Em entrevista, Joenia Wapichana fala sobre representatividade indígena na política, Marco Temporal, PEC 215/00 e as temáticas que defenderá no Congresso Nacional.
(Por Guilherme Cavalli, Michelle Calazans e Mayra Wapichana – Cimi | Imagem principal: Valdir Wasmann)
Pela primeira vez, em 190 anos de Parlamento, uma mulher indígena tem assento no legislativo brasileiro. No domingo (7), Joênia Wapichana (Rede) recebeu 8.491 votos e foi eleita Deputada Federal pelo estado de Roraima. A indígena ocupará uma das oito cadeiras reservadas ao estado na Câmara dos Deputados
A decisão de concorrer ao pleito eleitoral, segundo Joenia, ocorreu durante a 47ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, após análise política sobre a situação dos povos indígenas no Brasil. Os indígenas presentes na assembleia consideraram importante a participação de lideranças na disputa institucional. Joenia Wapichana foi indicada pelo movimento indígena de Roraima e hoje une-se ao feito histórico de Mario Juruna, primeiro indígena a conquistar uma vaga na Câmara dos Deputados (1983-1987). Desde a saída do Xavante do Congresso, em 1986, nenhum indígena havia ocupado vaga no legislativo.
Em sua trajetória, Joenia Wapichana também foi a primeira mulher indígena a se formar em direito no Brasil, em 1997, pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). “Fui a quinta colocada, onde só tinha filho de deputado, filho de dono de jornais. Mas competi de igual com eles. Acabei me formando em quatro anos, em um curso que o mínimo era cinco”, contou em vídeo para o RenovaBR, grupo do qual faz parte. Posteriormente, conquistou o título inédito de mestre pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. No Supremo Tribunal Federal (STF), a indígena também protagonizou um marco ao ser a primeira advogada indígena da história a realizar uma sustentação oral durante o julgamento que definiu a demarcação da TI Raposa Serra do Sol (RR).
Em 2019, Joenia Wapichana continuará a ser sinônimo de resistência, agora na Câmara dos Deputados. Em entrevista ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a advogada indígena esclarece quais serão os desafios e as prioridades de trabalho no parlamento, tendo em vista o cenário político dominado pela bancada ruralista e sua frente anti-indígena. Entre as bandeiras defendidas pela Deputada Federal eleita estão os direitos coletivos indígenas, luta em prol de mulheres indígenas, desenvolvimento sustentável, respeito ao meio ambiente, transparência, ética e combate à corrupção.
Representatividade indígena, PEC 215/00, Maro Temporal, Parecer 001/AGU foram temas abordadas na entrevista abaixo. O esclarecimento de Joenia Wapichana é voltado ainda sobre os projetos que almejam levar para o Congresso a demarcação das terras indígenas, tirando do Ministério da Justiça e da Funai.
“O embate vai ser para que esses argumentos sobre o direito originário sejam evidenciados, não simplesmente dizer que tem muita terra para pouco índio e que devemos abrir mão de direitos indígenas”.
Em levantamento realizado pelo Cimi, “Congresso anti-indígena – Os parlamentares que atuaram contra os direitos indígenas”, a instituição identificou que existem 33 proposições anti-indígenas em tramitação no Congresso e no Senado. Desse total, 17 buscam a alteração nos processos de demarcações de Terras Indígenas (TI). Para Joenia, esse cenário de judicialização e morosidade do processo de demarcação, somado a impunidade dos crimes contra as populações tradicionais, abrem precedentes para o aumento da violência contra os povos.
“Essa violência gerada contra os povos indígenas surgiu, inclusive, da falta de reconhecimento das terras indígenas, do extremo grau de discriminação dos povos indígenas e da impunidade sobre o que acontece em relação as terras indígenas”, comenta. “O trabalho será voltado para fazer com que essa violência acabe e que as pessoas responsáveis sejam responsabilizadas”
Representatividade
Simbolicamente, é comum que os povos indígenas sejam barrados ao tentar ingressar nas dependências do Congresso Nacional ou, de forma ainda mais recorrente, ver proibido o ingresso de seus instrumentos tradicionais e religiosos, como maracás. Do lado oposto aos poderosos setores político-econômicos que se convertem, no Congresso, em fortes grupos de pressão anti-indígena – e muitas vezes do lado de fora de seus muros excludentes – os povos originários resistem e permanecem atentos aos ataques que lhes são desferidos.
“A partir de agora essa representatividade é legítima no Congresso”, sustenta Joenia.
Em cenário de total desrespeito e desproteção aos povos indígenas, na figura de Joenia Wapichana, os povos indígenas.
Leia a entrevista abaixo:
– Quais motivos te levaram a pleitear uma vaga como de Deputada Federal?
Primeiramente, foi feita uma análise política sobre a situação dos povos indígenas no Brasil em uma grande assembleia indígena. Essa assembleia considerou as lideranças indígenas para participar desse pleito e eu fui uma das lideranças avaliadas e convidadas.
As garantias constitucionais que nós conquistamos em 1988 com muito esforço são mais do que nunca necessárias nesse momento onde nossos direitos encontram-se ameaçados.
É extremamente importante que os povos indígenas tenham espaço garantido na Câmara Federal, onde tramita projetos como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 215/2000, o Projeto de Lei (PL) n° 1.610/1996, que englobam toda essa tentativa de reversão dos nossos direitos. Esse momento é crucial para a defesa dos direitos indígenas, foram esses os motivos que me fizeram aceitar essa demanda do movimento indígena, para pleitear ao cargo de Deputada Federal.
– O quanto representativo é sua candidatura em um cenário político que é dominado pela bancada ruralista/anti-indígena?
Essa representatividade é extremamente importante. Não temos nenhum indígena no Congresso Nacional para nos defender. Hoje, nós temos alguns aliados dos povos indígenas no legislativo. Em contrapartida, existe grande pressão da bancada ruralista para levar falsas interpretações sobre os direitos indígenas, a exemplo do marco temporal e fazer com que aquelas condicionantes do caso Raposa Serra do Sol, as condicionantes negativas, sejam colocadas como lei. A partir de agora essa representatividade é legítima no Congresso, porque tem o movimento indígena para defender esses direitos.
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– Como avalia a tese do marco temporal, que está presente em muitas das proposições anti-indígenas do Congresso e como se dará o embate na Casa?
No meu entendimento, o Marco Temporal é totalmente inconstitucional. É dessa forma que vou defender com os argumentos já posicionados de forma direta, porque a nossa Constituição assegura os direitos originários dos povos indígenas. E, justamente, essa tese que veio a partir de um voto, do caso da Raposa Serra do sol, não é uma sumula vinculante e tão pouco tem que ser colocado como um norteador de direitos. Nós sabemos que a promulgação da Constituição Federal foi feita no dia 5 de outubro de 1988, mas não significa dizer que a partir daí que nasce o direito para demarcação. A própria constituição responde que existe o direito originário e o princípio da imprescritibilidade sobre os direitos das terras originais. Existe uma legislação que consegue confirmar que nossos direitos territoriais são defendidos antes mesmo da própria promulgação da Constituição de 1988. Então, vou trabalhar para que esses posicionamentos jurídicos, técnicos, políticos e constitucionais sejam colocados de forma básica sobre os princípios dos direitos originários da imprescritibilidade.
E o embate vai ser para que esses argumentos sejam evidenciados, não simplesmente dizer que tem muita terra para pouco índio e que devemos abrir mão de direitos indígenas.
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– Como Deputada Federal, qual a perspectiva de embate no Congresso acerca da PEC 2015//2000, que ameaça brutalmente os direitos indígenas?
O movimento indígena sempre fez muita pressão em Roraima e eu sempre acompanhei e participei das manifestações. Minha sustentação é que a PEC 215 tem que ser rejeitada em sua integralidade, ela é inconstitucional, pois fere nossos direitos indígenas. Se ela for votada nesse contexto anti-indígena, ela vai sofrer muita pressão. É necessário fazer com que os partidos políticos, assim como o meu da Rede Sustentabilidade, possam agir contra judicialmente à essa ação, caso essa PEC passe, esperamos que não. É importante que possamos encontrar, coletivamente, argumento para que essa proposta não avance.
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– Qual sua posição sobre os projetos que querem trazer para o Congresso a demarcação das terras indígenas, tirando do Ministério da Justiça e da Funai?
Essa questão trata justamente da PEC 2015. Ela é absurda, porque está bem clara na Constituição Federal “…é dever da União exercer a função administrativa de demarcar as terras indígenas…”.
Demarcar as Terras Indígenas é um ato administrativo e significa executar a lei e a Constituição Federal.
Nesse sentido, entendo que esses projetos que trazem para o Congresso a demarcação de terras indígenas está ferindo a competência dos poderes. Vou defender para que as terras indígenas, mais do que nunca, tenham sua demarcação feita pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que é o órgão indigenista federal que tem aparato, a experiência e o corpo técnico para empregar os princípios da Constituição. Defendo, assim, os critérios de demarcação de terras indígenas, os seus procedimentos, e como tem feito, avançar ainda mais nessa regularização fundiária das terras indígenas. O Congresso Nacional tem todo um preparo político e não entende de demarcação das terras indígenas.
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– Diante do quadro de violência presenciado no Brasil contra os povos indígenas, quais são as prioridades de trabalho na Câmara dos Deputados?
Esse quadro dramático diz bastante acerca da relação com a falta de regularização fundiária das terras indígenas. A proposta é que seja mais célere.
A violência gerada contra os povos indígenas surge da falta de reconhecimento das terras indígenas, do extremo grau de criminalização dos povos indígenas e da impunidade sobre o que acontece em relação as terras indígenas.
Minha prioridade é justamente fazer com que esses dados evidenciem essas violências, como forma de justificar o déficit de regulamentação desses direitos. Dessa forma, o trabalho será voltado para que a Câmara dos Deputados, não somente as Comissões de Direitos Humanos, mas também na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), possa estabelecer essa relação e fazer com que algumas medidas possam ser adotadas para punir os que cometem essas violências. É importante, nesse atual momento, acelerar o processo de demarcação de terras indígenas e combater toda e qualquer discriminação existente. O trabalho será voltado para fazer com que essa violência acabe e que as pessoas responsáveis sejam responsabilizadas.
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– Com foco na demarcação de terras tradicionais, quais serão os desafios e providências previstas nesta legislatura para retomar os direitos aos senhores originários das terras?
O trabalho será voltado para que a lei seja implementada e cumprida. É importante que haja uma segurança para que as terras indígenas sejam demarcadas a partir dos critérios constitucionais, obedecendo assim, todas as garantias, a partir das necessidades dos povos indígenas. E ela seja interpretada de forma positiva e não ao marco temporal, e não a questão do interesse sobre recursos naturais, mas que ela possa garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas no Brasil.
O ponto prioritário desta legislatura é que seja valorizado o processo de demarcação de terras indígenas.
A proposta é fazer com que todo o Congresso Nacional e a sociedade brasileira entenda a importância de demarcar as terras indígenas. Nesse sentido, não é por uma questão de colocar em conflito ou não, mas é questão de direitos humanos, de todos serem beneficiados. Vamos mostrar para o índio e para o não índio como é importante preservar os recursos naturais e destacar o papel que as terras indígenas desempenha nesse processo de preservação.
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– Entre as propostas, qual a perspectiva e planejamento de atuação em médio e longo prazo?
De imediato, o trabalho será destinado para combater as propostas anti-indígenas. Neste primeiro ano pretendo ouvir todas as propostas consideradas prioritárias pelas organizações e entidades que defendem os direitos indígenas. Sei que não vou conseguir resolver tudo que existe, mas vou conseguir frear, pedir vista, analisar da melhor forma possível, vou poder criticar. Nesse primeiro momento, vai ser destinado inclusive para me planejar e me situar sobre todos os encaminhamentos. Em médio prazo, pretendo desenvolver um trabalho de manifestação sobre o que já existe para propor coisas positivas, a gente não precisa só ficar se defendendo.
A partir desse canal de diálogo com os povos indígenas e com as organizações, a gente vai poder propor coisas boas, como a questão da educação diferenciada. Hoje, nós precisamos ter um sistema de educação escolar indígena próprio. Nós precisamos ter propostas de lei que reconheçam os profissionais indígenas de saúde, precisamos melhorar o sistema de saúde e de conveniado, bem como solucionar esse problema do terceiro setor. Precisamos levar esse debate para solucionar problemas também a longo prazo desenvolver políticas públicas específicas para a juventude, as mulheres, além de trabalhar a sustentabilidade e as parcerias.
Em longo prazo, desejo avançar na cidadania, por meio da discussão de política dentro das comunidades indígenas, para que se tenha um entendimento coletivo do contexto nacional. É preciso discutir a reforma política no nosso país, discutir o sistema de distrital misto para que cada município possa ter seus próprios representantes, assim seria mais fácil e viável. Aqui em Roraima, por exemplo, cerca de 80% da população é indígena, nós teríamos com certeza mais Deputados Federais indígenas no Congresso. Por isso, é importante que a gente comece a discutir essas reformas políticas.
Por outro lado, é importante que a gente discuta a questão ambiental das terras indígenas na Amazônia, discutir também a questão da energia. As hidrelétricas da Amazônia sempre surgem como solução, mas elas não são as únicas soluções. Precisamos buscar proposta de incentivo, discutindo essas soluções e inserindo projetos como existem na Raposa Serra do Sol, valorizando a energia solar e eólica, para assim buscar soluções contra essas hidroelétricas, para fazer com que nossas comunidades sejam tanto protagonistas, quanto beneficiárias, no próprio sistema.
E também em longo prazo, discutir a situação das fronteiras, que hoje estão em uma crise com país vizinho da Venezuela. A gente precisa buscar soluções para amenizar toda a situação de imigração de venezuelanos para o Brasil. Atualmente, não existe uma política pública clara acerca dessa questão. É preciso ter um planejamento de atuação a longo prazo e levar a discussão para a Câmara Federal.