais fortes, somos poderosas e assumimos o compromisso de estarmos com nossas irmãs de e na luta.

Juscimeira, 21 de julho de 2019.

 

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