COMISSÃO PASTORAL DA TERRA

 

Erica Malunguinho fala sobre a importância de fazer deste mês um espaço de luta, formação e organização da população.

 

(Por Wesley Lima – Da Página do MST | Imagens: Luara Dal Chiavon)

Negra, pernambucana, mulher trans e recém-eleita deputada estadual de São Paulo pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Erica Malunguinho com certeza é uma das expressões mais marcantes da resistência negra no cenário paulistano. Essa resistência se apresenta, principalmente, em sua trajetória de vida, que está conectada a construção de sua negritude e identidade de gênero. Malunguinho é a primeira mulher trans a ocupar uma vaga na Assembleia Legislativa Paulista.

Neste Novembro Negro, em entrevista concedida à Página do MST, ela fala sobre a importância de fazer do mês da consciência negra um espaço de luta, formação e de organização da população negra, para potencializar o enfrentamento ao racismo nas diversas dimensões da vida.

“A importância deste mês se dá na medida que ele seja um espaço potencializador e fortalecedor de forças e energias do acúmulo histórico das lutas travadas pelo povo preto, para que isso continue constante”, pontua. Além disso, destaca que o “corpo negro vivo” é a principal forma de resistência na atual conjuntura brasileira, onde o candidato da extrema-direita é eleito presidente da República, Jair Bolsonaro, com um discurso de ódio. 

Com posicionamentos firmes, Malunguinho também é conhecida por estar a frente do Aparelha Luzia. O espaço é um centro cultural e quilombo urbano de São Paulo, fundado em abril de 2016.

Durante toda entrevista, Aparelha Luzia é apresentado pela entrevistada como um espaço de resistência por valorizar a cultura e as religiões de matriz africana. Para além disso, caracteriza-o como um ambiente seguro, onde a “povo preto” possa se encontrar.

Acompanhe a entrevista na íntegra:  

A luta contra o racismo é histórica e tem se apresentada em diversas dimensões das relações sociais e econômicas. No Novembro Negro, mês em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, rememoramos as lutas e as principais expressões de resistência popular protagonizadas pela população negra. Sobre essa data, o que ela simboliza para você enquanto mulher negra e transexual?

A gente tem que partir do pressuposto que é um erro ter um novembro negro. É um erro ter um Aparelha Luzia. É um erro resistência. A gente tem que partir do pressuposto que é um erro do ponto de vista das relações raciais na sociedade, mas são acertos do ponto de vista de como a sociedade organizou a sociabilidade. É importante a gente desromantizar a ideia de resistência para inclusive nos deixar mais fortes neste processo conjuntural que é necessário. Mas, entendamos, que a princípio, isso demonstra uma falha, um equívoco de como a sociedade se organizou. Pensando neste erro, mas também nos acertos, retomando o que seria esse acerto, ter um mês como o novembro é importante, mas ainda é insuficiente, porque nós somos negras todos os dias. 

Entendo esse mês como um marco simbólico, a demarcação desse território. Mas a gente não pode perder de vista nunca que não deve se encerrar em novembro, porque todo dia é dia de gente preta. A gente acorda todo dia com demandas básicas de alimento, de terra, de vida, de poder estar viva.

A importância deste mês se dá na medida que ele seja um espaço potencializador e fortalecedor de forças e energias do acúmulo histórico das lutas travadas pelo povo preto, para que isso continue constante. Acho que é uma coisa que a gente tem dito muito, principalmente a respeito da política institucional, que a gente para pra pensar nas políticas institucionais só em tempos de eleição, quando na verdade essa política, que já estamos praticando no cotidiano pela resistência, ela deveria e deve estar no processo de formação constante, para quando chegar nesse período nós só precisamos celebrar. O marco temporal cronológico se dá à medida que a gente possa produzir reflexões de continuidade da luta.

Na sua opinião, quais são as principais expressões de resistência que temos na atualidade?

É muito grande falar isso. Mas eu vou dizer que a maior expressão é o corpo negro vivo. Ele é a maior expressão de resistência. Óbvio que estamos falando de organizações, de inúmeros agentes que estão aí no campo da disputa organizativa de uma articulação coletiva, como o MST, o Aparelha Luzia, o Movimento Negro Unificado (MNU), como diversos quilombos que estão presentes, vivos até hoje, os territórios indígenas. Mas a gente não pode deslegitimar ou esquecer do corpo negro vivo, da empregada doméstica que vai trabalhar todo dia, enfrenta três ônibus nesta cidade violenta, que é violentada no transporte público, que é violentada com a sua presença no mundo, para trabalhar na casa dos brancos de classe média. Esse corpo é uma expressão de resistência. Ou seja, o maior símbolo de resistência é a nossa vida.

O nosso desafio em relação a essa vida negra é fazer com que ela se torne cada vez mais auto reflexiva, porque não é só auto declaração de pretos e pardos. A auto declaração é importante, mas ela só será decisiva a medida que junto a ela, a declaração vier carregada com o que significa ser negra no nosso país, nesse contexto de disputa e de negociação de pertencimento.

Então, a resistência é o corpo negro vivo e o desafio deste corpo negro é fazer com que ele volte para si. Sempre lembrando que a luta negra fala de si, mas é para emancipação coletiva. Ela não é egóica, no sentido narcísico. Enfim, nossa maior resistência é a nossa vida.

Você considera importante nesse mês combinar o debate da negritude e suas expressões de resistência com a pauta de gênero? Como isso pode ser articulado?

Pensar gênero neste quesito, que também é estrutural e institucional, ele precisa vir atrelado de uma dúvida. Não estou dizendo que ele menor, por exemplo, nós sermos seres numa sociedade construída numa diáspora, pelo processo de colonização, que inclusive, por mais que tenha negado, existe uma história anterior ao projeto colonizador. Então, “Áfricas” têm sociedades diversas, ancestralmente e contemporaneamente falando. 

Existem sociedades do culto ao sagrado feminino, o próprio panteão africano, onde os orixás se atravessam por afetividades diversas. Nos povos ancestrais das américas e indígenas têm um estudo que aponta que temos oito gêneros catalogados nos povos da América do Norte. Entender a discussão de gênero também é levar em consideração que precisa estar atrelado, neste contexto de Brasil, a uma fundamentação que partiu de uma questão de raça dentro de um projeto colonizador que fundamenta o patriarcado e toda essa lógica eurocêntrica. Não estamos querendo dizer que gênero não é estrutural. Mas é necessário colocar o fundamento de raça primeiro. E quando falo isso, estou falando para além de uma reparação social. Estou falando da reparação e restauração da nossa cosmovisão, da filosofia e códigos éticos que praticavam em outros modelos de vida. Isso significa dizer horizontalidade. Isso significa dizer que não há fragmento do próprio organismo da sociedade, pois a cosmovisão entende-se que agricultura diz respeito a espiritualidade, que diz respeito a matrimônio, que diz respeito a saúde, a educação e tudo num organismo que gere consequências. 

Quando falo do fundamento racial quero trazer e restaurar uma filosofia também, uma tecnologia social e modos de ser e de estar, que consigam desequilibrar esse modelo. Aí é onde a gente pensa que o candomblé, que é um espaço de práticas religiosas, de busca da espiritualidade, também é um espaço de ciência, da produção de conhecimento e onde as relações humanas se dão de um outro lugar. Por exemplo, é um lugar onde a comunidade LGBT teve muito acesso, com lideranças femininas e existem outras arquiteturas sociais possíveis. 

Esses debates precisam de interseccionalidade para a gente fazer uma análise de como isso se dá no hoje, a partir de um sistema de opressão e esse modelo machista. 

Eu não era negra, mas me disseram negra. Trans? Igual! Essas questões partiram desse lugar e desse binarismo, na qual relações vão sendo construídas […]. Essa identidade reivindica humanidade. Isso é interseccionalidade. É racionalizar a interseccionalidade. 

Numa linha histórica seria: não era negra; me disseram negra; assumi que sou negra; e agora o que eu faço com isso? Ou seja, compreender esse processo histórico, ancestral e fazer com que isso se torne perspectiva de amanhã, de um projeto de mundo e de futuro.

Sobre o genocídio da população negra e os dados alarmantes que colocam o Brasil em primeiro lugar no ranking mundial no assassinato de pessoas trans, que desafios estão colocados para os movimentos no próximo período, em que teremos a extrema-direita ocupando a presidência da República?

Nós somos vanguarda. Nós somos força raiz, motriz e diretriz. Quando dona Ivone Lara fala que “Negro é a raiz da liberdade” ela não está falando de correntes, ela está falando de uma outra coisa. Os desafios que nós temos são exatamente esses, nos entender dentro dessa tri temporalidade. Sistematizar isso e fortalecer nossa rede de solidariedade, de afeto, de autocuidado, de não entrar numa resistência histérica branca.

Os desafios que nós temos é nos entendermos agora dentro desse processo como alvos, que sempre fomos, mas que esses alvos oferecem um duplo perigo ao sistema, pois ao mesmo tempo que existe a possibilidade de eliminação, nós somos a própria insurgência e anunciação. Isso está mais que explicito, que neste tempo, isso está em maciça consciência e interconectada transatlanticamente. 

Logo, quem são esses seres, que o mundo não tem o que fazer se não tentar no mínimo reparar as suas perversidades. Quem são esses seres, que a sua única possibilidade de novo e de recuperação, do planeta, da sociedade, da sociabilidade. Somo nós! 

Não há possibilidade de uma virada cognitiva, epistemológica de consciência, que não parta desses sujeitos e sujeitas, que foram aleijados de decisão. Digo isso não matematicamente por reparação. Não estou falando de subjetividade. Estou falando de objetividade. Porque esse impacto narcísico da branquitude construiu tudo isso que está sendo inventado. São práticas como modelo de sustentabilidade e de preservação das relações, da economia e etc., são práticas que eram normais e naturais para nossos povos ancestrais. Estou falando que nós temos habilidade e capacidade, e, acima de tudo, sensibilidade de desconstruir essas violências estruturais.

O grande desafio enquanto sociedade de muitas etnias e etc. é termos a consciência disso. Isso não quer dizer “saí branco para fora”, mas sim, você precisa se ausentar do protagonismo, porque você não sabe o que fazer, você é um aliado e uma aliada. Mas para fomentar economicamente e politicamente esses projetos que estão como princípio precisamos nos voltar para desconstrução. Ou seja, fazer um novo pacto civilizatório para que nós não cainhamos na barbárie anunciada.

O que precisa ser feito na prática no próximo período na luta contra o racismo e a LGBTfobia em nosso país?

Primeiro, autocuidado. Precisamos cuidar de nós, do afeto, da solidariedade. Isso é essencial. Por isso, precisamos desenvolver estratégias e falo de estratégias para permanecermos vivas. São estratégias de sobrevivência, fazendo crescer o nosso grupo de articulação política. 

Precisamos criar uma estrutura de inteligência que construa espaços seguros em nossos territórios. Essa estrutura não pode ficar a cabo da igreja, das estruturas políticas que estão no poder. A gente tem que traduzir para os nossos esse nó racial, étnico, político, institucional, manipular. Porque é um nó gigantesco e nós temos a missão de desatar esse nó. Temos que efetivamente construir um projeto político e pedagógico, tanto organizado coletivamente quanto autônomo e independente.  

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